Crianças
e adolescentes são mais vulneráveis às doenças transmitidas por mosquitos
Há
anos, a ciência avisava. Desequilíbrios ambientais provocados, principalmente,
pelo avanço da atividade humana no habitat de animais selvagens poderiam
desencadear uma crise sanitária. Ninguém escutou e, em 2020, o mundo parou
devido a um vírus cuja origem provável foi um mercado de carnes de caça — a
maioria, ilegal. A pandemia matou mais de 4,4 milhões de pessoas no planeta. O
contingente de vítimas letais entre crianças e adolescentes é estimado em 0,4%
do total. Mais de 10 milhões ficaram órfãos e, no Brasil, nos primeiros 24
meses, em média morreram dois meninos e meninas com menos de 5 anos por dia,
segundo um levantamento do Observa Infância, apoiado pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz).
A
ciência continua a alertar. A degradação ambiental e a crise climática não só
favorecem o surgimento de patógenos, como devem agravar a incidência e a
letalidade de infecções conhecidas. Extremos de temperatura e mudanças no
padrão de precipitações alteram o volume e a distribuição dos principais
vetores de enfermidades como dengue e malária. Além disso, o aumento de
fenômenos como secas e enchentes também interferem na multiplicação de
patógenos e de doenças relacionadas à água, incluindo diarreia, leptospirose e
intoxicação alimentar.
"As
crianças são mais suscetíveis às doenças infecciosas, que se tornam mais
prevalentes com as mudanças climáticas. A elevação das temperaturas e a
intensificação de períodos chuvosos desfavorecem o controle de mosquitos
vetores, como o Aedes aegypti (dengue) e o Anopheles sp (malária)",
ressalta a pediatra Isabel Siqueira, da Clínica PedStar, em Brasília.
"Devido ao seu sistema imunológico em desenvolvimento, quando infectadas,
as crianças apresentam maior risco de complicações graves, incluindo
desidratação e falência de órgãos."
• Expansão
Hoje, a
Organização das Nações Unidas (ONU) estima que uma em cada quatro crianças,
globalmente, já esteja exposta a doenças transmitidas por vetores. "O
número aumentará, à medida que as condições climáticas favoráveis aos mosquitos
expandem", destaca a publicação Introducing the Children's Climate Risk
Index, do Fundo da ONU para a Infância, o Unicef.
Um
estudo da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres divulgado pela
revista The Lancet Planetary Health calcula que, no ritmo atual das emissões de
gases de efeito estufa, principais responsáveis pelas mudanças climáticas, 8,4
bilhões de pessoas podem contrair malária e dengue até o fim do século.
Crianças com menos de 5 anos representavam, em 2019, 67% dos óbitos globais
pela doença transmitida pelo Anopheles. Já as infecções transmitidas pelo Aedes
aegypti aumentaram oito vezes em duas décadas e, com o aumento global da
temperatura, expandem-se para as latitudes mais elevadas.
"É
uma calamidade no mundo inteiro", define o médico epidemiologista Fernando
Celso Fernandes de Barros, cujo trabalho enfatiza a saúde materno-infantil.
"Além das doenças transmitidas por mosquitos, temos as diarreias
provocadas tanto por bactérias quanto por vírus, que acompanham o aumento da
temperatura", recorda Barros, também membro da Academia Brasileira de
Ciências (ABC). A água contaminada eleva o risco de outras enfermidades graves:
"O contato com águas contaminadas em eventos climáticos podem causar
diversas doenças, como leptospirose, hepatite A, tétano acidental, febre
tifoide, cólera, amebíase, giardíase, e, indiretamente, até dengue",
enumera Tabatha Gomes, infectologista pediátrica do Hospital Anchieta, em
Brasília.
• Enchentes
Situações
como enchentes — que aumentam com as mudanças nos padrões de chuvas e devem se
multiplicar devido à elevação do nível do mar — expõem especialmente crianças
às diarreias graves. Um estudo publicado na revista Jama com 639 mil meninos e
meninas com menos de 5 anos em países pobres e em desenvolvimento encontrou uma
associação significativa entre os alagamentos e o risco de doenças diarreicas,
com pico de casos quatro meses após o início.
Mas não
são apenas as águas contaminadas que ameaçam os pequenos. Pesquisadores da
Universidade de Yale, nos Estados Unidos, encontraram taxas mais altas de
diarreia entre crianças sob um regime de seca prolongada. Aquelas sem acesso
imediato a água e sabão foram as mais prejudicadas, embora o saneamento
adequado não tenha prevenido o risco, diz o estudo, publicado na revista Nature
Communications.
Com
base em dados de 1,3 milhão de menores de 5 anos vivendo em 51 países na África
Subsaariana, Sul e Sudeste Asiático, América Latina e Caribe, os cientistas
constataram que a estiagem leve aumentou em 5% o risco de diarreia nas
crianças, e em 8% nas secas mais severas. Segundo os autores, a falta de
precipitação pode aumentar a concentração de bactérias e vírus patógenos em
fontes de água. Além disso, quando o recurso é escasso, lembram, o consumo é
prioridade sobre a higiene pessoal. O acesso a boas instalações sanitárias
reduziu, embora moderadamente, a chance da doença.
"Você
não pode eliminar completamente o impacto da seca no risco de diarreia,
especialmente em um clima que terá mais seca no futuro", disse, em um
comunicado, Kai Chen, professor no Departamento de Epidemiologia da Escola de
Saúde Pública de Yale e autor sênior do estudo. "Precisamos enfrentar a
causa raiz das mudanças climáticas e reduzir as emissões de gases de efeito
estufa."
• Micróbios
Cada
vez mais frequente em um planeta aquecido e seco, os incêndios florestais
também elevam o risco de enfermidades microbianas, segundo um artigo publicado
na revista Science. Os autores explicam que a incidência de doenças infecciosas
no trato respiratório "aumenta drasticamente" após a exposição à
fumaça. "Incêndios florestais são uma fonte de bioaerossol, partículas
transportadas pelo ar, feitas de células fúngicas e bacterianas e seus
subprodutos metabólicos", diz Leda Kobziar, pesquisadora da Universidade
de Idaho, nos Estados Unidos, e coautora do estudo.
Uma vez
suspensas no ar, partículas menores que 5 micrômetros podem viajar centenas ou
até milhares de quilômetros, destaca a cientista, diretora do programa de
mestrado em Recursos Naturais da instituição. As crianças, segundo
especialistas, são mais vulneráveis aos efeitos negativos da inalação da fumaça
de incêndios florestais. Além de passarem períodos mais prolongados ao ar
livre, o sistema imunológico está em desenvolvimento.
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Três perguntas para Werciley Saraiva Vieira Junior, coordenador de Infectologia
do Hospital Santa Lúcia
• De que forma o clima impacta na
incidência e na gravidade de doenças infecciosas?
Mudanças
climáticas atuam basicamente na alteração dos vetores; ou seja, facilitam o
aumento de animais na transmissão, alteram as condições sanitárias e favorecem
o surgimento de infecções, principalmente alimentares. As alterações climáticas
podem prejudicar a conservação de alimentos e aumentar a taxa de contaminação
no uso daqueles contaminados. Além disso, elevam a chance de doenças
infectocontagiosas, ao facilitar a transmissão.
• Crianças costumam apresentar quadros
mais graves de doenças infecciosas?
Crianças
e idosos, os extremos etários, podem ter infecções mais graves devido à
imaturidade ou à senescência do sistema imunológico. Existem algumas vacinas
que podem ser usadas como aliados para dar proteção, mas sabemos que essas
populações de extremos etários, se tiverem outros fatores de fragilidade, como
desnutrição e comorbidades, podem ser atingidas de formas mais graves.
• Quais os principais riscos,
especialmente para a saúde das crianças, das enchentes, que têm ocorrido com
mais frequência no Brasil?
As
enchentes favorecem criadouros de vetores, um exemplo são os ratos. Os ratos
que estão na parte subterrânea vão para a superfície e, com isso, aumenta a
chance de leptospirose. Em ambientes muito úmidos, há o risco de aumento de
fungos e bactérias. O de enchente facilita muitas infecções associadas à
contaminação das águas e dos alimentos.
Fonte:
Correio Braziliense

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