Uma eugenia
tecnológica?
No início dos anos 2000, a chegada de
buscadores como o Google transformou sobremaneira a forma de pesquisar
informações. Antes disso, encontrar conteúdo confiável envolvia longas buscas
em livros, bibliotecas e acervos físicos, dependia de conhecimento prévio de
diretórios de sites ou exigia a aquisição de enciclopédias em CD-ROM. A adoção
de algoritmos de ranqueamento, como o PageRank, permitiu obter resultados mais
relevantes em poucos segundos, liberando os usuários de processos morosos e
abrindo caminho para um acesso mais rápido e direto a uma infinidade de temas.
O crescimento da banda larga e a maior
capilarização das redes também contribuíram para essa democratização do
conhecimento, uma vez que reduziram drasticamente os custos de acesso à internet
e ampliaram o alcance dos buscadores. Com isso, o hábito de “ir até a
biblioteca” ou depender de acervos físicos deu lugar a uma simples pesquisa
online, cada vez mais acessível até em regiões antes excluídas do universo
digital. Esse fenômeno acelerou a disseminação de conteúdos variados – desde
explicações sobre assuntos escolares até artigos científicos de ponta – e
tornou o processo de aprendizado muito mais dinâmico e ágil para estudantes,
profissionais e curiosos de todas as áreas.
Nos últimos anos, contudo, a monetização
crescente dessas ferramentas modificou o cenário de pleno acesso à informação.
Muitos buscadores passaram a privilegiar propagandas e links patrocinados,
obrigando o usuário a percorrer diversas páginas antes de chegar aos resultados
orgânicos que realmente respondam às suas perguntas. Esse movimento comercial
afeta a neutralidade e a função pedagógica do buscador, pois prioriza o lucro
em detrimento do conhecimento direto, fazendo com que a promessa inicial de
democratização seja parcialmente ofuscada pelo interesse econômico.
Nesse ínterim, a disseminação da inteligência
artificial generativa tem promovido um fenômeno histórico peculiar, ao
resgatar, por meio da tecnologia, duas ideias inicialmente propostas no século
XIX por Francis Galton. Conhecido por seus estudos pioneiros em genética e
antropometria, Francis Galton criou o conceito de “regressão à média” ao notar,
por exemplo, que filhos de pais muito altos frequentemente tinham uma estatura
mais próxima à média populacional, em vez de manter a altura excepcional dos
progenitores. Esse fenômeno ilustra que características extremas tendem,
naturalmente, a retornar a níveis intermediários com o passar das gerações.
Eugenia refere-se a um conjunto de ideias e
práticas que visam “melhorar” características genéticas de populações humanas
por meio de seleção e exclusão de determinados grupos ou indivíduos. Surgida
oficialmente com o trabalho de Francis Galton, a eugenia ganhou força em
diferentes países no início do século XX, especialmente por meio de políticas
de esterilização forçada, leis de imigração restritivas e outras medidas
discriminatórias.
Essas práticas, justificadas sob a alegação
de aprimorar a “qualidade” da população, resultaram em graves violações de
direitos humanos e influenciaram tragicamente regimes totalitários, como o
nazismo, que levou tais ideias ao extremo com programas de extermínio em massa.
Atualmente, a eugenia é amplamente condenada pela comunidade científica e pela
sociedade em geral, tanto do ponto de vista ético quanto científico,
reconhecendo-se os perigos e injustiças inerentes a qualquer tentativa de
manipular a diversidade genética humana de forma coercitiva. Francis Galton se
tornou famoso por defender ideias eugênicas, sustentando que a população humana
poderia ser aprimorada artificialmente pela seleção dos indivíduos considerados
mais aptos.
Hoje, ainda que de maneira menos evidente e
mais sutil, é possível perceber um processo análogo no funcionamento e
utilização da inteligência artificial generativa. Essa tecnologia opera por
meio da interação direta com os usuários, produzindo resultados (textos,
respostas ou conhecimentos) a partir das instruções iniciais, chamadas de
prompts. Estes são os comandos ou as perguntas feitas pelos usuários ao software
de inteligência artificial (tipicamente um chat). Eis um detalhe técnico
fundamental: a qualidade das respostas obtidas depende diretamente da clareza,
precisão, complexidade e abrangência desses comandos iniciais.
Quando indivíduos com pouco êxito em
construções e articulações linguísticas e acanhada erudição – como, por
exemplo, analfabetos funcionais – utilizam os chats com inteligência
artificial, tendem a formular prompts mais vagos, imprecisos ou simplificados.
Como a Inteligência artificial necessita de informações claras para gerar
respostas qualificadas, esses prompts pouco estruturados resultam em respostas
superficiais e limitadas, que raramente exploram a riqueza potencial de
conhecimentos armazenados na base de dados do sistema.
Nesses casos, a inteligência artificial
devolve ao usuário um resultado mediano, um pouco melhor do que o usuário
conseguiria sozinho, porém restrito e sem grande profundidade. Essa dinâmica é
semelhante à ideia da regressão à média formulada por Francis Galton: os
usuários que estão muito abaixo da média acabam melhorando seu repertório
ligeiramente, mas ficam estacionados em um nível intermediário. Esse lugar
mediano, limítrofe ou medíocre, nos lembra o “Mediocristão” definido por Nassim
Taleb.
Ademais, a inteligência artificial, ao tentar
reproduzir as intenções e preferências do usuário, pode gerar respostas
incorretas ou imprecisas, mesmo que disponha de um extenso acervo de dados
confiáveis. Prompts saturados de pressupostos falhos, vieses ou ambiguidades
conduzem o sistema a replicar tais distorções, pois o objetivo final é
satisfazer a demanda formulada, ainda que isso resulte em conteúdos precários
ou factualmente questionáveis. Nesse processo, a tecnologia reforça possíveis
equívocos e consolida crenças equivocadas, limitando a profundidade das
informações produzidas e inviabilizando o papel educativo que se espera de uma
ferramenta de grande alcance.
Por exemplo, um usuário que se baseia em
premissas errôneas e escreve algo como “Foi Dom Pedro II quem descobriu o
Brasil em 1500, certo?” pode induzir a inteligência artificial a produzir uma
resposta que corrobore essa informação historicamente equivocada, pois a
formulação do prompt conduz o sistema a validar a pergunta em vez de corrigi-la
de modo incisivo. Mesmo que a Inteligência artificial tenha acesso a registros
confiáveis que indicam Pedro Álvares Cabral como responsável pela chegada dos
portugueses em 1500, a construção ambígua da solicitação pode resultar em um
texto final que repita ou suavize a distorção inicial, evidenciando como a
ferramenta reflete as lacunas de conhecimento e as concepções equivocadas do
usuário. Neste caso, o acrônimo IA pode ser intercambiado para “Idiota
Automatizado”. “Shit in, shit out”, bradariam os entusiastas tecnocratas
de plantão.
Por outro lado, usuários que já possuem boa
formação cultural, domínio da linguagem e capacidade argumentativa são capazes
de formular prompts mais precisos, detalhados e intelectualmente sofisticados.
Por exemplo, enquanto um usuário com pouco domínio da linguagem pode perguntar
à inteligência artificial algo como “quem descobriu o Brasil?”, um usuário mais
preparado culturalmente poderia formular uma questão mais rica e
contextualizada, como “de que maneira o processo de colonização portuguesa
influenciou na formação cultural e social do Brasil contemporâneo?”.
Esse segundo prompt gera respostas mais
completas, detalhadas e relevantes, pois fornece à Inteligência artificial uma
orientação clara sobre o nível de profundidade desejado. Como resultado, esses
usuários recebem conteúdos mais ricos e elaborados, capazes de ampliar ainda
mais seu repertório intelectual. Estão, portanto, em um lugar privilegiado ou
“Extremistão” em oposição ao Mediocristão talebiano. Há, inclusive, um novo mercado
de “venda de prompts” dos mais favorecidos aos menos afortunados.
Dessa forma, o que acontece é que usuários já
privilegiados culturalmente conseguem potencializar ainda mais suas vantagens,
enquanto aqueles que enfrentam dificuldades prévias alcançam melhorias apenas
marginais, ou até intensificam suas deficiências no pior caso. Essa lógica
exemplifica perfeitamente o chamado “efeito Mateus”, extraído do Evangelho de
Mateus, segundo o qual “àquele que já tem, mais será dado, e terá em
abundância; enquanto ao que não tem, até o pouco que possui lhe será retirado”.
Aplicado ao contexto da inteligência artificial, os usuários culturalmente
preparados acumulam ainda mais conhecimento e aprofundam suas competências,
enquanto usuários culturalmente frágeis avançam pouco e permanecem estacionados
em níveis básicos ou medianos.
Ao mencionarmos os resultados dos estudantes
brasileiros no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) já é
clichê destacar o desempenho sofrível em matemática. Não podemos esquecer, no
entanto, que em leitura, o desempenho médio dos estudantes brasileiros foi de
410 pontos, inferior à média da OCDE de 476 pontos (dados da última edição, em
2022). Metade dos estudantes brasileiros não alcançou o nível básico de
proficiência em leitura, enquanto nos países da OCDE essa porcentagem foi de
26%. Como reforçaremos aqui, com o advento do “admirável mundo novo” da IA, o
déficit linguístico é muito mais grave e urgente do que a sofrência matemática.
A ideia segundo a qual o domínio da linguagem
precede e condiciona os demais campos do saber humano não constitui uma
inovação recente, tendo sido amplamente debatida e sustentada por diferentes
pensadores ao longo da história da filosofia. Entre os autores clássicos que
defendem essa primazia destaca-se Aristóteles, para quem a linguagem era a base
fundamental da lógica e, portanto, de todo pensamento racional. Ele argumentava
que a compreensão rigorosa das palavras e sua correta aplicação constituíam o
alicerce indispensável de qualquer investigação intelectual subsequente.
Essa perspectiva foi posteriormente reforçada
e reinterpretada na Idade Média, sobretudo por autores escolásticos como Tomás
de Aquino. Para Aquino, o domínio da linguagem era visto como uma etapa
essencial ao conhecimento da verdade, uma vez que o raciocínio filosófico e
teológico dependia da clareza conceitual e linguística. Sem domínio sobre o
discurso e sobre as definições precisas, o pensamento ficaria preso em
confusões terminológicas e ambiguidades conceituais. Na escolástica medieval, a
dialética – arte da discussão e da argumentação baseada na linguagem – foi
considerada prioritária, antecedendo o próprio desenvolvimento de disciplinas
matemáticas ou científicas, pois garantia a fundamentação lógica e a solidez
necessária a qualquer saber.
Já na modernidade, essa primazia da linguagem
é retomada por autores como Wilhelm von Humboldt, que enfatizava o papel
crucial da linguagem na construção da realidade humana. Humboldt acreditava que
a língua molda o pensamento e a percepção da realidade, determinando o modo
como o indivíduo compreende e interage com o mundo. Essa ideia antecipou
abordagens filosóficas e epistemológicas posteriores, que enfatizariam a
importância das estruturas linguísticas na configuração das formas de
pensamento humano.
No século XX, Ludwig Wittgenstein consolidou
ainda mais essa visão ao defender que os limites da linguagem representam os
próprios limites do mundo inteligível. Wittgenstein sustentava que muitos
problemas filosóficos decorriam de confusões linguísticas, indicando que a
clareza conceitual era condição para resolver dilemas fundamentais em diversas
áreas do conhecimento. Dessa maneira, fica evidente que a ideia segundo a qual
a linguagem precede outros saberes e define o horizonte intelectual dos
indivíduos tem raízes históricas profundas, consolidada por diferentes
tradições filosóficas muito antes de sua apropriação contemporânea.
Nesse sentido, cria-se uma situação
paradoxal: uma tecnologia frequentemente apontada como capaz de democratizar o
conhecimento acaba funcionando como uma ferramenta que aprofunda desigualdades.
Sem necessidade de coerção ou intervenção explícita, a inteligência artificial
generativa efetua uma seleção cognitiva e cultural indireta, semelhante aos
ideais originais defendidos por Francis Galton, privilegiando indivíduos que já
estão socialmente favorecidos pela qualidade superior dos comandos iniciais que
são capazes de formular.
Fonte: Por Tarcísio Peres, em A Terra é
Redonda

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