O dilema
orçamentário brasileiro
Dependendo do ângulo que se olhe, a Lei
Orçamentária Anual para 2025, aprovada pelo Congresso Nacional na noite de
quinta-feira passada, pode ser vista de duas formas distintas e contraditórias.
Por um lado, ela é absolutamente necessária. Sem o Orçamento, até segunda
ordem, o dinheiro público não pode ser distribuído entre os ministérios e a
administração federal fica desnorteada. Por outro lado, a Lei é completamente
inútil. A possibilidade do texto aprovado pelos parlamentares resistir aos
meses que faltam para o ano terminar e não chegar a dezembro completamente
desfigurada é zero.
Pode apostar: mais dia, menos dia, surgirá
alguém com ares de salvador da Pátria para defender que se mexa no texto
aprovado, que se aperte daqui e se arroche de lá para fazer surgir o dinheiro
que financiará algum programa multimilionário — como o prometido Pé-de-Meia,
que financiará estudantes da rede pública, que ficou fora do orçamento. Com a
popularidade do governo em baixa e as movimentações com vistas às eleições do
próximo ano ganhando velocidade, a tentação de se abrir o cofre para cobrir
despesas populistas é praticamente irresistível — e quem sofrerá com isso, mais
uma vez, será o equilíbrio fiscal que desde 2023 vem sendo prometido e não
entregue pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad.
Seja como for, a Lei Orçamentária está aí e
detalha, tim-tim por tim-tim, como deverão ser gastos os R$ 5,8 trilhões que
manterão a máquina federal em operação. E, por menos que se possa levar essa
previsão a sério, promete chegar ao final do ano não com o déficit zero
prometido por Haddad, mas com um superávit de R$ 15 bilhões — algo em que nem
as emas que circulam pelo gramado do Palácio da Alvorada seriam capazes de
acreditar. A verdade é que pouca gente no Brasil parece levar o Orçamento a
sério. E a principal razão na descrença em relação a um documento tão
importante vem da maneira pela qual ele é tratado pelos responsáveis por sua
elaboração.
JEITINHO BRASILEIRO
Pela importância que tem para o governo e
para a sociedade, a Lei Orçamentária deveria ocupar o topo das prioridades do
Congresso Nacional. Só que não. A não ser pelo fato de conter a previsão dos RS
50 bilhões que deverão ser destinados às tais emendas parlamentares, a
impressão que se tem é que as senhoras e os senhores congressistas não deram a
mínima importância para ela.
Caso tivessem dado, não teriam permitido que
o ano avançasse tanto sem eles que se dessem ao trabalho de votar a matéria.
Note-se: pelo regimento, a previsão de receitas e despesas para este ano já deveria
ter sido aprovada em 2024. Acontece, porém, que ela só veio a se transformar em
lei 78 dias depois do início de 2025. Não é pouca coisa: janeiro passou,
fevereiro foi embora e março já estava para além da metade no momento em que
Suas Excelências resolveram se mexer e aprovar aquilo que tinham a obrigação de
apreciar no ano passado. Em tempo: esses 78 dias de atraso representam pouco
mais de 21% dos 365 dias do ano.
O texto foi aprovado em votação simbólica —
sem a necessidade de manifestação individual pelo placar eletrônico. E o texto
só saiu porque um acordo, negociado pela ministra das Relações Institucionais,
Gleisi Hoffmann, estabeleceu um cronograma para o pagamento das emendas
parlamentares. E mais: também ficou acertado que deputados e senadores terão o
poder de indicar onde deverão ser investidos R$ 11,2 bilhões da verba destinada
a programas do governo.
Mesmo diante de circunstâncias como essas, os
senadores e deputados fizeram questão de reagir, no final da história, como se
estivessem participando de um momento histórico. Ao invés de demonstrar
constrangimento e se desculpar perante a sociedade pelo atraso vergonhoso de um
trabalho que, conforme o regimento, deveria ter sido entregue há um tempão,
eles comemoraram a aprovação do orçamento como se tivessem realizado um ato
heroico!
Em um país sério, o atraso de quase três
meses na aprovação do orçamento teria paralisado a máquina pública e impedido
que o governo gastasse um único centavo. Não haveria dinheiro para nada! Nem
para o pagamento dos salários dos servidores, nem para o pagamento das contas
de luz dos prédios da administração, nem para a compra de remédios para os
hospitais públicos nem para o cafezinho servido nas repartições.
Entretanto, no Brasil tudo se resolve na base
do jeitinho. E, diante dos atrasos que se tornaram habituais para a aprovação
do Orçamento, inventaram uma maneira do governo seguir tocando a vida. O
Executivo pode seguir gastando normalmente, desde que a conta não ultrapasse o
total de 1/12 das despesas previstas no orçamento do ano anterior.
PIRRAÇA E TEIMOSIA
A julgar pelo início da história, pode-se
dizer que a novela em torno da aprovação do orçamento deste ano teve um final
inesperado. No começo, tudo parecia andar às mil maravilhas. Tanto assim que o
Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, documento que antecede à elaboração
do orçamento, foi encaminhado pela ministra do Planejamento, Simone Tebet ao
Congresso no dia 19 de fevereiro de 2024 (isso mesmo, 19 de fevereiro!).
Os meses foram passando e o texto ficou por
lá, quieto como um urso em hibernação, sem que nenhuma alma responsável se
encarregasse de pô-lo para andar. No final das contas, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias só foi votada na Comissão Mista de Orçamento no dia 17 de
dezembro. Ou seja, no apagar das luzes do exercício. No dia 18 de dezembro, na
véspera de completar dez meses de sua chegada ao Congresso, a Casa Legislativa
se dignou a aprovar a LDO. Só no dia 30, ou seja, véspera do réveillon, a Lei
foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A razão para essa lerdeza toda é tão óbvia
que parece estar pichada em letras garrafais nas paredes do Congresso Nacional.
Os senhores parlamentares resolveram fazer birra, pirraça, teimosia, ou seja lá
o qual for o nome que se dê a isso, porque o ministro Flávio Dino, do Supremo
Tribunal Federal, endureceu o jogo em relação a um grupo especialmente suspeito
de emendas parlamentares. O alvo de Dino eram aquelas emendas que são
propostas, negociadas, tramitam e recebem são pagas com dinheiro público sem
estarem sujeitas a qualquer controle ou possibilidade de rastreamento.
Como Dino mandou suspender a farra, Suas
Excelências insurgiram-se. E prometeram não votar o orçamento de 2025 enquanto
não recebessem uma garantia de que poderiam seguir dispondo do dinheiro do povo
da forma que bem entendessem, sem que ninguém os molestasse. No final, os
parlamentares alteraram o procedimento para execução dessas emendas para que
pudessem seguir fazendo exatamente o mesmo que já faziam desde os governos de Dilma
Rousseff e de Jair Bolsonaro: gastar dinheiro público a rodo sem dar satisfação
a ninguém.
SUSHI E SAQUÊ
Antes que o texto fosse levado a votação,
começou a circular em Brasília a notícia de que o documento, embora
praticamente pronto para ir a plenário, só deveria ser votado no início do mês
de abril. A razão para isso era para lá de prosaica. O presidente do Senado,
Davi Alcolumbre (União/AC), e o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta
(Republicanos/PB) estavam com viagem marcada para o Japão e o Vietnã, na
comitiva do presidente Lula. Sendo assim, deixariam o Orçamento de lado e só
voltariam a se preocupar com ele quando retornassem ao Brasil. Afinal, quem já
esperou tanto tempo pela conclusão do Orçamento, poderia perfeitamente esperar
mais duas ou três semanas, não é mesmo?
A história pegou mal. Muito mal. Além de
Alcolumbre e Motta nada terem a fazer em Tóquio, a não ser comer sushi e tomar
umas doses de saquê, eles ainda estavam pensando em deixar para depois da volta
um trabalho que deveria estar concluído há muito tempo. Aliás, eles nem tinham
que estar na comitiva. A viagem de Lula tem caráter comercial e se destina a
abrir as portas do bilionário mercado japonês e do emergente mercado vietnamita
para a carne da JBS, os aviões da Embraer, o minério da Vale e a soja do
Centro-Oeste — tarefas com as quais, convenhamos, os parlamentares não podem
nem devem se envolver diretamente. Diante das reações negativas e das críticas
que começaram a pipocar, os dois mudaram de ideia. Não desistiram de embarcar
na caravana, mas pelo menos resolveram viajar sem deixar para trás uma
pendência que já estava se tornando incômoda.
DESPESAS OBRIGATÓRIAS
Quem lê o texto elaborado pelo relator da
matéria, senador Ângelo Coronel (PSD/BA), fica com a impressão de estar diante
de um documento irrepreensível. O texto demonstra atenção com questões
minuciosas e se mostra atento aos interesses dos parlamentares, de todos os
partidos e de todas as regiões do país. O documento, porém, se tornaria mais
realista se trouxesse aquela advertência que, de vez em quando, aparece em
filmes inspirados em fatos reais. “Esta é uma obra de ficção. Qualquer
semelhança com a realidade terá sido mera coincidência”.
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Pelo que tem sido observado nos últimos exercícios,
é natural que o orçamento seja desfigurado ao longo do ano. Muitas das despesas
previstas deixam de ser pagas. Outras, que não estavam previstas, vão sendo
criadas. Além disso, há um grupo importante de compromissos de execução
obrigatória, que independem da intenção do Executivo ou do jogo de forças no
Legislativo. Trata-se das despesas obrigatórias.
Elas são lideradas pelos repasses
constitucionais para os entes federativos e os demais poderes, pelas despesas
com pessoal, pelos encargos sociais e pelos benefícios da previdência social. O
problema é que, de acordo com a legislação brasileira e com a falta de
interesse em zelar pelo interesse público, as despesas obrigatórias crescem por
si só, sem que o governo ou quem quer que seja consiga evitar que elas subam.
CURRAIS ELEITORAIS
A situação não é fácil, e a pressão dos
gastos obrigatórios sobre as contas públicas é permanente — e a consequência do
estouro dessa meta é a inflação, que a todo instante tem ameaçado fugir do
controle. O problema é que nem o governo atual nem os outros que vieram antes
dele moveram uma palha para alterar esse cenário. Nenhuma autoridade do país,
até hoje, parou para discutir seriamente o impacto sobre os gastos públicos dos
privilégios absurdos que o Poder Judiciário, que custará ao país R$ 59,9
bilhões em 2025, concede a seus integrantes.
Um levantamento publicado pelo portal UOL na sexta-feira passada revela que dez
juízes ligados ao Tribunal de Justiça do estado de Rondônia tiveram no ano
passado vencimentos anuais que variaram entre R$ 2 milhões e R$ 2,5 milhões.
Oito desses dez meritíssimos já estão aposentados e carregarão por toda vida os
privilégios que tinham na ativa.
Esses e outros pontos já foram mencionados
aqui e em outros lugares — mas há um outro aspecto cada vez mais preocupante
que não pode ficar de fora. O orçamento aprovado na quinta-feira prevê nada
menos do que R$ 1,7 trilhão (ou seja, quase 30% de tudo que sairá do caixa do
governo) para a rolagem da dívida pública. Essa necessidade, é evidente, seria
muito menor se a gastança e a falta de seriedade na destinação do dinheiro
público não tivessem imposto ao Brasil a taxa de juros mais elevada do mundo.
Elevada pelo Copom, do Banco Central, para
14,25% ao ano na reunião da semana passada, a taxa Selic deve chegar a 15% em
maio. Essa é, no final das contas, a consequência da falta de seriedade e da
atenção exclusiva aos próprios interesses com que a maioria do Congresso trata
as finanças públicas. E o povo? Ora, cada vez fica mais claro que o povo, em
meio a toda essa história, é apenas um detalhe...
Fonte: Por Nuno Vasconcellos, em O Dia

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