quinta-feira, 1 de junho de 2023

LEIA A CARTILHA DE LOBISTAS DO AGRO QUE ENSINOU DEPUTADOS A DEFENDEREM O MARCO TEMPORAL

O lobby do agronegócio pela aprovação do Marco Temporal, aprovado nesta terça na Câmara dos Deputados, incluiu cartilhas distribuídas às vésperas da votação com argumentos em defesa do PL 490/07 – considerado um ataque frontal ao direito dos povos indígenas do Brasil. O Intercept obteve a íntegra de dois documentos que ensinam os deputados a argumentarem a favor do projeto. Os dois são assinados pela Frente Parlamentar Agropecuária, a FPA, grupo conhecido como bancada ruralista.

Um deles contém ‘talking points’, uma lista com a indicação de diferentes estratégias e argumentos para defesa do Projeto de Lei do Marco Temporal. Por exemplo, segundo a cartilha, os deputados deveriam dizer que os objetivos do projeto são “proporcionar segurança jurídica em relação ao direito de propriedade e evitar conflitos para todos os envolvidos nas demarcações de terras indígenas”. Não por acaso, a expressão “segurança jurídica” apareceu nos discursos dos deputados pró-Marco Temporal, do extremista Zé Trovão, do PL catarinense, ao “moderado” Arthur Maia, do União Brasil da Bahia, relator do texto.

O material da FPA cita ainda os “benefícios” do projeto que deveriam constar na fala dos deputados. Entre eles, repete o mantra da “segurança jurídica”, dizendo que o PL vai “encerrar o litígio de processos administrativos ainda inconclusivos e trazer segurança jurídica para todos os envolvidos”. O material vai além e aposta na desinformação. Sem qualquer base factual, afirma que “sem a segurança do projeto de lei, qualquer área do território nacional pode ser questionada sem nem um tipo de indenização relacionada à terra”.

 “Ou seja, alguém que tem o título da terra, pagou por ela, produz alimentos e gera empregos só será indenizado pelas benfeitorias existentes (casa, galpão), e sem prazo para tal. Com o advento da Lei, isso irá mudar”, desinforma o folheto da FPA.

O texto ainda avisa os deputados sobre “pontos de atenção”, citando argumentos de associações indígenas e entidades da sociedade civil e ambientalistas contrários ao projeto. “Entidades e organizações indígenas condenam a proposta do marco temporal. Afirmam que é um golpe e um retrocesso aos direitos dos índios”, diz a cartilha.

O outro documento tem um desenho que mostra o suposto drama que o Marco Temporal causaria aos proprietários de terra. Na ilustração, um personagem branco diz “obrigado, vô”, dando a entender que a propriedade é herdada, e um indígena ameaça reivindicar essa herança de família 

O Intercept acessou os metadados dos documentos e detectou que a autoria é do Instituto Pensar Agropecuária, o IPA, uma entidade privada que reúne 38 associações e sindicatos de empresários do agronegócio, criada justamente para assessorar a Frente Parlamentar de Agropecuária. 

Segundo o site do IPA, o instituto “tem papel singular no processo de institucionalização da agenda do setor com o objetivo de garantir o respaldo técnico e das ações específicas que tramitam no Congresso Nacional, além de promover a interlocução com os poderes Judiciário e Executivo”. 

O principal investimento da entidade é uma sede no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, onde realiza convescotes semanais entre deputados, senadores e ruralistas.

Um relatório publicado pelo projeto De Olho nos Ruralistas mostrou que o Instituto Pensar Agro é financiado por várias multinacionais do agronegócio, como Bayer, Basf e Syngenta, Cargill, Bunge, JBS, Marfrig, Nestlé e Danone, por meio de entidades de classe e outros intermediários. 

·         Tom de ameaça contra o STF

O outro documento cita a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal derrubar o PL do Marco Temporal na Câmara. Mesmo com a aprovação de terça, o STF deve manter na pauta uma ação que analisa o tema, prevista para ir a julgamento na semana que vem.

Em tom de ameaça, a cartilha cita quatro “impactos econômicos estimados” caso a Corte contrarie o plano dos deputados: 1,5 milhão de empregos a menos; R$ 364,6 bilhões em produtos agrícolas que não serão produzidos no país; aumento significativo do preço dos alimentos; USS$ 42,7 bilhões em exportações agrícolas não geradas. 

É o mesmo discurso do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se opôs à derrubada do Marco Temporal no ano passado. Às vésperas da primeira tentativa de votação no STF, o então presidente disse que, se a tese fosse derrubada, o agronegócio poderia “acabar” e o Brasil poderia ter que importar alimentos. Para ele, era uma “política que vem de fora para inviabilizar o agronegócio”.

A pressa dos ruralistas em aprovar o PL foi uma reação direta ao novo julgamento do caso no Supremo. Ao aprovar o texto, Câmara tentou se antecipar para evitar que o  STF regulamente o assunto. A previsão, porém, é que o ritmo seja mais lento no Senado. Segundo o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, do PSD mineiro, o texto deve passar por comissões antes de ir ao plenário.

Além da mudança na demarcação, o texto aprovado ainda prevê outras alterações que podem impactar profundamente os direitos dos povos indígenas, como autorização para garimpos e transgênicos dentro de terras indígenas e a flexibilização da política de não contato com povos isolados. 

Na noite de terça, com a aprovação do Marco Temporal na Câmara, os deputados escolheram o Brasil que querem: o da mansão do Lago Sul, com suas “seguranças jurídicas” da cartilha, e não o da terra indígena.

 

Ø  Projeto limita demarcações de terras indígenas e consagra a grilagem

 

Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (30), por 283 votos a 155, o projeto que limita a demarcação de terras e fragiliza uma série de direitos dos indígenas. Houve uma abstenção. O texto vai ao Senado.

Placar da votação na Câmara da proposta que fixa marco temporal para demarcação de terras indígenas nesta terça-feira (30). — Foto: Reprodução/TV Câmara

O projeto foi pautado no plenário em resposta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao anúncio do Supremo Tribunal Federal (STF) de retomada do julgamento que discute a implantação de marco temporal para demarcações de terras indígenas.

O chamado marco temporal das terras indígenas estabelece que os povos originários só têm direito às terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Na prática, a tese permite que indígenas sejam expulsos de terras que ocupam, caso não se comprove que estavam lá antes de 1988, e não autoriza que os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem voltem para as terras.

A proposta já passou pelas comissões da Casa. Deputados governistas tentaram tirar o projeto da pauta, mas o requerimento foi rejeitado por 257 votos a 123.

·         Pontos do projeto

Entre outros pontos, o projeto, relatado pelo deputado Arthur Maia (União-BA), flexibiliza o uso exclusivo de terras pelas comunidades e permite à União retomar áreas reservadas em caso de alterações de traços culturais da comunidade.

O texto também:

  • cria um “marco temporal” para as terras consideradas "tradicionalmente ocupadas por indígenas", exigindo a presença física dos índios em 5 de outubro de 1988
  • permite contrato de cooperação entre índios e não índios para atividades econômicas
  • possibilita contato com povos isolados “para intermediar ação estatal de utilidade pública”

·         Protestos

Mais cedo, na Câmara, indígenas protestaram contra o projeto.

Deputados protestam contra proposta do marco temporal de de demarcação de terras indígenas — Foto: Luiz Felipe Barbiéri

A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e deputadas da chamada "bancada do cocar" Célia Xacriabá (PSOL-MG), e Juliana Cardoso (PT-SP), entre outros parlamentares, concederam entrevistas na Câmara dos Deputados para pressionar pela retirada do texto da pauta de votações.

Elas chamaram o texto de "genocídio legislado".

“Hoje estamos aqui para pedir a retirada do projeto de pauta de votações no dia de hoje. O projeto representa sim um genocídio legislado, porque vai afetar diretamente povos isolados. Autoriza acesso de terceiros em territórios onde vivem pessoas, povos que ainda não tiveram contato com a sociedade”, disse Guajajara.

·         Marco temporal

Conforme o projeto aprovado, são consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição — isto é, 5 de outubro de 1988, eram simultaneamente:

  • por eles habitadas em caráter permanente;
  • utilizadas para suas atividades produtivas;
  • imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar;
  • necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Segundo o texto, a interrupção da posse indígena ocorrida antes de outubro de 1988, independentemente da causa, inviabiliza o reconhecimento da área como tradicionalmente ocupada.

A exceção é para caso de conflito de posse no período. Neste caso, o marco temporal não seria aplicado em caso de expulsão dos indígenas. Especialistas avaliam, no entanto, que é difícil comprovar o conflito e a expulsão.

Entidades ligadas aos direitos dos indígenas criticam o dispositivo, pois a Constituição funciona retroativamente, o que resguarda os direitos territoriais violados antes de 1988.

·         Indenização a invasores

Outra mudança criticada por quem discorda do texto é a possibilidade de validar títulos de propriedade ou posse em área das comunidades indígenas. Neste caso, a desocupação será indenizada pelo Estado.

Segundo especialistas, isso permitirá que não indígenas que tenham invadido áreas de comunidades sejam indenizados.

Técnicos também avaliam que o dispositivo tenta proteger invasores de terras indígenas e veda sua retirada das terras enquanto o processo de demarcação não for concluído, criando um "direito de preferência do invasor".

Outra crítica é que o dispositivo é inconstitucional, uma vez que, atualmente, não se reconhecem atos para ocupação, domínio e posse de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.

·         Usufruto exclusivo de terras

O relator excluiu da proposta, após sugestão da deputada Duda Salabert (PDT-MG), o artigo que previa que o usufruto da terra pelos indígenas não abrangia, por exemplo, recursos hídricos, potenciais energéticos, garimpagem, entre outros.

Maia manteve o dispositivo que permite que sejam desenvolvidas atividades nas reservas sem que a comunidades sejam consultadas.

O texto diz que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional. Também afirma que independem de consulta aos indígenas ou ao órgão indigenista federal competente, a Funai, as seguintes ações:

  • instalação de bases
  • unidades e postos militares e demais intervenções militares
  • expansão estratégica da malha viária
  • exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico
  • resguardo das riquezas de cunho estratégico

Segundo especialistas, a previsão viola tratados internacionais, ratificados pelo Brasil.

Outra flexibilidade do uso das terras exclusivamente pelos indígenas é um dispositivo que admite a cooperação e contratação de terceiros (não indígenas) para a realização de atividades econômicas. O texto coloca algumas travas que devem ser cumpridas, por exemplo:

  • a atividade deve gerar benefícios para a comunidade
  • a posse dos indígenas deve ser mantida sobre a terra
  • a comunidade precisa aprovar o contrato
  • os contratos devem ser registrados pela Fundação Nacional do Índio (Funai)

A Constituição diz que compete à União a atividade de demarcar terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, porém afirma que elas são de sua "posse permanente". Além disso, determina o uso "exclusivo" dos indígenas das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

·         Ampliação de áreas

O texto também proíbe a ampliação de terras indígenas já demarcadas. Para justificar a regra, o relator argumentou, quando o projeto passou pela CCJ, que um julgamento de 2009 do Supremo sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, proibiu a ampliação da área como uma das 19 regras estabelecidas.

Quatro anos depois, porém, a própria Corte confirmou que o entendimento não tem efeito vinculante e não vale para todos os casos.

·         Retomada de terras

Ainda segundo a proposta, caso haja alteração nos traços culturais da comunidade, as áreas indígenas reservadas podem ser retomadas pela União para o "interesse público ou social" ou ainda destinar ao Programa Nacional de Reforma Agrária, com lotes "preferencialmente" a indígenas.

Ø  Derrotado na Câmara, governo vai tentar barrar marco temporal das terras indígenas no Senado

Derrotado na Câmara dos Deputados, o governo Lula espera contar com o Senado para barrar o projeto do marco temporal, rechaçado pelos povos indígenas e por ambientalistas.

Na Câmara, a ampla maioria da Casa votou a favor de definir 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, como o marco temporal para reivindicação de terras indígenas.

A avaliação no Palácio do Planalto é que o Senado conta com parlamentares que defendem mais a pauta ambiental e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, é um deles.

Por isso, acredita que conseguirá barrar o texto aprovado pelos deputados e chegar a uma nova fórmula, que teria de ser negociada ao mesmo tempo com a Câmara. Afinal, se o Senado fizer mudanças no texto, ele terá de voltar para análise dos deputados.

Na derrota na Câmara, mais uma vez aliados do governo em partidos de centro, como MDB, PSD e União Brasil, votaram contra a orientação do Palácio do Planalto.

O partido considerado mais crítico é o União Brasil, que tem três ministérios. Da sigla, 48 deputados apoiaram o projeto do marco temporal, seguindo no sentido oposto ao que queria o governo.

O Planalto tentou, na busca de um acordo com a Câmara, convencer o Supremo Tribunal Federal a não julgar na próxima semana ação sobre o marco temporal. Assim, a Câmara também retiraria o projeto da pauta. Só que a presidente do STF, Rosa Weber, não topou e manteve a ação em pauta.

O presidente Lula tem tido seguidas derrotas em projetos na área ambiental, diante de uma Câmara dos Deputados com maioria de parlamentares conservadores e mais ligados a ruralistas.

Na MP que reestrutura o governo, os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas foram esvaziados. Agora, a derrota no marco temporal.

 

Ø  PL, União e PP são partidos com mais votos a favor; PT vota 100% contra

 

Câmara dos Deputados aprovou na noite desta terça-feira (30) o texto-base marco temporal das terras indígenas, projeto que define a demarcação apenas de terras que já eram ocupadas por povos indígenas até a promulgação da Constituição Federal de 1988. O placar foi de 283 votos favoráveis e 155 contrários.

Embora o voto "sim" não tenha sido unânime nas maiores legendas, PL, União e PP foram os que mais contribuíram com votos para a aprovação do texto.

Parlamentares governistas tentaram tirar o projeto da pauta, mas o requerimento foi rejeitado.

Houve dissidência mesmo entre a base governista. Entre os deputados do PSB, três votaram "sim" e 12 votaram "não". No PDT, 1 dos 15 deputados também votou pelo "sim". Já as bancadas do PSOL e da Rede votaram totalmente contra.

Deputadas que defendem causas indígenas fizeram um protesto com cartazes no Plenário.

Também contrárias ao projeto, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, e a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, acompanharam a votação.

O projeto foi pautado no plenário em resposta do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao anúncio do Supremo Tribunal Federal (STF) de retomada do julgamento que discute a implantação do marco temporal.

O chamado marco temporal das terras indígenas estabelece que os povos originários só têm direito às terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

Na prática, a tese permite que indígenas sejam expulsos de terras que ocupam, caso não se comprove que estavam lá antes de 1988, e não autoriza que os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem voltem para as terras.

 

Fonte: Por Paulo Motoryn, em The Intercept/g1

 

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