Metais tóxicos e aromatizante de vela: o que
tem nos 'vapes' vendidos no Brasil, segundo pesquisa inédita
Metais
tóxicos presentes no circuito elétrico das versões descartáveis dos cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes,
contaminam o líquido inalado por quem usa esses dispositivos ainda antes de
eles serem acionados pela primeira vez.
É isso
que apontam os resultados preliminares de um novo estudo do Laboratório
de Química Atmosférica (LQA) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio), obtido com exclusividade pela BBC News Brasil.
Concentrações
de cobre, estanho, níquel e zinco em nível "muito acima do esperado para
qualquer tipo de material que vai ser inalado" foram detectadas em
praticamente todos os 15 vapes descartáveis analisados por
Carlos Leonny Fragoso, doutorando em química, e sua orientadora, a professora
Adriana Gioda.
Especialistas
em saúde têm chamado
atenção há anos para as substâncias tóxicas que o vapor dos cigarros
eletrônicos carregam depois que o líquido é submetido a altas temperaturas.
A
pesquisa aprofunda o alerta, sinalizando que a presença de substâncias que podem prejudicar o
organismo estão
presentes em alguns casos ainda antes de a bateria começar a funcionar.
Além dos metais, a análise também mapeou nas
amostras quase uma dezena de compostos adicionados com o intuito de deixar o
sabor dos vapes mais adocicados e refrescantes — realçadores
de sabor e até um composto usado geralmente como aromatizante de vela —, que
também podem ser prejudiciais à saúde quando inalados de forma contínua.
Os pesquisadores contam que tinham
expectativa de encontrar metais tóxicos nos vapes descartáveis.
Como o líquido está em contato direto com os metais e circuitos do dispositivo,
era razoável supor que ele pudesse ser contaminado pelo que eventualmente se
desprendesse desses materiais.
Ainda assim, eles se surpreenderam com o que
viram nos resultados.
"A gente esperava que fosse encontrar
uma quantidade maior de metal, mas eu não esperava que fosse tanto."
Além dos descartáveis, o estudo examinou 14
líquidos de vapes recarregáveis, outra modalidade na qual os
cigarros eletrônicos são vendidos, em que tanto a bateria quanto o liquido do
reservatório podem ser recarregados.
Nesse caso, não foram encontrados metais
tóxicos em níveis quantificáveis, possivelmente porque o líquido, por ser
vendido separadamente, não entrou em contato com o circuito elétrico do
aparelho antes de ser analisado.
Isso não significa, contudo, que os vapes recarregáveis
não possam passar a conter metais tóxicos depois de a carga — o "juice"
ou "e-líquido", como também é chamada — ser acoplada ao dispositivo e
passar a ficar então em contato com os circuitos e sistemas de aquecimento,
alerta Fragoso.
O cientista destaca ainda que ambos os
líquidos apresentaram "toxicidade significativa" nos testes com
leveduras e células cardíacas de camundongos (cardiomioblastos), usadas nesse
tipo de pesquisa para avaliar o potencial de dano das substâncias.
Todas as amostras desencadearam respostas de
estresse oxidativo das células, processo que contribui para a ocorrência de danos
celulares e de inflamação e que está associado a diversas doenças crônicas,
incluindo doenças cardiovasculares e respiratórias.
O químico ressalva que o teste de toxicidade
está distante de um estudo clínico, que pode sinalizar com mais assertividade o
impacto dos cigarros eletrônicos na saúde humana.
Mas ele considera os resultados importantes
por reiterarem os riscos no consumo desses produtos, especialmente quando ainda
faltam estudos para compreender melhor os danos que eles podem causar ao
organismo.
Parte disso se deve ao fato de que os
cigarros eletrônicos são relativamente novos. Surgiram inicialmente na China,
no começo dos anos 2000, com um aspecto que emulava o formato dos cigarros
tradicionais.
Com o tempo, foram ganhando novos formatos —
a aparência de uma caneta, um pen drive e, mais recentemente,
um pequeno tanque.
Os dispositivos, que podem ser descartáveis
ou recarregáveis, têm uma bateria interna, que aquece o líquido a temperaturas
que podem chegar a 350°C, transformando-o em aerossol, que é inalado pelos
usuários.
A venda de cigarros eletrônicos é proibida no
Brasil desde 2009 — todos os produtos vendidos aqui são contrabandeados.
Os vapes são, entretanto,
largamente consumidos no país, especialmente por jovens.
Não há estatísticas precisas sobre o volume
de cigarros eletrônicos que circulam no território nacional, mas um balanço
recente das apreensões feitas pela Receita Federal no porto de Santos dá uma
ideia da dimensão: mais de 1,5 milhão de unidades apenas entre outubro e
dezembro do ano passado.
- Realçador
de sabor e até aromatizante de vela
As embalagens dos vapes geralmente
listam apenas quatro ingredientes — nicotina, aromatizantes e os solventes
propilenoglicol e glicerina vegetal, que por si só já despertam preocupação nos
profissionais da saúde, dado que a nicotina vicia e que os dois solventes,
quando submetidos a altas temperaturas, produzem substâncias tóxicas como
acroleína e formaldeído.
Especialistas têm alertado, entretanto, que
muitos podem incluir outras substâncias prejudiciais ao organismo.
Um estudo preliminar realizado pelo
Laboratório de Pesquisas Toxicológicas da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) em parceria com a Polícia Científica em 2024 encontrou
octodrina em dez amostras apreendidas, substância com estrutura similar à
anfetamina, uma droga sintética.
Fragoso e Gioda detectaram a presença de mais
de 20 substâncias no conjunto de amostras analisadas no Laboratório de Química
Atmosférica (LQA) da PUC-Rio, das quais cerca de 10 foram identificadas.
Muitas delas têm a função de dar sabor
ao vape — são compostos extraídos de óleos essenciais que, se
para um leigo podem parecer inofensivas, podem fazer mal à saúde quando
inalados.
Dependendo da temperatura em que são
aquecidos, alguns deles podem formar acroleína, exemplifica Fragoso, que é
muito encontrada em frituras. Não causa problemas quando é ingerida, mas pode
ser danosa ao corpo se respirada de forma contínua.
A análise detectou uma série de substâncias
tradicionalmente usadas pela indústria alimentícia como saborizantes ou
realçadores de sabor.
Entre eles estava a vanilina, muito usada
para dar aroma de baunilha a diversos produtos. O composto apareceu em
praticamente todas as amostras, conferindo um gosto mais adocicado e
potencializando o sabor dos vapes.
Outro composto praticamente onipresente foi o
mentol, que a indústria de alimentos usa em produtos com sabor de menta. É
outro poderoso potencializador de sabor no universo dos cigarros eletrônicos,
adicionado para dar refrescância — e que pode irritar as vias aéreas.
Os pesquisadores se surpreenderam com a
quantidade de substâncias usadas para tornar o sabor do cigarro eletrônico mais
agradável. Chamou atenção um composto tradicionalmente usado pela indústria
como aromatizante de vela e outro com aroma de banana.
"Nenhum cigarro da amostra tinha sabor
de banana, ele provavelmente foi adicionado para dar mais doçura", diz
Fragoso.
- 'Pior
que cigarro convencional'
Para a pesquisadora da Fiocruz e membro
titular da Academia Nacional de Medicina Margareth Dalcolmo, o estudo reitera o
conjunto de evidências sobre os riscos que os cigarros eletrônicos representam
à saúde.
A pneumologista considera os vapes ainda
piores do que os cigarros tradicionais.
"Geram dependência mais rapidamente e
geram uma dependência mais pesada", destaca. Dalcolmo faz referência a
pesquisas que apontam que a concentração de nicotina dos vapes pode
chegar a cem vezes a do cigarro convencional e que o vício pode se dar em
apenas cinco dias.
"Tenho atendido adolescentes que me
dizem: 'Doutora, eu durmo com o vape do lado da minha cama e,
antes de levantar para escovar os dentes, eu já uso'."
O consumo de cigarros eletrônicos, ela
completa, está ligado ao aumento do risco para o desenvolvimento de doenças
como enfisema pulmonar, problemas pulmonares obstrutivos crônicos e até câncer
de pulmão.
Existe inclusive uma doença pulmonar
específica associada a eles já reconhecida pela Organização Mundial de Saúde
(OMS), conhecida como EVALI, sigla para "E-cigarette or Vaping product
use-Associated Lung Injury" ("Lesão Pulmonar Associada ao Uso de
Cigarro Eletrônico", em tradução literal).
O Brasil não tem ainda, contudo, um registro
para acompanhamento do número de casos e mortes causadas pela EVALI.
A médica é uma das vozes que têm se
posicionado de forma contundente contra o Projeto de Lei atualmente em
tramitação no Senado (PL 5008/2023) que discute a regulamentação dos cigarros
eletrônicos.
"Quem defende a regulamentação
argumentando que vai aumentar a arrecadação de impostos ignora que o valor
seria muito inferior ao que se gastaria por conta dos problemas de saúde das
pessoas afetadas", diz Dalcolmo.
A Associação Brasileira da Indústria do Fumo
(Abifumo) é um dos grupos que têm defendido a regulamentação dos vapes no
país. À reportagem, Lauro Anhezini, conselheiro da entidade, argumenta que
parte dos problemas identificados em dispositivos que circulam no Brasil são
resultado da falta de regras para a venda desses produtos.
"Você vai ter que ter uma medição
adequada de quais são as emissões, por exemplo, vai ter que ter um controle de
temperatura de aquecimento do líquido e dos níveis de nicotina",
exemplifica.
O conselheiro, que preferiu não comentar os
resultados do estudo por não ter tido acesso a eles, afirma que os vapes "não
são isentos de risco", citando a presença de nicotina, que pode causar
dependência, e de "substâncias químicas que podem ser perigosas à
saúde". Defende, contudo, que eles são menos danosos à saúde do que os
cigarros convencionais.
Anhezini, que também é diretor de assuntos
regulatórios e científicos da BAT Brasil (antiga Souza Cruz), afirma que
empresas como a BAT Brasil e Philip Morris "têm metas públicas, inclusive
listadas em bolsa, para parar de comercializar cigarros [convencionais]".
A BAT, ele exemplifica, colocou como meta que
até 2035 metade do faturamento venha de "alternativas de menor
risco", entre elas os cigarros eletrônicos.
"Isso passa pela migração massiva de
consumidores de cigarro convencional para alternativas de menor risco."
Fonte: BBC News Brasil

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