As
expressões “morte matada” e “morte morrida”, tipicamente mineiras, são
perfeitas para descrever a degradação que tem acontecido na bacia do rio Doce.
O rompimento da barragem de rejeito de mineração no interior de Minas Gerais,
em 2015, que afetou a calha principal do rio em quase toda a sua extensão, foi
mais um – e não o único – trágico capítulo nessa história.
A
“morte morrida” da bacia, que vem ocorrendo há pelo menos um século, é fruto do
processo desorganizado de interiorização do país. Para a abertura de áreas
agrícolas e a consolidação de centros urbanos ao longo do rio, houve devastação
e intensa queimada de florestas, uso intensivo e desqualificado do solo levando
à sua deterioração em boa parte da bacia, ocupação irregular de margens dos
rios e retirada em excesso de água – seja para dessedentação humana, para uso
abusivo na agricultura mecanizada das últimas décadas, pela desordem urbana ou
pela poluição permanente das suas microbacias.
No
fim desse um século de intensa antropização, o rio já estava praticamente
morto, contando com apenas cerca de 13% de cobertura vegetal original de Mata
Atlântica e, diante de um processo quase irreversível de recuperação de
diversos trechos de solo nu, expostos e altamente empobrecidos. Para se ter uma
ideia do que ocorreu ao longo desses anos, em média, todos os afluentes do rio
Doce, incluindo a calha principal, possuem um déficit de 80% quanto à cobertura
de vegetação nativa em áreas de preservação permanente (considerando o antigo
Código Florestal), de acordo com mapas da SOS Mata Atlântica.
A
alta bacia, representada por municípios mineiros como Mariana, Guanhães e
Conceição do Mato Dentro, é mais florestada atualmente, em função do relevo e
do histórico de ocupação, que levou a ciclos distintos de desmate seguido de
recomposição florestal, processo semelhante que ocorreu na média bacia,
especialmente nas cabeceiras dos afluentes importantes como o Suaçuí Pequeno e
Suaçuí Grande. Entre as cidades de Governador Valadares (MG) e Linhares (ES),
por sua vez, concentram os maiores trechos desmatados e não recuperados.
Esse
histórico de degradação, somado à caça indiscriminada que não parece cessar,
fez com que diversas espécies da fauna fossem extintas regionalmente. No início
do século passado, por exemplo, exemplares do peixe-boi-marinho (Trichechus
manatus) eram encontrados na foz do rio Doce, mas há muitas décadas não são
mais vistos. A ariranha (Pteronura brasiliensis), o maior mustelídeo do mundo,
tem apenas dois registros que confirmam essa espécie na Mata Atlântica e ambos
são da bacia do rio Doce, um do século XIX e outro do início do século XX.
Depois desses registros, a espécie nunca mais foi observada por essas bandas
mineiras ou capixabas. A ausência de ambas as espécies demonstra o estado
caótico que o rio Doce alcançou ao longo de décadas de saque, destruição e mau
uso.
A
fauna nativa de peixes é exuberante e riquíssima, mas também foi ameaçada pela
poluição permanente de suas águas – seja por minerais pesados ou poluições
doméstica e industrial – e pela introdução de animais exóticos.
Essa
foi a “morte morrida” do rio Doce; e as consequências sociais e econômicas
dessa deterioração da biodiversidade já são percebidas. Por exemplo, a ausência
das florestas exuberantes que compunham a bacia é a principal causa da escassez
de chuvas, o que tem relação direta com a crise hídrica no Espírito Santo,
gerando efeitos nocivos às pessoas que vivem nas cidades que dependem das águas
do rio Doce, seja pela falta de água em si, seja pelos prejuízos cumulativos na
agricultura de toda a região. Outro exemplo é que a região ficou mais
vulnerável aos efeitos adversos das mudanças climáticas em curso, vide o Parque
Estadual do Rio Doce (MG) e a Reserva Biológica de Sooretama (ES), que têm
sofrido com impactos seguidos de forte seca e presença constante de fogo. Tudo
isso acarreta prejuízos incalculáveis e diminui a base econômica em boa parte
da bacia; e, com as fontes de renda reduzidas, há uma pressão constante no uso
dos já escassos recursos naturais.
Como
se não bastasse tudo isso, de acordo com laudo técnico do Ministério do
Trabalho, a drenagem insuficiente na Barragem do Fundão, em Bento Rodrigues,
distrito de Mariana, foi considerada a principal causa da tragédia que matou 19
pessoas e asfixiou o rio Doce com a lama do reservatório da Samarco em 2015.
Nesse caso, a lama afetou indistintamente todas as partes da bacia, ao
percorrer quase 700 km do local do acidente até sua foz. Esse ato seria então a
“morte matada”, aquela considerada como um dolo, ou seja, com intenção de
matar. E assim, nesse início do século XXI, o rio Doce foi sacrificado mais uma
vez, com esse acidente grotesco, de prejuízos ambientais incalculáveis e cuja
perda de biodiversidade só será efetivamente calculada após algumas décadas de
estudo.
Como
muitos afluentes importantes não foram afetados pelo acidente e ainda possuem
espécies nativas, endêmicas e raras, se pertencêssemos a um país decente e
sério no quesito “respeito às questões ambientais”, talvez tivéssemos a chance
de recuperar essa fauna ao longo da calha principal, totalmente assolada pelos
impactos discutidos acima. Porém, com as mudanças recentes aprovadas e
colocadas em prática no Novo Código Florestal (ainda em debate no Supremo Tribunal
Federal), com a falta geral de noção da população brasileira sobre o impacto
dessas alterações e uma mobilização menor da sociedade civil organizada, a
expectativa é de piora sistematizada no quadro geral e em qualquer
possibilidade de ressuscitar a bacia do rio Doce, com duas mortes já
decretadas.
Ademais,
diante do recrudescimento das discussões na academia e na sociedade civil de
modo geral sobre o debate relacionado ao manejo de fauna e perante o
desmantelamento de nossa legislação ambiental, o cenário futuro sobre o impacto
disso tudo à fauna da bacia do rio Doce parece bastante sombrio.
Estamos
diante do velório em definitivo da bacia, em que, em poucos anos, em se
mantendo as atuais políticas e intervenções negativas, não nos restará nada a
não ser boas recordações de um rio caudaloso, limpo, cheio de vida, de
florestas, de pessoas e de histórias, que foi “matado” duas vezes!
Autor: Fabiano Melo, professor da
Universidade Federal de Goiás (UFG) e membro da Rede de Especialistas em
Conservação da Natureza.
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