sexta-feira, 21 de março de 2025

Rita Coitinnho: Seria Trump um pacifista?

As demissões e cortes orçamentários realizados pelo DOGE, departamento chefiado pelo bilionário Elon Musk, atingiram importantes serviços de espionagem, sabotagem e financiamento de movimentos políticos golpistas que atuam na América Latina: agitadores sustentados pelos cofres dos EUA aparentemente perderam as fontes de financiamento em Cuba, Nicarágua e Venezuela. A USAID, tradicional agência de financiamento e fomento de ações que por mais de meio século sustentaram o poder brando dos EUA (o “soft power”, na linguagem do teórico estadunidense Joseph Nye), também perdeu recursos – e portanto capacidade de funcionamento. Será que isso seria sinal de que a administração Donald Trump busca interromper o caminho tradicional da política externa dos EUA, redirecionando seus esforços para dentro do país, e abandonando o intervencionismo disfarçado de promoção da democracia que estruturou a hegemonia dos EUA desde o pós-guerra?

A resposta para essa pergunta é negativa e positiva ao mesmo tempo. A resposta é sim porque, de fato, as primeiras ações tomadas no plano econômico buscam reerguer parte da indústria dos EUA, apontando para uma reorientação de esforços “para dentro”. São iniciativas baseadas na exploração de minérios e petróleo, neste último caso na contramão dos avanços tecnológicos em curso e em desafio à urgente busca por soluções capazes de estancar o aumento da temperatura do globo. A resposta também é positiva na medida em que a ideia de promoção da democracia perdeu em parte sua relevância, já que a administração Trump busca descolar-se da imagem agora fortemente vinculada ao partido democrata de promoção de agendas ligadas às liberdades sexuais e reprodutivas e aos direitos positivos – aqueles que devem ser garantidos e em alguma medida providos pelo Estado, como  saúde, educação, moradia, proteção ao trabalho etc.

Mas a resposta também é não. A administração Trump concluiu que os grupos de agitadores e sabotadores financiados nos países vizinhos “não eram eficientes”, já que nenhum dos governos foi efetivamente derrubado, e foi essa a justificativa para a interrupção do fluxo de recursos. Em nenhum momento o governo dos EUA anunciou que mudou de ideia em relação à interferência em assuntos dos seus vizinhos. Pelo contrário: a administração Trump recolocou Cuba na lista de países promotores do terrorismo; tem feito interferências constantes na política do Panamá, provocando a interrupção dos acordos daquele país com a China; mantém a retórica elevada em relação à Venezuela, tendo interrompido as importações de petróleo; promove a imagem de políticos de extrema-direita, buscando fortalecê-los em seus países. 

Ampliando-se o olhar para além do nosso continente, a resposta segue sendo negativa. Se por um lado Donald Trump tem feito gestões junto à Rússia a fim de se alcançar um cessar fogo duradouro na Ucrânia – uma promessa de campanha –, na região do Oriente Médio os EUA retomam uma linha de promoção de ameaças ao  Irã, lançam um ataque massivo ao Iêmen e posicionam-se favoravelmente à retomada dos bombardeios de Israel na Faixa de Gaza. Em campanha, Trump defendera que Israel promovesse, uma “solução final” na região, o que em bom português significa que o agora presidente dos EUA apoia o extermínio do povo palestino e a expulsão daqueles que restarem vivos para outros países. 

A política externa de Donald Trump, ao mesmo tempo em que reduz a importância da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN – que havia crescido em importância durante as administrações democratas), gerando descontentamento das elites dirigentes europeias que se consolidaram  no poder como associadas ao imperialismo dos EUA, não abandona a centralidade do chamado “pivô para a Ásia”. Essa estratégia, anunciada durante o governo Obama (um democrata da estirpe mais rechaçada pelo trumpismo), enxergava na China em ascensão o grande desafio para a hegemonia dos EUA. Visando fazer frente ao crescente poder chinês, intensificou-se a busca pelo fortalecimento do “enclave ocidental” no Oriente Médio (a porta de entrada para Ásia), Israel, e a contenção de potências médias em crescimento – seja pela estagnação do programa nuclear iraniano, seja pela completa desestruturação de países estáveis como a Síria e a Líbia. Contrariando a opinião de formuladores importantes como Henry Kissinger, os EUA abandonaram, nessa fase, a busca pelo estabelecimento de relações duradouras com a Rússia, optando pelo cerco, com a ampliação a OTAN e a instalação de novas bases militares no entorno do país euroasiático, e o isolamento, buscando seu enfraquecimento e irrelevância no cenário internacional.

A guerra na Ucrânia é uma decorrência dessa política que, ao invés de destruir a Rússia, como imaginavam os idealizadores da política de cerco e sanções, deslocou-a definitivamente para o eixo asiático. A aliança prioritária com a China e a reorientação de investimentos e exportações para o eixo africano e asiático fortaleceram a economia russa, cujo PIB, ao invés de cair, elevou-se consistentemente, mesmo com uma guerra em curso. 

Donald Trump, ao buscar a paz com a Ucrânia, parece querer retomar o curso perdido: a retomada de relações com a Rússia a fim de atraí-la para a área de influência do atlântico, buscando reduzir o perfil de suas relações com a China. Ao mesmo tempo, a intensificação da presença militar no Pacífico, a generalização de conflitos no Oriente Médio e a sustentação de governos fantoches – como o atual governo da Síria, que tem como interino um jihadista do ISIS, agora convertido pela mídia ocidental em “homem de Estado” – busca retomar a tática do “pivô do oriente médio para a Ásia”, ou seja, o controle ou a inviabilização de qualquer controle, o que também pode ser útil, da região estratégica ao domínio do Pacífico.

O governo Trump está apenas no começo. No entanto, as linhas gerais de sua atuação externa já começam a ficar bastante definidas. A retórica de vendedor agressivo pode dar a impressão de que estamos apenas diante de um líder bravateiro, mas não é apenas isso. Há interesses bem delimitados e, em essência, eles não se afastam completamente do direcionamento central de fazer frente à China. Mudam algumas orientações e enfoques, mas o direcionamento final é semelhante e atende ao objetivo de garantir a hegemonia dos EUA sobre o mundo, o que requer o enfraquecimento de seu principal adversário. As demissões do DOGE podem parecer uma consequência de uma reorientação menos intervencionista, mas em realidade servem para ampliar os montantes de riqueza a serem apropriados pelo rentismo e não para trazer “eficiência” ao Estado americano, como promete o bilionário da Tesla. Dois objetivos, portanto, podem caracterizar bem o governo que inicia nos Estados Unidos: ampliar a concentração de renda para os bilionários (inclusive às custas do próprio povo dos EUA) e garantir o domínio e a capacidade de obter ganhos às custas dos outros povos do mundo. 

 

¨      Megaprisão e imigrantes: o pesadelo Bukele-Trump

El Salvador, conhecido pela brutalidade de seu sistema carcerário, recebe primeira leva de presos deportados dos EUA. Parceira desafia leis internacionais. Governo centro-americano exalta prisões em massa e encobre casos de tortura e superlotação

A reportagem é de Mneesha Gellman e Sarah C. Bishop, publicada por The Conversation, 19-03-2025.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, apresentou sua oferta para abrigar “criminosos americanos perigosos” e “criminosos de qualquer país” como uma vitória da civilização. Não é o que mostram os fatos.

A taxa de transferência de detentos para uma mega-prisão salvadorenha recém-construída “seria relativamente baixa” para os EUA, mas suficiente para tornar “todo o sistema prisional de El Salvador sustentável”, Bukele escreveu em uma postagem na plataforma de mídia social X datada de 3 de fevereiro de 2025. O que não foi dito é que os presos, muitos deles imigrantes ilegais deportados que não necessariamente são criminosos, seriam conscientemente colocados em um sistema prisional que comete abusos generalizados contra direitos humanos, nas mãos das forças do Estado el-salvadorenho.

Uma primeira transferência de deportados venezuelanos já chegou a esse sistema. Em 16 de março, o governo dos EUA transportou cerca de 250 deles para El Salvador, apesar da ordem de um juiz que bloqueou temporariamente a transferência. Posteriormente, Bukele publicou um vídeo online mostrando os deportados chegando a El Salvador com as mãos e os pés algemados e curvados à força por guardas armados.

Como especialistas que pesquisaram os direitos humanos e as condições das prisões em El Salvador, documentamos um alarmante declínio democrático em meio às tentativas de Bukele de ocultar a violência contínua tanto nas prisões quanto em todo o país.

Também ouvimos em primeira mão sobre as violações dos direitos humanos que tanto os deportados quanto os salvadorenhos dizem ter sofrido enquanto estavam presos em El Salvador, e trabalhamos em centenas de casos de asilo como testemunhas especializadas, testemunhando no tribunal de imigração dos EUA sobre a natureza e o escopo das violações dos direitos humanos no país. Estamos profundamente preocupados tanto com as condições em que os deportados estão chegando quanto com o que a decisão do governo dos EUA sinaliza sobre seus compromissos com os padrões internacionais de direitos humanos.

<><> Erosão das normas democráticas

Bukele lidera El Salvador desde 2019, conquistando a presidência prometendo reprimir o crime e a corrupção que assolavam a nação. Mas ele também contornou as normas democráticas – por exemplo, reescrevendo a constituição para que pudesse ser reeleito em 2024.

Nos últimos três anos, Bukele governou com poucos controles e equilíbrios sob um “estado de exceção” autoimposto. Esse status de emergência permitiu que Bukele suspendesse muitos direitos enquanto ele empreendia o que chama de “guerra contra as gangues”.

A repressão se manifesta em prisões arbitrárias em massa de qualquer pessoa que se enquadre em características demográficas estereotipadas de membros de gangues, como ter tatuagens, antecedentes criminais ou até mesmo “parecer nervoso”.

Como resultado das contínuas prisões em massa, El Salvador agora tem a maior taxa de encarceramento do mundo. A proporção de sua população que El Salvador encarcera é mais do que o triplo da dos EUA e o dobro da do país mais próximo, Cuba.

O país mais seguro da América Latina?

A personalidade durona de Bukele lhe rendeu ampla popularidade em seu país e no exterior – ele fomentou uma amizade imediata com o novo governo dos EUA, em particular.

Mas a manutenção dessa popularidade envolveu, segundo se alega amplamente, manipulação de estatísticas criminais, ataque a jornalistas que o criticam e a negação de envolvimento em uma ampla campanha de combate ao crime organizado.

No entanto, a manutenção dessa popularidade envolveu, segundo se alega amplamente, manipulação de estatísticas criminais, ataque a jornalistas que o criticam e negação de envolvimento em um pacto secreto entre gangues amplamente documentado, que foi desfeito pouco antes do início do estado de exceção.

Bukele e a mídia salvadorenha pró-governo insistem que a repressão às gangues transformou El Salvador no país mais seguro da América Latina.

Mas, no local, os salvadorenhos descreveram como a polícia, os militares e os cartéis mexicanos assumiram as práticas de exploração anteriormente realizadas por gangues como MS-13 e Barrio 18. Uma salvadorenha cujo filho morreu na prisão apenas alguns dias depois de ter sido detido arbitrariamente disse a um repórter da Al Jazeera: “A gente está sempre com medo. Antes era o medo das gangues, agora são também as forças de segurança que levam pessoas inocentes”.

<><> Tortura como política de Estado

A repressão de Bukele às gangues teve um custo enorme para os direitos humanos – e em nenhum outro lugar isso é visto mais do que no sistema prisional de El Salvador.

Bukele ordenou um bloqueio de comunicação entre as pessoas encarceradas e seus entes queridos. Isso significa que não há visitas, cartas ou ligações telefônicas.

Essa falta de contato torna quase impossível para as pessoas determinarem o bem-estar de seus familiares encarcerados, muitos dos quais são pais com filhos pequenos que agora são cuidados por parentes extensos.

Apesar do blecaute, acadêmicos, grupos de direitos internacionais e nacionais e jornalistas investigativos conseguiram construir um quadro das condições dentro das prisões de El Salvador por meio de entrevistas com vítimas e seus familiares, registros médicos e análise forense de casos de mortes na prisão. O que eles descrevem é um cenário infernal.

Os salvadorenhos encarcerados são amontoados em celas superlotadas, espancados regularmente pelos funcionários da prisão e não recebem medicamentos, mesmo quando estão disponíveis. Os presos são frequentemente submetidos a punições que incluem privação de alimentos e choques elétricos. De fato, um relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2023 sobre El Salvador observou as “condições prisionais severas e ameaçadoras à vida”.

A organização de direitos humanos Cristosal estima que centenas de pessoas tenham morrido de desnutrição, traumatismo craniano, estrangulamento e falta de tratamento médico que possa salvar vidas.

Muitas vezes, seus corpos são enterrados por funcionários do governo em valas comuns sem notificar as famílias.

Embora El Salvador seja signatário da Convenção contra a Tortura das Nações Unidas, a Anistia Internacional concluiu, após várias missões ao país e entrevistas com vítimas e suas famílias, que há “uso sistêmico de tortura” nas prisões salvadorenhas.

Da mesma forma, um estudo caso a caso realizado pela Cristosal, que incluiu a análise forense de corpos exumados de pessoas que morreram na prisão, determinou em 2024 que “a tortura se tornou uma política de Estado”.

<><> “Em risco de dano irreparável”

O que torna isso ainda mais preocupante é a escala de possíveis abusos.

El Salvador agora abriga uma população carcerária de cerca de 110.000 pessoas – mais de três vezes o número de presos antes do início do estado de exceção.

Para aumentar a capacidade do país para o encarceramento em massa contínuo, Bukele construiu e inaugurou a mega-prisão Terrorism Confinement Center em 2023. Uma análise do centro usando imagens de satélite mostrou que, se a prisão atingisse sua suposta capacidade total de 40.000 pessoas, cada prisioneiro teria menos de 60 centímetros de espaço em suas celas.

É para essa prisão que os deportados dos EUA têm sido levados.

O presidente Donald Trump invocou a Lei dos Inimigos Estrangeiros de 1798 para transferir os detidos. A lei de tempo de guerra foi invocada apenas três vezes na história, inclusive para justificar o internamento japonês durante a Segunda Guerra Mundial.

Há sérias preocupações sobre o processo e a legalidade da transferência de prisioneiros americanos para uma nação que não protegeu os direitos humanos de sua população detida.

Embora Trump tenha afirmado que os deportados eram membros das gangues Tren de Aragua e MS-13, os indivíduos encarcerados não receberam uma audiência para contestar as alegações de que eram membros de gangues, o que suscitou dúvidas quanto à viabilidade dessa alegação.

Além disso, o acordo por meio do qual o governo Trump está tentando transferir os migrantes detidos nos EUA para El Salvador enfrenta escrutínio de acordo com o direito internacional, dado o que se sabe sobre as condições das prisões do país.

Os direitos humanos internacionais são regidos por leis que proíbem as nações de transferir pessoas para lugares perigosos, seja devolvendo estrangeiros a países onde “há motivos substanciais para acreditar que a pessoa estaria em risco de sofrer danos irreparáveis”, ou transferindo detentos para jurisdições nas quais eles correm o risco de serem torturados ou submetidos a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Os esforços de organizações de direitos humanos, jornalistas e acadêmicos para documentar as condições das prisões apontam para uma conclusão inequívoca: El Salvador não cumpre os termos necessários para proteger os direitos humanos dos migrantes deportados e encarcerados. Ao contrário, o governo de El Salvador tem sido repetidamente acusado por grupos de direitos humanos de cometer crimes contra a humanidade, inclusive contra sua população carcerária.

 

Fonte: Opera Mundi/The Conversation 

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