Como a ditadura militar vitimizou crianças no
Brasil
Vencedor
do Oscar de melhor filme internacional, o longa
brasileiro Ainda Estou Aqui comoveu o mundo
ao mostrar as vítimas indiretas de um regime ditatorial que perseguiu, torturou
e matou opositores. Na trama, baseada na história real contada pelo
escritor Marcelo Rubens Paiva sobre sua
família, o foco não está direcionado ao engenheiro e político Rubens Paiva
(1929-1971), assassinado pelas forças de repressão. Mas sim no impacto que o
desaparecimento dele teve sobre sua família.
Em um
esforço de pesquisa recente, cada vez mais histórias de violências contra
crianças durante os anos do regime militar (1964-1985) têm
sido trazidas à tona. Lançado nesta semana, Crianças e Exílio: Memórias
de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar, traz 46 histórias narradas
pelos seus protagonistas — hoje adultos que lidam com as lembranças
traumatizadas dos momentos em que suas famílias foram perseguidas pela
repressão.
"Ao
trazer a perspectiva das crianças afetadas pela ditadura, um assunto ainda
pouco tratado, o livro desmistifica, desromantiza a ideia do exílio",
comenta a professora universitária e escritora Nadejda Marques, uma das
organizadoras do livro, que também contém o seu relato. Ela é filha do
militante Jarbas Marques (1948-1973), morto com outros cinco integrantes do
grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Especializada
em direitos humanos, Nadejda Marques pesquisa e leciona na Universidade
Wesleyan, nos Estados Unidos. Antes, ela publicou a autobiografia Nasci
Subversiva. Com apenas 15 meses de idade, exilou-se com a mãe, Tércia
Rodrigues Mendes (1951-2023). Primeiro viveu no Chile. Depois do golpe militar que instaurou a
ditadura lá,
em setembro de 1973, tornaram-se refugiadas políticas na Suécia. Então se
mudaram para Cuba, onde passaram cinco anos.
"O
exílio foi uma punição, uma violência. Contra as crianças e os pais dessas crianças,
as famílias exiladas", comenta. "Minha mãe nunca me escondeu nada.
Desde pequena, ela me contava como meu pai foi torturado e assassinado",
recorda Marques.
Outra
das autoras do livro, do qual também é organizadora, a matemática Helena Dória
Lucas de Oliveira é professora na Universidade do Rio Grande do Sul. Filha do
professor de história Antônio Lucas de Oliveira (1930-2016) e da enfermeira
Ruth Dória Lucas, hoje com 90 anos, ela viveu uma década de sua infância e
adolescência no exílio — no Chile, em Cuba e em Guiné-Bissau.
"Quando
criança, eu via minha mãe e minha irmã cochichando, espiando pela persiana da
janela da sala, conversas com ar de preocupação, durante o período que o pai
esteve preso", recorda. "No Chile, vivemos momentos de perigo, de
estarmos escondidos em uma casa que ainda estava em construção, tendo que
brincar sem fazer barulho. Sair à rua, caminhando rápido, sem falar para não
sermos identificados como estrangeiros…"
"Mas
não compreendia como perseguição política. Pai e mãe não explicitavam o que
estava acontecendo. Eu brincava, obedecia aos adultos, mas brincava, brincava
em qualquer brecha de tempo que podia. Essa compreensão foi sendo construída
com a idade", reflete Oliveira.
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Violência, resistência e solidariedade
Para Marques,
é importante ressaltar que as histórias de exilados têm em comum o fato de que
essas experiências "não são apenas a expressão da violência de
Estado", mas também a materialização de "resistência", além de
ser uma demonstração de "solidariedade internacional". "Foi essa
solidariedade internacional que, literalmente, salvou vidas, salvou nossas
vidas. Cuidou das crianças, nutriu as crianças, educou-as de forma humanista.
Essa ideia de solidariedade, eu penso, é extremamente relevante para o contexto
do mundo atual."
O
trauma ficou, sem dúvida. Nos últimos anos, reuniu-se em um grupo de WhatsApp
67 pessoas que foram crianças exiladas no período. Marques conta que todos
foram convidados a integrar o livro, mas somente 46 toparam. Os demais, segundo
ela, ainda não se sentem preparados psicologicamente para lidar com essa dor.
No
texto de apresentação à obra, o jornalista Caco Barcellos ressalta que estes
indivíduos foram "crianças escondidas, caladas, silenciadas, banidas,
ultrajadas pela ditadura empresarial militar de 1964" e sofreram
"perseguições brutais" simplesmente "por serem filhos dos
militantes revolucionários de esquerda".
"Meio
século ainda não apagou do cérebro daquelas crianças os gritos da tortura, nem
o ruído do fuzilamento de seus pais, no dia em que se tornaram órfãs dentro de
casa", diz Barcellos, enfatizando que "a maioria mantém viva a
lembrança do banimento", da "expulsão do Brasil, no colo de seus
pais".
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Crianças sequestradas e torturadas
O
jornalista Eduardo Reina pesquisou outro caso de violência perpetrada pela ditadura contra
crianças: os sequestros. No livro Cativeiro Sem Fim, publicado em
2019, ele contou as histórias de 19 crianças que foram sequestradas e adotadas
ilegalmente por famílias de militares ou de pessoas de alguma forma ligadas às
Forças Armadas durante a ditadura.
De lá
para cá, essa conta aumentou. "Desde o lançamento do livro, fui procurado
por mais de 50 pessoas que também dizem ter sido vítimas desse crime cometido
pelos militares na ditadura", comenta ele.
"Eram
filhos e filhas de militantes de esquerda. Seus pais eram considerados inimigos
da pátria", diz Reina. "Mas não bastava perseguir, prender, torturar,
matar ou desaparecer com eles. Era necessário exterminar tudo e todos que
estava ao seu redor. Por isso seus filhos eram sequestrados." Sua pesquisa
também se tornou uma exposição online no Museu das
Memórias (in)Possíveis.
Em 2014
a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo publicou o
livro Infância Roubada – Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no
Brasil. A obra trouxe relatos de 44 crianças que, filhos e filhas de
militantes de esquerda, acabaram sendo presos junto com seus pais.
Um
exemplo trágico contado na obra é a história de Carlos Alexandre Azevedo, o
Cacá, filho do jornalista e cientista político Dermi Azevedo (1949-2021). Em
1974, ele tinha pouco mais de 1 ano e acabou sendo levado para as dependências
do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), onde foi torturado
com os pais, militantes de esquerda. Ele nunca se recuperou do trauma e, em
2013, suicidou-se. Tinha 37 anos.
¨ O ato que marcou o
apoio popular ao golpe de 1964
"Verde
e amarelo, sem foice nem martelo", "vermelho bom, só o batom",
"abaixo os imperialistas vermelhos", "o Brasil não será uma nova
Cuba". Essas foram algumas das frases de efeito gritadas na Avenida
Paulista. Não só recentemente, em eventos em defesa do ex-presidente Jair
Bolsonaro. Mas também em uma megamanifestação ocorrida há 60 anos que entrou
para a história: a Marcha da Família com Deus pela Liberdade — ou simplesmente
Marcha Paulista ou ainda Marcha de São Paulo.
Calcula-se
que cerca de 500 mil pessoas caminharam da Praça da República à Praça da Sé, no
centro de São Paulo. O ato, convocado por grupos conservadores como a Campanha
da Mulher pela Democracia, a União Cívica Feminina, a Fraterna Amizade Urbana e
Rural, a Sociedade Rural Brasileira, entre outros, contou com apoio da
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e simpatia de boa parte
da grande imprensa.
"A
Marcha ajudou a mobilização pelo golpe, contribuiu para difundir sua
justificativa principal, na linha do anticomunismo e antiesquerdismo",
contextualiza o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). "Sem dúvida, o principal resultado foi passar a
impressão de que havia muita reação ao governo Jango e, principalmente, à sua
aliança com a esquerda. E essa indisposição havia mesmo, principalmente nas
classes médias e altas."
Aquele
evento de 19 de março de 1964 e uma série de outros que se repetiram em todo o
país até o início de junho tinham em comum um discurso contra o que eles
classificavam como "ameaça comunista". No entendimento dos
organizadores das marchas, o Brasil sob a presidência de João Goulart, o Jango,
estaria na iminência de se tornar um país comunista, principalmente depois do
anunciado no Comício da Central, ocorrido em 13 de março daquele ano, em que
Jango detalhou um pouco das chamadas reformas de base, assinando dois decretos
bastante simbólicos.
O
historiador Leonardo Leal Chaves, da Universidade de Coimbra, em Portugal,
pontua que a marcha em São Paulo conseguiu reunir um número bem maior de
manifestantes do que o Comício da Central, que contou com
cerca de 200 mil participantes, de acordo com estimativas.
Para
especialistas, tais atos conservadores foram o apoio popular ao golpe de Estado
que ocorreria poucos dias mais tarde, em 31 de março. "Sem dúvida, a
marcha sustentou o golpe que viria a acontecer", afirma o historiador
Victor Missiato, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que pesquisou os
acontecimentos prévios ao golpe de 1964.
Missiato
avalia que, em comum, aquela série contou com "várias manifestações em
diversos locais do país, com apoio de milhares de pessoas, nem todas iguais,
mas todas em torno de uma visão conservadora, redentora e, principalmente, de
que os militares deveriam intervir na política, na luta, segundo a visão deles,
contra o ‘comunismo de João Goulart'".
De
acordo com Missiato, ali foi criada a "atmosfera golpista", com
forças "dos dois lados esticando a corda da democracia". "No
caso da direita, com o apoio do aparato militar, parte da opinião pública e
muitos elementos da sociedade civil, sem dúvida. Tiveram mais apoio
institucional do que o próprio presidente na época e isso foi base de sustentação
do golpe de 1964", afirma ele.
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Fé e política
Sobre a
marcha em si, Missiato destaca o engajamento da união cívica feminina.
Católicos se engajaram principalmente porque viram no discurso de Jango, no
comício, uma ameaça à religião. Inicialmente, o nome do ato seria Marcha de
Desagravo ao Santo Rosário — mas quando se entendeu que isso excluiria os que
não fossem católicos, optou-se por um título mais abrangente.
De
qualquer forma, o mote religioso do ato era "família que reza unida
permanece unida". "A organização do movimento foi da sociedade civil,
mas havia, por trás, dinheiro de grupos de empresários", acrescenta
Missiato.
A
grande imprensa, em geral, apoiou. "O anticomunismo na mídia era muito
presente e se imaginava que fosse necessária a intervenção militar para que os
supostos planos golpistas de Goulart fossem evitados", explica o
historiador.
Motta
acrescenta que o ato em São Paulo serviu de inspiração para outras mobilizações
pelo país, voltadas a aumentar a pressão contra os supostos comunistas. Em seu
livro Em guarda contra o perigo vermelho — o anticomunismo no Brasil,
ele coloca a marcha como "o desdobramento mais importante da reação ao
comício [da Central] ".
"A
Marcha da Família […] se constituiu em evento de grande impacto em favor da
mobilização antiesquerdista. Sua preparação, por sinal muito cuidadosa, reuniu
toda a elite paulistana em verdadeira frente anticomunista anti-Goulart, que
conseguiu levar para a região da Praça da Sé enorme massa humana", relata
o livro. "A importância do ato político pode ser medida num detalhe
curioso. O tradicional O Estado de S. Paulo, pela primeira vez em
muitos anos, noticiou um acontecimento nacional em primeira página."
Naquela época, era praxe o jornal privilegiar notícias internacionais.
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O anticomunismo
Motta
ressalta que "o caráter anticomunista" do ato foi explicitado pelos
organizadores nas acusações de que "os vermelhos" estariam atentando
"contra os valores mais caros à tradição brasileira".
O padre
Benedito Mário Calazans (1911-2007), senador da República, foi uma das vozes
conservadoras no palanque. "Hoje é o dia de São José, padroeiro da
família, o nosso padroeiro. Fidel Castro é o padroeiro de [Leonel] Brizola. É o
padroeiro dos comunistas. Nós somos o povo. Não somos do comício da Guanabara.
Aqui estão mais de 500 mil pessoas para dizer ao presidente da República que o
Brasil quer a democracia e não o tiranismo vermelho", disse ele.
"A
alta hierarquia da Igreja, empresários, latifundiários e parte da cúpula
militar apoiaram a deposição do presidente eleito", ressalta o historiador
Paulo Henrique Martinez, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"A
marcha conseguiu conciliar vários interesses empresariais e religiosos e teve
uma repercussão nacional que acabou influenciando bastante os militares a
agirem. Vale dizer que houve amplo apoio de setores conservadores da sociedade,
inclusive jornais, que conclamavam os militares a saírem às ruas a fim de
evitar o comunismo", destaca o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, da
Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e
Marketing (ESPM).
Fonte: DW Brasil

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