Tanto
a defesa do impeachment da presidenta Dilma, quanto a defesa desta têm fundado
a sua argumentação na Constituição Federal, o que leva para o campo do direito
e das leis questões políticas de alta complexidade, transferindo para um “poder
não eleito”, como Boaventura de Sousa Santos denomina o Judiciário, a
responsabilidade de oferecer solução para a grave crise em que o Brasil está
envolvido.
Se
o parágrafo único do primeiro artigo da Constituição reconhece todo o poder
emanar do povo, e uma das formas da sua expressão ser a do voto, tem-se de dar
como certo o sujeito dessa soberania ter escolhido recentemente a presidenta
como mandatária desse poder.
Ora,
a infidelidade a qualquer mandato, ainda mais quando esse é o de governar o
Estado em função daquele mesmo soberano, exige prova incontestável. Não pode
depender, por exemplo, só do desgosto de quem perdeu as eleições, ou da
admissão apressada e indiscriminada de delações premiadas, notoriamente
selecionadas e divulgadas para apressar uma determinada saída do impasse sob o
qual vive a nação. Muito menos de decisões judiciais singulares, levadas a
público, em franca desobediência aos limites da competência de quem assim
decide, e ao previsto em lei, para a regular tramitação de uma investigação
dessa gravidade.
Por
isso, a baixaria que inspirou a turba inconformada com o despacho do ministro
Teori Zavascki, determinando ao juiz Sergio Moro a remessa ao Supremo Tribunal
Federal de todas as investigações relativas ao ex-presidente Lula, acrescenta
mais um indicativo da contradição motivadora do grupo que tem ido às ruas em defesa do impeachment
da presidente.
Se
é mesmo a defesa da moral pública, a punição das/os corruptos que ela persegue,
deveria reconhecer que o despacho do ministro não teve base exclusivamente
jurídica mas fundamentalmente ética, demonstrativa, por sinal, de que o juiz
Sergio Moro pode ter dado aí um passo fatal para o futuro dos seus despachos
nas operações policiais que determina.
Bem
examinada a reprimenda de Teori, ela contém uma advertência séria não só contra
a ilegalidade da decisão de um juiz em divulgar um determinado fato sujeito a
sigilo, como um aviso à sua conduta pessoal de magistrado, vetada até pelo
Código de Ética da magistratura:
“Não há como
conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se
operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da
investigação criminal. Contra essa ordenação expressa, que – repita-se, tem
fundamento de validade constitucional – é descabida a invocação do interesse
público da divulgação ou a condição de pessoas públicas dos interlocutores
atingidos, como se essas autoridades, ou seus interlocutores, estivessem
plenamente desprotegidas em sua intimidade e privacidade”.
“Não
há como conceber” “descabida invocação de interesse público”, “conversações que
sequer têm relação com o objeto da investigação criminal” desprotegendo
“intimidade e privacidade das pessoas”, esse recado dá a entender ao juiz
destinatário que ele está praticando verdadeiro desvio de poder, abusando da
sua autoridade, uma das faltas mais graves que um juiz pratica.
Infelizmente,
Sergio Moro não está sozinho. Quem defende direitos humanos em nosso país já
presenciou e sofreu, junto das vítimas a quem presta seus serviços, muita
humilhação judicial do mesmo tipo. Basta elas se organizarem em algum movimento
popular, para defender os seus direitos, para sentirem como a intepretação e a
aplicação da lei se distancia da sua letra, quando aqueles direitos estão em
causa. À arrogância e à prepotência contra “pés de chinelo”, como a cultura
ideológica da desigualdade social presente na intepretação e aplicação da lei
contra pessoas pobres as identifica, tem tudo a ver com o verdadeiro soberano,
com quem manda no Estado e no seu povo.
Em
“Soberania e Constituição” Gilberto Bercovici demonstrava, em 2008, numa linha
semelhante às mais recentes lições de Tarso Genro e Boaventura de Sousa Santos,
onde se encontra a causa das crises como a brasileira de agora:
“Capitalismo e
Estado estão indissociavelmente ligados, são parte da mesma evolução
histórica.” {…} O Estado moderno, como Estado mercantilista, firmou-se como uma
entidade econômica autônoma.” {,,,} “Não à toa, o capitalismo, ou seja, a razão
econômica da nova sociedade internacional, está em estreita relação com a razão
de Estado. A razão de Estado, primeiro discurso do estado de exceção, tinha por
finalidade garantir a preservação do Estado a qualquer preço.” {…} “Mas, para
surpresa dos liberais, ao realizarem suas revoluções, um novo ator político
entrou em cena: o poder constituinte do povo, incontrolável e ameaçador. As
experiências de fundação dos regimes constitucionais inglês, americano e
francês demonstram os esforços das classes dominantes em limitar e fazer
desaparecer o poder constituinte do jogo político.” {..} “Com o discurso
exclusivo da legalidade, a distinção entre normalidade e exceção perde o
sentido, pois a exceção, ao ser legal, assume a veste da normalidade. A forma
institucional disso foi o constitucionalismo. O constitucionalismo nasceu contra o poder constituinte, buscando
limitá-lo. A separação dos poderes, por exemplo, foi pensada menos para impedir
a usurpação do poder executivo do que para barrar as reivindicações das massas
populares.”
Que
um diagnóstico duro como esse seja aceito sem mais, é de se duvidar, ainda mais
considerado o grau de paixão atualmente em conflito entre as defesas jurídicas
da presidenta e as do seu impedimento, mas que o aviso desse constitucionalista
sobre a manipulação da Constituição em favor de um capital visivelmente
insatisfeito com o governo dela, tem toda a procedência, isso não dá para
esconder.
As
tais “forças ocultas” do passado já nem se escondem mais e se o verdadeiro
poder constituinte vacilar, até ele vai ser atropelado por elas. Agora, porém,
esse já começou a mostrar que não vai ser pego desprevenido, como aconteceu em
1964, e o povo, consciente das advertências de juristas como aqueles acima
lembrados, pode ter a chance de provar que a soberania prevista no parágrafo
único do primeiro artigo da Constituição Federal, desta vez, será exercida pelo
seu verdadeiro titular.
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