Fernando
Henrique Cardoso perdeu estatura política ao demonstrar desinteresse -- antes
mesmo de receber um convite formal -- por um encontro com Dilma Rousseff.
"O
momento não é para a busca de aproximações com o governo, mas sim com o
povo," escreveu FHC em sua página no Facebook. "Qualquer conversa não
pública com o governo pareceria conchavo na tentativa de salvar o que não deve
ser salvo".
Ao
sugerir que seria possível lhe atribuir a missão de salvar o governo Dilma, o
ex-presidente não conseguiu evitar a lamentável manifestação de uma arrogância
irrefreável em vários de nossos homens públicos -- inclusive do PT -- quando se
torna evidente que os adversários atravessam uma hora difícil.
O
país inteiro -- e o Planalto em primeiro lugar -- sabem muito bem que o governo
Dilma será salvo pelo governo Dilma. Não se deve cultivar ilusões a esse
respeito.
Cabe
à presidente e aos ministros corrigir o que deve ser corrigido e esclarecer o
que precisa ser explicado. Também têm o dever de controlar a incrível
capacidade de errar sem necessidade, dar consistência a suas ações políticas e
recuperar a confiança do eleitorado. Se há novas alianças a serem feitas, lhe
cabe propor. Se há alianças que atrapalham, devem ser desfeitas.
Não
há como renunciar a esta responsabilidade, única e intransferível.
Mas
cabe a um ex-presidente, que nunca foi aliado do governo -- e ninguém imagina
que tenha sido cogitado a desempenhar este papel -- reconhecer a
legitimidade do mandato que Dilma recebeu nas urnas de outubro de 2014, quando
53,5 milhões de brasileiros garantiram seu mandato até 2018. Todos ganham com
isso, inclusive FHC.
Numa
hora em que todos definem seus lugares, como se viu até no histórico diálogo
entre Faustão e Marieta Severo e também na postura que separa Jô Soares e
Lobão, todo mundo tem o direito de resolver como quer aparecer na foto. Não é
possível afagar, pelo silêncio, Jair Bolsonaro e seus amigos, adversários da
democracia antes que ela fosse conquistada luta contra a ditadura. Não é
possível fingir que não há uma tentativa de ruptura em curso, ainda que ela
possa vir fantasiada de arroubos juvenis.
Não
é aceitável que se tente utilizar um processo judicial contra a corrupção, luta
legítima e necessária, como instrumento para se atingir um governo eleito,
promovendo-se um macabro terceiro turno.
Os
brasileiros que lutaram pela democracia já acumularam muitos cabelos brancos,
tiveram muitas perdas e ganhos. Reuniram decepções demais para deixar de
reconhecer que não sobraram mocinhos nem bandidos em nossos duelos políticos,
mas seres humanos de carne e osso, que atuam sob condições dadas, que todos
conhecem muito bem e poderão aprimorar quando houver maioria política para
isso.
Certos
gestos são muito importantes mesmo quando parecem só isso. Uma foto e uma
pequena legenda explicativa ajudaram, muitas vezes, a escrever a história de um
país que chegou até aqui. Foi assim que se guardaram imagens da campanha de
1978, quando Fernando Henrique Cardoso foi atrás do voto popular pela primeira
vez na vida, e o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva abriu as portas das
fábricas e dos bairros populares de São Paulo, contribuindo para uma votação
que nem os aliados mais otimistas de FHC podiam imaginar.
O
mesmo se repetiu na transição de 2002-2003, que exibiu uma elegância jamais
vista, produto da decisão de Lula de mandar o passivo de oito de FHC para o
arquivo morto, fazendo cumprir com a energia necessária toda tentativa de olhar
para trás em busca de escândalos possíveis e já identificados. (Vários membros
do governo se arrependeriam dessa cortesia que jamais foi retribuída, como se
veria na AP 470, mas aí estamos em outra etapa da história, que ajuda a
explicar boa parte da raiva e do ressentimento que vieram depois).
Em
2011, no início de seu primeiro mandato, emissários do PSDB fizeram chegar ao
Planalto a sugestão de que, macambúzio após uma terceira derrota consecutiva de
sua turma naquela altura da vida, seria um belo gesto homenagear Fernando
Henrique nos 80 anos. Seria um reconhecimento. E uma forma da presidente
colocar-se acima das disputas menores da política e colocar-se na História.
Negociado palavra após palavra, por mãos autorizadas de um lado e de outro,
chegou-se a um texto que dizia assim:
Em
seus 80 anos há muitas características do senhor Fernando Henrique Cardoso a
homenagear. O acadêmico inovador, o político habilidoso, o ministro-arquiteto
de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu
decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica. Mas quero aqui
destacar também o democrata. O espírito do jovem que lutou pelos seus ideais,
que perduram até os dias de hoje. Esse espírito, no homem público, traduziu-se
na crença do diálogo como força motriz da política e foi essencial para a
consolidação da democracia brasileira em seus oito anos de mandato.
Em
2015, não se trata obviamente de salvar um governo nem de pedir a retribuição
de uma gentileza, mesmo que gestos desse tipo projetem força de caráter. A
questão é mostrar apreço pelas regras da democracia, numa hora em que
adversários históricos têm sido estimulados a jogar o país em aventuras que
todos sabem como começam e, pela experiência, podem adivinhar aonde pretendem
chegar.
A
realidade é que não há caminho legal para afastar Dilma de seu posto. Não há
fitas gravadas e comprometedoras, que forçaram Richard Nixon a renunciar depois
do Watergate. Se você acha que um Fiat Elba é pouco para derrubar um
presidente, ou apenas a pontinha de um iceberg, cabe reconhecer: não há um Fiat
Elba, como aquele que se tornou a "prova material" contra Fernando
Collor.
Não
se pode cogitar sequer o impeachment paraguaio, que afastou Fernando Lugo do
cargo a partir de uma tentativa tosca de incriminar o presidente pela morte de
17 pessoas num conflito por terra -- uma operação tão grotesca como teria sido,
em 1996, acusar Fernando Henrique Cardoso e o governador tucano Almir Gabriel,
no Senado, pela morte de 17 agricultores no massacre de Eldorado de Carajás.
Tampouco a presidente pode ser acusada de atentar contra a Constituição,
clausula previsa no artigo 86 da Carta de 1988. Foi a partir de uma
interpretação interesseira da legislação local que se afastou -- por ação
militar -- o presidente Manoel Zelaya da presidência de Honduras.
Em
março de 2015, não existem condições para se pedir um afastamento da presidente
a partir da legislação em vigor. Não se trata de tentar "salvar o que não
deve ser salvo." Trata-se de reconhecer não há nada que "não deve ser
salvo."
Após
examinar meticulosamente as menções a Dilma nas delações da Lava Jato, o PGR
Rodrigo Janot informou aos interessados que não há caminhos legais para que
Dilma seja enquadrada em crime de responsabilidade, que precisa ser cometido
durante o mandato presidencial. Janot assinalou que as referências a Dilma
falam de seu período como ministra-chefe da Casa Civil e das Minas e Energia,
envolvendo fatos que, se por acaso forem dignos de serem apurados, deverão
aguardar pelo fim do mandato, em 1 de janeiro de 2019, como determina o artigo
86 da Constituição, conforme entendimento de vários ministros do Supremo.
Isso
ocorre porque, num gesto de sabedoria produzido pela memória do país, os
constituintes trataram de evitar que em busca de atalhos para esquentar
disputas do presente, adversários de um governo eleito fossem desencavar
denúncias do passado, transformando a luta política numa guerra civil de
fantasmas e assombrações.
Fernando
Henrique Cardoso teve um papel dirigente na Constituinte. Foi relator do
regimento interno, que definiu como os trabalhos seriam organizados. Também foi
líder do PMDB no Senado, quando o partido tinha a maior bancada. Como
relator-adjunto da Comissão de Sistematização, cumpriu funções de titular e
teve um papel decisivo na elaboração do texto final da Carta de Leis.
É
nesta história que ele considera que não há "nada a ser salvo?"