Em São Luís, poluição do ar atinge níveis
alarmantes e novo projeto pode poluir ainda mais
Vamos imaginar a seguinte situação: um bairro
inteiro no qual a população precise usar máscaras com filtros de alta
capacidade, ou, então, que todo mundo tenha que se mudar para o mais distante
que consiga, para não ter mais que respirar o ar do seu entorno. Essa situação
não é muito distante do que já acontece na zona rural de São Luís, no Maranhão.
A queima de carvão pelas empresas do Distrito Industrial (Disal) tem levado as
pessoas que vivem no entorno a sofrer com doenças respiratórias, desde asma até
câncer de pulmão, apontam pesquisa e profissionais de saúde. E novos
empreendimentos podem agravar ainda mais esse quadro.
Nos últimos anos, a capital maranhense vem
sendo apontada como uma das cidades mais poluídas do Brasil. Segundo uma
análise realizada pela organização Movimento em Defesa da Ilha, que reúne
moradores, pesquisadores e ativistas, em 2023, os dados de qualidade do ar da
Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema) ficaram 903 vezes acima
dos índices de emergência por emissão de dióxido de enxofre e/ou ozônio. A
análise levou em consideração os parâmetros estabelecidos pela Resolução
491/2018 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
“Isso não significa que a qualidade do ar
ficou ruim 903 dias no ano, mas sim que, em diferentes momentos e locais, os
níveis de poluição ultrapassaram o limite seguro várias vezes”, explica o
advogado e ativista ambiental do movimento, Guilherme Zagallo, que fez o
tratamento dos dados do relatório.
<><> Por que isso importa?
• Os
indicadores da qualidade do ar em São Luís têm piorado ano após ano e, em
muitas situações, ficando piores que os de grandes cidades brasileiras, como
São Paulo.
• Segundo
profissionais de saúde e pesquisadores, poluição estaria levando a doenças e
até mesmo mortes na população.
A superintendente de Planejamento e
Monitoramento da Sema, Hinayara Rodrigues, rebate os resultados e afirma que,
para que haja uma alteração na qualidade do ar, é necessário que a média das
medições em um período de 24 horas seja superior ao limite estabelecido.
“Portanto, é impossível que esse valor ultrapasse o limite mais de 900 vezes em
um único momento. Não se pode considerar apenas um pico isolado ao longo do dia
como um indicativo de alteração na qualidade do ar”, avalia. No último ano,
depois da divulgação dos dados de poluição do ar, a superintendente confirma
que não houve nenhuma intervenção por parte da Sema exigindo das indústrias no
Maranhão alguma mudança nos seus padrões de emissão de poluentes.
Segundo a tabela de referência do Conama, são
consideradas “péssimas” as marcas que superam 800 microgramas de resíduos de
dióxido de enxofre por metro quadrado (m³) de ar no período de 24 horas. Esses
valores significam, para o órgão, que “toda a população pode apresentar sérios
riscos de manifestações de doenças respiratórias e cardiovasculares; e o
aumento de mortes prematuras em grupos de pessoas sensíveis”. Em situações
consideradas “de emergência”, ou seja, as que ultrapassam a concentração de
2.100 microgramas por m³, se recorrentes, podemos chegar próximo ao cenário que
descrevemos no início da reportagem.
Como as medições de dióxido de enxofre são
realizados a cada 24 horas, “significa que todo dia, ao longo de 2023, alguma
estação de monitoramento de qualidade do ar estava no nível de emergência, ou
seja, mais de 2.100 microgramas por m³, para um padrão que o máximo permitido é
de 125”, conclui Zagallo.
• Projeto
de gás natural pode colocar mais poluentes no ar
A solução que tem sido apresentada para o
problema da qualidade do ar na zona rural de São Luís é uma proposta de
transição energética, isto é, produzir energia a partir de outros combustíveis
que não sejam o carvão. Entretanto, o projeto de construção de um terminal de
regaseificação pela empresa LC Terminais Portuários pode ampliar os problemas
da região.
A proposta prevê a instalação de um navio
atracado na ilha da Boa Razão, a 1 km da costa, na baía de São Marcos, cujo
acesso se dá pela ilha de Tauá Mirim. O local, contudo, integra a zona rural e,
de acordo com a Lei 3.253/92, que regulamenta o zoneamento e usos do solo de
São Luís, atividades portuárias são restritas às zonas industriais. Mesmo
assim, no Estudo de Impactos Ambientais/Relatório de Impactos Ambientais
(EIA/Rima) o empreendimento apresenta certidão de uso do solo que autoriza sua
construção na área.
Além disso, o gás natural segue sendo um
combustível fóssil, que emite poluentes gasosos, como o benzeno. Segundo o
médico especialista em saúde da família e comunidade Rogério Logrado, os riscos
associados à inalação do benzeno, por exemplo, estão diretamente ligados ao
desenvolvimento de cânceres, como a leucemia. “O benzeno é uma substância muito
tóxica para a medula, traz o risco do câncer. No caso específico de crianças,
de leucemia aguda”, explica.
Ele detalha que o que pode ocorrer é uma
piora da poluição que já existe na cidade, com “exacerbação de doenças
crônicas, como a asma”, diz.
Procurada, a LC Terminais Portuários afirmou,
por meio de sua assessoria de imprensa, ter “pleno conhecimento do quadro de
poluição do ar no distrito industrial de São Luís e da necessidade urgente de
sua redução. Nosso projeto busca atender a essa demanda, contribuindo
significativamente para a melhoria da qualidade do ar na região”. Quando
questionada sobre a localização da plataforma, a assessoria defendeu que a
realização de análise aprofundada se baseou em aspectos técnicos, sociais,
ambientais e econômicos e que “entre as opções analisadas, a localização
selecionada foi considerada a mais adequada para atender a esses critérios,
equilibrando os interesses do desenvolvimento econômico e social com a
preservação ambiental”.
• Rede
que monitora poluição é pequena, critica ex-gestor
Em 2018, a Secretaria de Estado da Indústria
e Comércio (Seinc) instalou a Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar em São
Luís. A rede é uma condicionante para a instalação e permanência de indústrias
no Distrito Industrial, prevista na Lei Estadual 12.301/2024, além de ser uma
exigência do Conama que os dados sejam disponibilizados ao público.
Apesar disso, a rede esteve fora do ar
durante 170 dias em 2024, tendo retornado sua divulgação em 29 de novembro de
2024, após exigências do Ministério Público. A justificativa para o “apagão de
dados” da rede foi a necessidade de uma auditoria nas estações. Segundo a Sema,
os resultados dessa auditoria já estão prontos, mas aguardam “agenda
institucional” para sua divulgação. Os dados foram solicitados ao gabinete da
secretaria, mas até agora não houve resposta.
As estações foram colocadas nas áreas do Anjo
da Guarda, Vila Maranhão, Pedrinhas, Vila Sarney, Santa Bárbara e Coqueiro –
esta última desativada em fevereiro de 2025. Atualmente, segundo a Sema, São
Luís conta com 16 estações. Segundo a superintendente Hinayara Rodrigues, “para
o tamanho da ilha é um quantitativo muito bom”.
Já o ex-secretário de Indústria e Comércio do
estado Simplício Araújo, gestor que foi responsável pela contratação e
instalação das primeiras seis estações – as únicas públicas até o momento –, a
rede ainda é insuficiente para um controle confiável da qualidade do ar na
ilha. Para ele, seriam necessárias de 50 a 100 estações para que a cidade
tivesse um monitoramento efetivo.
Os dados mais alarmantes são justamente das
seis estações públicas. Por exemplo, em 2023 uma dessas unidades de
monitoramento chegou a identificar em 24 horas uma média de 9.392 microgramas
de dióxido de enxofre – a média máxima permitida por lei são 40 microgramas por
ano, podendo ser possível alcançar um pico de 125 microgramas no período de 24
horas. A título de comparação, a cidade de São Paulo, no mesmo ano, identificou
12 microgramas do poluente, segundo relatório produzido pelo governo de São
Paulo.
Questionada, Rodrigues defende que há uma
leitura equivocada dos indicadores e que a diferença desses números para os
divulgados pelas próprias empresas poluidoras decorre de uma possível falha no
sistema de monitoramento realizado pela rede pública, que utiliza estações de
baixo custo que poderiam gerar imprecisões. Segundo a representante da Sema, as
empresas mantêm um automonitoramento constante e, a partir deles, a secretaria
considera que não há alterações nem motivos para a população ficar alarmada.
A professora, engenheira ambiental e doutora
em engenharia hidráulica e saneamento Natália Pelinson explica que, para
garantir o acompanhamento preciso da poluição do ar, os métodos mais confiáveis
incluem o monitoramento contínuo e em tempo real; o uso de estações de medição
certificadas, seguindo padrões internacionais e com calibração frequente dos
equipamentos; análises laboratoriais periódicas; modelagem matemática da
dispersão de poluentes; e a integração de dados públicos e privados, criando um
banco de informações acessível para a população e pesquisadores. Para a
professora, “apesar de haver diversos programas de monitoramento ambiental, as
bases de dados são de difícil acesso. Muitas vezes, percebemos falhas e
inconsistências nos bancos de dados ambientais disponibilizados por órgãos
nacionais ou estaduais, e isso dificulta a credibilidade dos modos de
monitoramento”.
• Poluição
estaria aumentando mortes por câncer, indica pesquisa
Para a professora Márita Ribeiro, do
Departamento de Geografia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
pesquisadora de saúde e território, há, sim, motivos para preocupação. Ela
reforça que o corpo humano é um dos principais bioindicadores da poluição.
Em suas investigações, ela tem monitorado a
distribuição espacial das doenças respiratórias de forma crescente em São Luís,
com indícios de que a qualidade do ar não está dentro dos padrões indicados
pelo Conama como aceitáveis, principalmente nas áreas de proximidade do
Distrito Industrial. Ela identificou que, no centro, as consequências aparecem
ligadas às fontes móveis de poluentes, que são os automóveis; já na região do
Itaqui-Bacanga, a poluição é consequência das atividades industriais, que é uma
fonte fixa de poluição.
Ao olhar para todo o município, o médico
Rogério Logrado considera que a situação já está em nível alarmante, devido à
recorrência de síndromes respiratórias que têm sido identificadas nas
emergências hospitalares. O médico explica que as partículas tóxicas que
contaminam e poluem o ar têm caráter cumulativo e, portanto, não existe
quantidade segura de contato.
O pneumologista Alcimar Pinheiro chega a
recomendar o uso constante de máscaras respiratórias, de nível industrial, como
as elastoméricas, mencionadas anteriormente. As partículas iniciam um processo
de alojamento “na árvore respiratória e promovem um processo inflamatório
crônico das vias respiratórias. Esse processo inflamatório crônico pode
resultar em várias modalidades de doença”, explica.
“Não sei se tem a ver com a poluição, mas
aqui nós temos um número muito grande de duas questões: as mulheres, a maioria,
eu diria que 60% a 70% das sofrem com problema de endometriose e algumas com
miomas. E o aumento de problemas respiratórios, de um tempo para cá, a gente
viu a questão de sinusite e problemas respiratórios, como aquela gripe, aquela
tosse que não vai mais embora, atacando pessoas, não importa a idade”, destaca
Franclin Freitas, morador da comunidade do Jacamim.
A preocupação de Freitas tem respaldo na
pesquisa da professora Márita Ribeiro, que identificou tumores benignos e
malignos aparecendo de forma recorrente na população de São Luís, que chegam a
ser a terceira causa de mortes na capital, de acordo com dados do DataSUS. Os
miomas uterinos são exemplos dessas chamadas neoplasias, que, segundo a
ginecologista e obstetra Jade Mendonça, também podem estar associados a essa
contaminação pelos resíduos industriais, chegando a causar infertilidade.
“A nossa luta é exatamente que o Estado
brasileiro se debruce para estudar as condições de vida e decida o que é mais
caro: comprar gás de algum outro canto ou manter um contingente de pessoas
dependente do Estado, doente, sem perspectiva de vida, porque é isso que vai
acontecer”, defende Alberto Cantanhede, pescador artesanal.
Fonte: Por Sylmara Durans, Ana Letícia Ferro
e Gisa Carvalho, da Agência Pública

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