As enfadonhas esperanças de grandeza imperial
da Europa
Há
décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem, diz um
aforismo atribuído erroneamente a Vladimir Lênin.
A
quinzena entre a crítica de JD Vance contra a Europa na Conferência
de Segurança de Munique e a repreensão cruel de Vance e
Donald Trump ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky no Salão Oval parece
mais com a segunda parte da frase.
Washington
ameaça implodir a aliança ocidental do pós-guerra, e raramente um império
começou a dilapidar as estruturas que sustentam seu poder com tanta alegria.
Mas a
teatralidade de Trump é mais um sintoma do que a causa do problema. Enquanto um
cisma transatlântico se coloca, há mais continuidade entre ele e seus rivais do
que parece à primeira vista. Muitos líderes europeus veem uma oportunidade de
finalmente sair da sombra de Washington: mas, apesar de todos os planos de
gastos, sua tentativa de alcançar o status de grande potência parece muito
pouco convincente.
·
Declínio
e queda do império estadunidense
Os
liberais estão atualmente condenando a destruição da aliança ocidental que
defendia a liberdade e a democracia levada a cabo por Trump.
É tentador
zombar. A ordem pós-guerra liderada pelos EUA significou um reinado de terror;
dos golpes latino-americanos ao genocídio indonésio, da Coreia e Vietnã
ao Iraque e Afeganistão, e através da miséria econômica imposta a países
não-conformes via ajuste estrutural.
Mas a
estratégia dos Estados Unidos, baseada numa reivindicação moral de valores
universais, numa reivindicação militar de poder apocalíptico e numa
reivindicação econômica de capacidade e vontade de subscrever o
capitalismo global,
exigiu também persuasão, não apenas força.
Washington
explorou sua capacidade de oferecer segurança aos aliados, atuar como credor de
última instância, desembolsar ajuda, ajudar a manter instituições
internacionais e vender uma visão que poderia competir com uma ordem mundial
comunista ou um mundo hobbesiano de todos contra todos.
O
trumpismo reflete o amadurecimento de uma mudança marcada pelo afastamento
dessa visão de mundo. Uma década atrás, enquanto a direita insurgente se movia
para cooptar o ressentimento frente a injustiça socioeconômica, ela também
buscava explorar a traição de Barack Obama
à sua promessa de acabar com as guerras eternas.
Um
conjunto de preocupações politicamente díspares — falhas na política externa
estadunidense, excesso de autoridade nos serviços de segurança, declínio
industrial, imigração e legislação igualitária — foi reunido na crítica a uma
agenda liberal “globalista” ou “consciente”.
Vance
se tornou o testa de ferro para essa linha de ataque — uma voz insurgente que
diz que o império estadunidense pode sustentar as fantasias dos pensadores de
Beltway, mas faz pouco pelos caipiras dos Apalaches.
Os
liberais também fizeram a sua parte, revestindo a máquina de guerra
estadunidense com uma linguagem
progressista,
com as pesquisas de 2022 revelando uma reversão drástica nas atitudes
partidárias em relação aos serviços de segurança.
Mas se
a política mudou, isso ocorreu devido a uma mudança na realidade estratégica.
A China
já cortou as asas dos Estados Unidos em múltiplas dimensões. Ameaças ao domínio
do dólar são às vezes exageradas, mas reais. O Consenso de
Washington de livre comércio está em frangalhos. Assim também está o
projeto de Washington de enfraquecer e conter a Rússia pós-soviética.
E
apesar de um orçamento militar absurdamente inflado, os Estados Unidos lutam
para alcançar vitórias militares ou projetar poder como antes.
O
governo de Joe Biden já havia se aproximado de uma abordagem menos expansiva —
o que foi chamado de “política
externa para a classe média (estadunidense)”.
Biden
recuou no Afeganistão. Assim como Trump, ele propôs o acesso dos EUA aos
minerais críticos da Ucrânia em troca de suporte de segurança. Ele desenvolveu
uma política industrial que marginalizou os interesses europeus. E se afastou
do livre comércio neoliberal em direção às cadeias de suprimentos de “friendshoring”
para minar a China.
Essa
abordagem relativamente cautelosa à reorientação, no entanto, foi rejeitada por
Trump.
A nova
administração representa tendências concorrentes. Há os críticos da política
externa como Vance e Tulsi Gabbard. Há mais falcões neoconservadores clássicos
remanescentes, embora menos do que no primeiro mandato de Trump.
E então
temos Elon Musk, cuja oposição ao militarismo estadunidense parece estar
enraizada no desejo de minar o
relacionamento do Estado com grandes empresas de armas e substituí-las pelo
Vale do Silício.
O
compromisso emergente parece ser com uma retirada da projeção de poder global
ao longo de múltiplos eixos, para focar em algumas áreas principais de
interesse. Assim, o apoio implacável a Israel permanece, enquanto os outros
interesses dos aliados da UE são sacrificados. Em uma reversão dos apelos
nixonianos à China, Pequim está substituindo Moscou como o principal polo do
antagonismo estadunidense, como Elbridge Colby — o pensador
mais sério de política externa de Trump — há muito defende.
Para um
novo mundo multipolar, a ordem neoliberal global está fora de moda e uma Weltpolitik mais
restrita e transacional está na ordem do dia.
·
Resposta
europeia
Washington
se recusa a nos defender, então agora devemos fazê-lo por nós mesmos, é o
argumento em Bruxelas. Líderes europeus, até mesmo os ex-pacifistas Verdes,
agora falam de grandes planos para a remilitarização.
Há uma
corrida armamentista para ser mais extremo — propostas para que 3% do PIB sejam
dedicados a gastos de guerra são recebidas com contrapropostas de 5%. De uma versão da União
Europeia da CIA a uma “Euronuke” girando entre
capitais da UE, nenhuma ideia parece absurda demais.
A
Comissão Europeia revelou agora um plano que, segundo ela, mobilizará € 800 bilhões em gastos
militares em todo o bloco.
Isso já
estava para acontecer há muito tempo. Quando o Reino Unido deixou a UE, os
euromilitaristas viram a remoção de um dos bloqueios mais significativos à
integração militar europeia e começaram a arriscar.
Os
compromissos militares da UE aumentaram, do Sahel a
Moçambique, onde as tropas chegaram para ajudar o exército a combater os
insurgentes (leia-se: proteger os interesses energéticos europeus).
A força
de fronteira da EU, Frontex — “tropas civis vestindo um uniforme europeu”, nas
palavras de seu ex-diretor desonrado —
forneceu um precedente valioso para a militarização posterior.
Mas
desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, as propostas se tornaram estratosféricas.
Inicialmente,
a Europa apostou tudo na vitória na Ucrânia. Agora, sua retórica está se
afastando bruscamente de enquadrar a Rússia como um inimigo facilmente
derrotável para o risco eminente de uma invasão da Europa.
Mas o
que os bilhões em novos gastos de defesa da UE e dos países-membros realmente
pretendem fazer é menos claro.
A capitulação
parcial de
Zelensky a Trump reflete os limites rígidos de continuar a guerra sem
material dos EUA, da defesa aérea aos ataques de longo alcance. Os Estados
Unidos contribuíram, por exemplo, com três milhões de projéteis de artilharia
de 155 mm, enquanto a União Europeia forneceu um milhão, com a Rússia
disparando projéteis em uma proporção de 5:1 desde o ano
passado.
E isso
é só a Ucrânia. Os belicistas da Europa possuem uma grande ambição em se
tornarem uma potência da magnitude de Rússia, China ou Estados Unidos. Mas, de
certa forma, eles não são ambiciosos o suficiente; tais objetivos exigiriam
centralização e mobilização em uma escala que não está sendo discutida, porque
poucos achariam isso palatável.
Um
influente think tank de Bruxelas argumentou que 300.000 novas tropas
seriam necessárias. Onde a mão de obra poderia ser encontrada não fica claro.
Ver
Bruxelas falando de guerra é um pouco parecido com assistir a um guarda de
trânsito com uma prancheta tentando empunhar uma metralhadora. O entusiasmo é
alto, mas o nível de racionalidade da discussão é baixo.
E
apesar de toda a conversa sobre um complexo militar-industrial da UE, a
indústria dos EUA continuará criando e atendendo às demandas militares da
Europa.
A
insistência de Trump de que a Europa deve “pagar sua parte justa” pela OTAN e a
insistência dos líderes anti-Trump da UE em uma defesa independente acabam no
mesmo lugar — os cofres dos industriais estadunidenses do setor armamentista.
O problema
mais profundo é revelado na pergunta feita por Vance em Munique: Vocês podem
falar sobre defesa, mas o que estão defendendo?
A
história da UE é a de um bloco construído a partir do reconhecimento de que os
horrores da Segunda Guerra Mundial nunca mais poderiam acontecer. Sua resposta
foi a expansão gradual de mercados e movimentos regulados por regras comuns e
sustentados por valores comuns — regras e valores que supostamente
diferenciavam a Europa tanto dos autoritários a leste quanto dos bucaneiros a
oeste.
No seu
auge, em áreas como política climática e direitos do consumidor, representou
alguns avanços genuinamente progressistas.
Mas, à
medida que as crises dos anos pós-quebra começaram a apertar, tornou-se algo
diferente. O lado negro do europeísmo surgiu primeiro na disciplina brutal do
sul da Europa durante a crise financeira, depois no abandono silencioso de
muitos de seus padrões de direitos humanos para fechar a porta para os
refugiados.
Sua
política externa agora é principalmente transacional; busca alianças com
governos autoritários em
troca de segurança energética, cooperação militar e controle migratório.
Enquanto
Trump construía um muro na fronteira com o México, veículos fornecidos pela UE
patrulhavam um muro maior para impedir que os sírios cruzassem a fronteira rumo
à Turquia.
Qualquer
liderança moral que a UE possa ter mantido — principalmente em resposta à
invasão da Ucrânia pela Rússia — é destruída por sua contínua adesão a Israel,
mais de um ano e meio após o início de sua campanha genocida em Gaza.
À
medida que os processos de adesão de países candidatos estagnam, os cismas
entre os países se aprofundam e a direita populista, contra a qual a UE deveria
ser um baluarte, acumula mais poder do que nunca em Bruxelas, não está claro em
que base política o projeto europeu pode se sustentar.
Os
líderes europeus podem apresentar-se como uma “Coligação dos
Dispostos”,
mas os seus interesses estão longe de ser unificados.
À
medida que a “ordem baseada em regras” se desintegra, a Europa poderia ter
escolhido jogar bem a carta que tinha na mão, tornando-se um farol global para
o Estado de direito, a cooperação econômica pacífica e os direitos humanos.
Em vez
disso, está tentando jogar uma carta que não tem: a de uma potência militar de
peso.
Sua
abordagem ao poder se tornou mais antiliberal e mais limitada — muito parecida
com a de sua bête noire, Donald Trump.
·
Austeridade
ou militarismo?
Foram
dois dias difíceis para Keir Starmer, do Reino Unido.
Os
elogios por sua adesão a Trump rapidamente desapareceram após a discussão com
Zelensky no Salão Oval, deixando-o para receber líderes europeus em Londres
enquanto eles questionavam a lado do Atlântico ele era leal.
Junto
com Giorgia Meloni, da Itália, ele falou sobre sua capacidade de fornecer uma
ponte estratégica entre a UE e os Estados Unidos.
Esse é
sempre o papel que a Grã-Bretanha tentou desempenhar na aliança ocidental,
reconhecendo sua posição pós-imperial, mas ainda tentando manter uma influência
descomunal.
Um
governo trabalhista teve um papel fundamental no desenvolvimento da OTAN. E um
oficial britânico de carreira e filho da Índia imperial, Lord Hastings Ismay,
foi o primeiro secretário-geral da aliança.
Em
2020, a Grã-Bretanha desenvolveu sua mais nova estratégia para projeção
de poder neoimperial sob Boris Johnson.
Durou
pouco, mas agora a Grã-Bretanha também lidera uma mudança para longe da
geopolítica liberal. No final de fevereiro, a ministra do desenvolvimento
internacional Anneliese Dodds renunciou em protesto contra a decisão de Starmer de
cortar o orçamento de ajuda externa para gasto com armas.
Da
proposta de criação de um “DOGE” britânico (o novo
Departamento de Eficiência Governamental dos Estados Unidos) à transmissão ao vivo de deportações
em massa, o governo britânico parece interessado em seguir os caminhos que
Washington conduzir.
Outros
países — França, Finlândia, Suécia, Holanda e Alemanha — também estão reduzindo
a ajuda externa para reforçar gastos militares.
A
dificuldade de chegar a um acordo sobre uma meta, mesmo que parcial, para o
financiamento climático em Baku, em novembro, dá outra indicação de onde estão
as prioridades.
O foco
simbólico no corte da ajuda provavelmente visa evitar muita discussão sobre de
onde virá a maior parte do dinheiro para armamentos: dos já sobrecarregados
orçamentos de assistência social.
O atual
ministro da Defesa da Alemanha — em um governo que foi fiscalmente agressivo a
ponto de se autossabotar — está exigindo o dobro da meta da OTAN para gastos
militares.
Enquanto
isso, a UE promete afrouxar as duras regras fiscais, mas apenas para defesa,
apesar do colapso dos padrões de vida, economias em desaceleração e o
enorme déficit financeiro
necessário para enfrentar a crise climática. Aparentemente, as únicas escolhas
são austeridade ou guerra.
Quase
todos os líderes ocidentais atualmente no poder chegaram lá com base em
promessas de enfrentamento à paralisante crise do custo de vida. Em vez disso,
eles apregoam a falsa promessa de que alguma
forma de keynesianismo militar pode reavivar economias em declínio.
É
difícil prever se os Estados Unidos e a UE conseguirão reparar o cisma que
Trump criou na aliança ocidental.
Mas em
ambos os lados do Atlântico, o novo Ocidente já está aqui: despojado de seu
liberalismo residual, obcecado por “armas em vez de manteiga”, construindo
muros físicos e metafóricos, e mais estreito em sua abordagem geopolítica.
Os dias
da hegemonia unipolar estadunidense ou do duopólio da Guerra Fria acabaram.
Alguém provavelmente teria que olhar para o Concerto da Europa do século XIX e
suas monarquias imperiais interligadas, mas rivais, para encontrar qualquer
tipo de analogia para esse momento de competição intensa paralela a riqueza e
poder ultraconcentrados.
O
neoliberalismo global está com os dias contados, mas sua substituição
militarizada não é menos voltada para o lucro e transacional, e não está mais
alinhada com qualquer tentativa de resolver as verdadeiras emergências que
enfrentamos.
Fonte: Por Nathan Akehurst – Tradução Pedro Silva,
em Jacobin Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário