'A crueldade parece ser o princípio central
da política de hoje', afirma acadêmico
O vídeo
publicado na conta oficial da Casa Branca na rede social X (antigo Twitter)
mostrando migrantes deportados com as mãos algemadas e os pés
acorrentados.
As
palavras do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com as quais ele
anuncia a ampliação do centro de detenção de migrantes da base de Guantánamo
para receber "os piores criminosos estrangeiros ilegais".
Para o
acadêmico Henry A. Giroux, tudo isso faz parte do que ele chama de
"cultura da crueldade".
Teórico
fundador da pedagogia crítica e diretor do Centro de Pesquisa de Interesse
Público da Universidade McMaster, no Canadá, Giroux vem se aprofundando no
conceito há anos.
"A
crueldade parece ser o princípio organizador central da política hoje",
diz o americano-canadense à BBC News Mundo, serviço de notícias da BBC em
espanhol, se referindo também à ideia de que os EUA poderiam assumir a
"propriedade" de Gaza para construir
ali "a Riviera do Oriente Médio", e ao
desmantelamento da USAID, a agência de ajuda internacional dos EUA, uma das
maiores organizações de ajuda humanitária do mundo.
Não
apenas nos EUA, acrescenta ele, mas cada vez mais a nível global.
A BBC
News Mundo conversou com o intelectual de esquerda, que chama Trump de
"testa de ferro de uma oligarquia".
LEIA A
ENTREVISTA:
·
O título do seu artigo mais recente é 'O Teatro da Crueldade
de Trump'. Você poderia ter descrito a nova presidência dele de diferentes
maneiras. Por que você escolheu defini-la assim?
Henry
A. Giroux -
Escolhi porque é uma palavra muito poderosa que, de certa forma, aponta para
uma mudança importante na política dos EUA.
É que
de repente nos encontramos numa era dominada pelo que eu chamaria de formas
extremas de crueldade, formas que também não estão ocultas, e que parecem ser
recebidas com um certo nível de alegria, para não dizer uma recusa abjeta em reconhecer
quão malvadas estas políticas são.
E, de
certa forma, acho que se tornaram o centro da política. A crueldade parece ser
o princípio organizador central da política.
·
Mas a crueldade não é novidade na história política dos
EUA. Basta olhar para as leis Jim Crow de segregação racial, por exemplo. O que
há de diferente ou novo hoje?
Giroux - Os EUA têm, de
fato, um longo histórico de crueldade. Poderíamos começar falando da eliminação
da população indígena, ou da escravidão, ou do aprisionamento dos japoneses (em campos de
concentração)...
Tudo
isso está aí, esse é o legado, embora em muitos casos pareça oculto. As pessoas
tentam não se lembrar desses momentos da política americana.
O que
acredito que estamos vendo com Trump não é um incidente isolado de crueldade,
um momento específico baseado em 'racialização' ou em uma forma específica de
nativismo, como na época da Segunda Guerra Mundial.
O que
estamos vendo é um princípio de crueldade que afeta todos os aspectos da vida
americana, seja na forma de ataques a escolas, a imigrantes indocumentados ou a
pessoas trans.
·
Mas, na sua opinião, é uma época mais cruel apenas na
forma, na linguagem usada, que é mais óbvia e menos acanhada, ou é mais uma
questão mais profunda?
Giroux - Hoje, a crueldade
não surge apenas na forma de linguagem desumanizadora. Ela também surge nas
políticas.
E para
falar da natureza histórica desta crueldade e de onde ela vem, me parece que é
preciso remontar aos anos 1980.
·
O que aconteceu nos anos 1980?
Giroux - O neoliberalismo
surge, e inicia-se um processo de divórcio do conceito de responsabilidade
social. O que importa são os lucros, todo o resto é visto como uma forma de
fraqueza.
O
conceito de política como possibilidade de comunidade começa a morrer, assim
como qualquer noção viável do social.
·
E a crueldade de que você fala, na sua opinião, é um
método? Uma estratégia política? Um mecanismo de união, como sugerem alguns
analistas? Há especialistas que dizem até que é um fim em si mesmo.
Giroux - É uma ótima
pergunta. Acredito que seja um princípio organizador central.
Vemos
isso na linguagem desumanizadora que Trump usa, mas também nas suas políticas:
na decisão de enviar deportados para Guantánamo, um símbolo absoluto da tortura
que agora está sendo ressuscitado; vemos isso nas suas políticas relativas a
programas de diversidade, equidade e inclusão (destinados a promover a
igualdade nos locais de trabalho e na educação, especialmente para comunidades
historicamente marginalizadas, e que ele pretende eliminar); Já vimos o que ele
fez com a USAID…
É um princípio
central, uma forma de fazer política que se alimenta do ódio e da intolerância.
E não é por acaso nem é um traço de personalidade.
O que
estamos vendo agora é uma fusão de crueldade e política de formas nunca antes
vistas e celebradas, uma crueldade que emerge no dia a dia.
·
Como você definiria a forma de governar de Donald Trump?
Que tipo de presidência é a dele?
Giroux - Eu definiria como
um governo fascista. A grande imprensa
não está chamando assim, embora por vezes se fale de autoritarismo. Mas Joe Biden, ao deixar a
presidência, alertou que Trump era fascista, algo que generais aposentados como
John Kelly também disseram na época.
(Em
entrevistas ao The New York Times e ao The Atlantic em outubro, e depois de
anos compartilhando suas críticas a Trump com os jornalistas de uma forma mais
ponderada, Kelly, que foi chefe de gabinete de Trump na Casa Branca e
secretário do Departamento de Segurança Nacional, alertou sobre o suposto
perigo para a democracia americana se o republicano fosse reeleito.
Em
declarações sem precedentes para um ex-funcionário americano de alto escalão,
Kelly disse que Trump se enquadra na definição de fascista.
"Certamente o ex-presidente está na ala da direita radical, ele é
certamente um autoritário, admira ditadores, ele mesmo disse isso. Portanto,
ele certamente se encaixa na definição geral de fascista, isso é certo",
disse ele ao The New York Times.)
·
Se este termo pode ou não ser aplicado a Trump tem gerado
debate entre historiadores e analistas praticamente desde a sua primeira
campanha presidencial em 2016, e há quem alerte que é politicamente imprudente
rotulá-lo desta forma.
Giroux - O governo dele é
fascista, e vou te dizer por quê.
É
porque não acredita no Estado de direito, porque acredita que o poder e a
violência são fundamentais para a política, mas, acima de tudo, é fascista
porque está organizado em torno do nacionalismo cristão branco. E este é o
cerne do fascismo.
Um país
é definido de forma muito limitada e exclusiva, e uma política de descarte é
implementada. Ela começa com uma linguagem desumanizadora, continua com
políticas de expulsão de pessoas, depois os críticos e outros são colocados em
prisões....
·
Em seu mais recente artigo sobre a atual presidência dos
EUA, você destaca que "Trump não governa sozinho", mas é "o
testa de ferro de uma oligarquia que abandonou até a própria pretensão de uma
democracia". No entanto, ele governa com o apoio da maioria dos
americanos. Nas eleições de novembro, ele ganhou no voto popular, algo que
nenhum republicano tinha conseguido desde 2004. O que é que isso nos diz?
Giroux - Isso nos diz algo
que ignoramos durante muito tempo: que a educação é fundamental
para a política.
A
educação pode ser não apenas uma ferramenta de emancipação, mas também de
enorme opressão. Ela pode incutir noções de ódio, ressentimento e intolerância,
entre outras.
E o que
temos hoje nos EUA é um aparato cultural que basicamente se tornou um tsunami
de ódio e intolerância liderado por bilionários da tecnologia.
O que
temos visto desde a década de 1980, dado o controle corporativo dos meios de
comunicação, é uma máquina cultural e educacional que tem sido extremamente
bem-sucedida na produção do que chamo de ignorância fabricada.
·
Ignorância fabricada?
Giroux - Não é possível ter
uma democracia, mesmo que fraca, sem um público informado.
E o que
a direita aprendeu é que, se os meios de comunicação e a educação forem
controlados, não há necessidade de Exércitos. O que é necessário são modos
poderosos de persuasão e controle dos sistemas de informação.
Agora,
com as redes sociais, estamos em um
período muito difícil no que se refere a ser crítico e responsabilizar o poder.
E todos
os elementos do fascismo que vemos surgir na Hungria, na Argentina, na Itália
não são novos, mas estão acontecendo em uma escala que me parece quase sem
precedentes.
·
É um fenómeno que vai além dos EUA: partidos extremistas
que ganham espaço, a polarização do discurso, candidatos que falam abertamente
de crueldade... Um líder regional do partido de direita radical Alternativa
para a Alemanha (AfD), Björne Höcke, declarou abertamente que é necessária uma
"crueldade bem afinada" para expulsar migrantes e refugiados da
Alemanha.
Giroux - É um fenômeno
global, de fato. Mas uma coisa é isso, e outra coisa é o país mais poderoso do
mundo assumir agora a liderança na hora de reforçar a alegação do (presidente
húngaro Viktor) Orbán de que a democracia é muito fraca. Isso não tem
precedentes.
Se isso
tivesse surgido nos anos 1970, inclusive no início dos anos 1980, as pessoas
diriam: "É um movimento marginal". Mas não é mais. É um movimento no
centro da política dos EUA e da política global.
·
De fato, ideólogos como Curtis Yarvin, convidado regular
da mídia conservadora e cujas ideias foram citadas pelo vice-presidente JD
Vance, argumentam que a democracia nos EUA deveria ser substituída por uma
"monarquia" liderada pelo que chamam de CEO, uma espécie de
diretor-executivo. O que você diria àqueles que, como ele, defendem que ter um
"CEO eficiente" no comando do governo é melhor para o povo?
Giroux - Este é um exemplo
clássico do tipo de discurso que morreria em uma democracia vibrante. O fato de
que alguém com essas ideias esteja recebendo uma plataforma é chocante.
O que
você diria a alguém que argumenta que a democracia está morta, e que o que
realmente precisamos é nos acostumar com as ditaduras, porque elas funcionam, e
que deveriam ser lideradas por pessoas como Elon Musk?
·
Você escreveu durante anos sobre a "cultura da
crueldade". E afirma que ela "prospera quando os medos compartilhados
substituem as responsabilidades compartilhadas". Quais são esses medos, e
que responsabilidades compartilhadas eles substituem?
Giroux - As
responsabilidades que eles substituem são aquelas que levam a sério os direitos
sociais, políticos e econômicos, e os valores compartilhados, como a compaixão,
o cuidado com o outro, o senso de comunidade, o reconhecimento do sofrimento
alheio e a necessidade de enfrentá-lo e acabar com ele; a necessidade de
eliminar as bases do sofrimento e da violência.
Desde a
ascensão do neoliberalismo na década de 1980, este argumento é visto como uma
fraqueza, e a bondade é vista como a virtude dos tolos.
Devemos
nos perguntar o que aconteceu com esses princípios, com essas virtudes e
valores como a compaixão, a confiança, a bondade, o cuidado com o outro, a
justiça, a igualdade e a inclusão, se eles estão sendo destruídos ou não, por
quem e no interesse de quem.
·
Ao longo da história política americana, os presidentes
de um partido ou de outro enfatizaram a ideia da autoridade moral dos Estados
Unidos, de que eles deveriam servir de exemplo para o mundo. Ainda é assim?
Giroux - Não. Neste sentido,
os EUA traíram a si mesmos, caíram em uma forma de autossabotagem.
Embora
nunca tenha sido um país verdadeiramente democrático: foi construído sobre as
costas de escravizados, o direito de voto foi negado às mulheres por muito
tempo, e reinventou continuamente uma forma de colonialismo que atende pelo
nome de Destino Manifesto ou
excepcionalismo americano.
Hoje,
basta ver o que está acontecendo em Gaza. Como esta noção de excepcionalismo
americano pode ser levada a sério?
·
Sabemos que o lema de Trump é "Make America
Great Again" (Maga). O que você acha que grandeza significa neste
contexto?
Giroux - Acho que significa
"tornar os EUA brancos novamente", além de eliminar todos aqueles
direitos que foram conquistados desde a década de 1950 para as mulheres, a
comunidade LGBTQ, etc., e revertê-los.
·
No entanto, embora o voto branco tenha sido o seu voto
mais expressivo, Trump fez um avanço histórico no que diz respeito ao apoio dos
latinos nas urnas, especialmente entre os homens.
Giroux - Isso se deve a
vários fatores.
Por um
lado, a democracia como alternativa ao fascismo deixou de ser atraente para
muitos. A democracia não significa nada quando você não tem comida, assistência
médica adequada, cuidados infantis adequados. E nesse estado de ansiedade
absoluta, muitos imigrantes votaram em Trump.
Por
outro lado, a linguagem do medo e da intolerância foi tão bem-sucedida na
esfera da mídia de Trump que acho que as pessoas acabaram basicamente a
internalizando.
O
problema não é que outros venham e tomem seus empregos. O problema nos EUA é a
enorme desigualdade e a concentração de poder em poucas mãos, o que resulta em
menos serviços públicos, à destruição do Estado de bem-estar social e à
criminalização dos problemas sociais.
A noção
de comunidade se torna vazia porque vivemos em uma sociedade que nos diz que o
individualismo é tudo, que todos os problemas são individuais.
Então
você teme a horda de invasores. É a linguagem do poder, e as pessoas acabam
comprando o discurso.
·
Mas também parece haver uma espécie de ciclo de feedback.
Quanto mais polarizado o discurso, mais ampla parece ser a base daqueles que o
apoiam, e vice-versa. É apenas uma percepção?
Giroux - Não, isso é absolutamente
correto.
·
E como você neutraliza a escalada?
Giroux - Antes de mais nada,
você precisa nomear o problema. Não podemos simplesmente dizer que Trump e o
seu governo são neofascistas.
Isso é
verdade, mas o que realmente precisamos falar é sobre a maneira como a
democracia foi subvertida, e começar a detalhar na linguagem da vida cotidiana
o impacto disso: escolas ruins, inflação, preços mais altos dos alimentos,
intolerância...
Precisamos
ressuscitar a linguagem da democracia em termos de valores que as pessoas
possam compartilhar e com os quais possam se identificar.
Também
precisamos de um movimento amplo e multirracial da classe trabalhadora. Os
movimentos isolados não funcionam. E de uma demonstração maciça de resistência
coletiva.
·
Você acredita que é algo que está tomando forma?
Giroux - Não vejo isso
acontecendo nas próximas duas semanas, mas (o governo Trump) está trabalhando
em uma velocidade tão grande para impor um certo grau de fascismo neste país
que acho que os resultados serão esmagadores nos próximos seis meses, e
certamente nos próximos dois anos.
Isso
vai gerar um enorme ressentimento, e as pessoas vão acordar. E o grupo que mais
vai acordar é o dos jovens, os jovens que se sentem alienados da política de
Trump, e que percebem que estão sendo excluídos do roteiro da democracia.
É tudo
uma questão de vingança. É a política da vingança, do ódio, da crueldade e do
racismo.
Fonte: BBC News

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