Rita Coitinnho: Seria Trump um pacifista?
As
demissões e cortes orçamentários realizados pelo DOGE, departamento
chefiado pelo bilionário Elon
Musk, atingiram importantes serviços de espionagem, sabotagem e financiamento
de movimentos políticos golpistas que atuam na América Latina: agitadores
sustentados pelos cofres dos EUA aparentemente perderam as fontes de
financiamento em Cuba, Nicarágua e Venezuela. A USAID, tradicional agência de
financiamento e fomento de ações que por mais de meio século sustentaram o
poder brando dos EUA (o “soft power”, na linguagem do teórico estadunidense
Joseph Nye), também perdeu recursos – e portanto capacidade de funcionamento.
Será que isso seria sinal de que a administração Donald Trump busca interromper
o caminho tradicional da política externa dos EUA, redirecionando seus esforços
para dentro do país, e abandonando o intervencionismo disfarçado de promoção da
democracia que estruturou a hegemonia dos EUA desde o pós-guerra?
A resposta para essa pergunta é negativa e
positiva ao mesmo tempo. A resposta é sim porque, de fato, as primeiras ações
tomadas no plano econômico buscam reerguer parte da indústria dos EUA,
apontando para uma reorientação de esforços “para dentro”. São iniciativas
baseadas na exploração de minérios e petróleo, neste último caso na contramão
dos avanços tecnológicos em curso e em desafio à urgente busca por soluções
capazes de estancar o aumento da temperatura do globo. A resposta também é
positiva na medida em que a ideia de promoção da democracia perdeu em parte sua
relevância, já que a administração Trump busca descolar-se da imagem agora
fortemente vinculada ao partido democrata de promoção de agendas ligadas às
liberdades sexuais e reprodutivas e aos direitos positivos – aqueles que devem
ser garantidos e em alguma medida providos pelo Estado, como saúde,
educação, moradia, proteção ao trabalho etc.
Mas a resposta também é não. A administração
Trump concluiu que os grupos de agitadores e sabotadores financiados nos países
vizinhos “não eram eficientes”, já que nenhum dos governos foi efetivamente
derrubado, e foi essa a justificativa para a interrupção do fluxo de recursos.
Em nenhum momento o governo dos EUA anunciou que mudou de ideia em relação à interferência
em assuntos dos seus vizinhos. Pelo contrário: a administração Trump recolocou
Cuba na lista de países promotores do terrorismo; tem feito interferências
constantes na política do Panamá, provocando a interrupção dos acordos daquele
país com a China; mantém a retórica elevada em relação à Venezuela, tendo
interrompido as importações de petróleo; promove a imagem de políticos de
extrema-direita, buscando fortalecê-los em seus países.
Ampliando-se o olhar para além do nosso
continente, a resposta segue sendo negativa. Se por um lado Donald Trump tem
feito gestões junto à Rússia a fim de se alcançar um cessar fogo duradouro na
Ucrânia – uma promessa de campanha –, na região do Oriente Médio os EUA retomam
uma linha de promoção de ameaças ao Irã, lançam um ataque massivo ao
Iêmen e posicionam-se favoravelmente à retomada dos bombardeios de Israel na
Faixa de Gaza. Em campanha, Trump defendera que Israel promovesse, uma “solução
final” na região, o que em bom português significa que o agora presidente dos
EUA apoia o extermínio do povo palestino e a expulsão daqueles que restarem
vivos para outros países.
A política externa de Donald Trump, ao mesmo
tempo em que reduz a importância da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN – que havia crescido em importância durante as administrações
democratas), gerando descontentamento das elites dirigentes europeias que se
consolidaram no poder como associadas ao imperialismo dos EUA, não
abandona a centralidade do chamado “pivô para a Ásia”. Essa estratégia,
anunciada durante o governo Obama (um democrata da estirpe mais rechaçada pelo
trumpismo), enxergava na China em ascensão o grande desafio para a hegemonia
dos EUA. Visando fazer frente ao crescente poder chinês, intensificou-se a
busca pelo fortalecimento do “enclave ocidental” no Oriente Médio (a porta de
entrada para Ásia), Israel, e a contenção de potências médias em crescimento –
seja pela estagnação do programa nuclear iraniano, seja pela completa
desestruturação de países estáveis como a Síria e a Líbia. Contrariando a
opinião de formuladores importantes como Henry Kissinger, os EUA abandonaram,
nessa fase, a busca pelo estabelecimento de relações duradouras com a Rússia,
optando pelo cerco, com a ampliação a OTAN e a instalação de novas bases militares
no entorno do país euroasiático, e o isolamento, buscando seu enfraquecimento e
irrelevância no cenário internacional.
A guerra na Ucrânia é uma decorrência dessa
política que, ao invés de destruir a Rússia, como imaginavam os idealizadores
da política de cerco e sanções, deslocou-a definitivamente para o eixo
asiático. A aliança prioritária com a China e a reorientação de investimentos e
exportações para o eixo africano e asiático fortaleceram a economia russa, cujo
PIB, ao invés de cair, elevou-se consistentemente, mesmo com uma guerra em
curso.
Donald Trump, ao buscar a paz com a Ucrânia,
parece querer retomar o curso perdido: a retomada de relações com a Rússia a
fim de atraí-la para a área de influência do atlântico, buscando reduzir o
perfil de suas relações com a China. Ao mesmo tempo, a intensificação da
presença militar no Pacífico, a generalização de conflitos no Oriente Médio e a
sustentação de governos fantoches – como o atual governo da Síria, que tem como
interino um jihadista do ISIS, agora convertido pela mídia ocidental em “homem
de Estado” – busca retomar a tática do “pivô do oriente médio para a Ásia”, ou
seja, o controle ou a inviabilização de qualquer controle, o que também pode
ser útil, da região estratégica ao domínio do Pacífico.
O governo Trump está apenas no começo. No
entanto, as linhas gerais de sua atuação externa já começam a ficar bastante
definidas. A retórica de vendedor agressivo pode dar a impressão de que estamos
apenas diante de um líder bravateiro, mas não é apenas isso. Há interesses bem
delimitados e, em essência, eles não se afastam completamente do direcionamento
central de fazer frente à China. Mudam algumas orientações e enfoques, mas o
direcionamento final é semelhante e atende ao objetivo de garantir a hegemonia
dos EUA sobre o mundo, o que requer o enfraquecimento de seu principal
adversário. As demissões do DOGE podem parecer uma consequência de uma
reorientação menos intervencionista, mas em realidade servem para ampliar os
montantes de riqueza a serem apropriados pelo rentismo e não para trazer
“eficiência” ao Estado americano, como promete o bilionário da Tesla. Dois
objetivos, portanto, podem caracterizar bem o governo que inicia nos Estados
Unidos: ampliar a concentração de renda para os bilionários (inclusive às
custas do próprio povo dos EUA) e garantir o domínio e a capacidade de obter
ganhos às custas dos outros povos do mundo.
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Megaprisão e imigrantes:
o pesadelo Bukele-Trump
El Salvador, conhecido pela
brutalidade de seu sistema carcerário, recebe primeira leva de presos
deportados dos EUA. Parceira desafia leis internacionais. Governo
centro-americano exalta prisões em massa e encobre casos
de tortura e superlotação
A
reportagem é de Mneesha Gellman e Sarah C. Bishop,
publicada por The Conversation, 19-03-2025.
O
presidente de El Salvador, Nayib Bukele, apresentou sua oferta para abrigar “criminosos
americanos perigosos” e “criminosos de qualquer país” como uma vitória da
civilização. Não é o que mostram os fatos.
A taxa
de transferência de detentos para
uma mega-prisão salvadorenha recém-construída “seria
relativamente baixa” para os EUA, mas suficiente para tornar “todo o
sistema prisional de El Salvador sustentável”, Bukele escreveu em uma
postagem na plataforma de mídia social X datada de 3 de fevereiro de
2025. O que não foi dito é que os presos, muitos deles imigrantes ilegais
deportados que não necessariamente são criminosos, seriam
conscientemente colocados em um sistema prisional que comete abusos
generalizados contra direitos humanos, nas mãos das forças do Estado
el-salvadorenho.
Uma
primeira transferência de deportados venezuelanos já chegou a esse sistema. Em
16 de março, o governo dos EUA transportou cerca de 250 deles
para El Salvador, apesar da ordem de um juiz que bloqueou temporariamente
a transferência. Posteriormente, Bukele publicou um vídeo online
mostrando os deportados chegando a El Salvador com as mãos e os pés
algemados e curvados à força por guardas armados.
Como
especialistas que pesquisaram os direitos humanos e as condições das prisões em
El Salvador, documentamos um alarmante declínio democrático em meio às
tentativas de Bukele de ocultar a violência contínua tanto nas
prisões quanto em todo o país.
Também
ouvimos em primeira mão sobre as violações dos direitos humanos que tanto os
deportados quanto os salvadorenhos dizem ter sofrido enquanto estavam presos em
El Salvador, e trabalhamos em centenas de casos de asilo como testemunhas
especializadas, testemunhando no tribunal de imigração dos EUA sobre a natureza
e o escopo das violações dos
direitos humanos no
país. Estamos profundamente preocupados tanto com as condições em que
os deportados estão chegando quanto com o que a decisão do governo
dos EUA sinaliza sobre seus compromissos com os padrões internacionais de
direitos humanos.
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Erosão das normas democráticas
Bukele lidera
El Salvador desde 2019, conquistando a presidência prometendo reprimir o crime
e a corrupção que assolavam a nação. Mas ele também contornou as normas
democráticas – por exemplo, reescrevendo a constituição para que pudesse ser
reeleito em 2024.
Nos
últimos três anos, Bukele governou com poucos controles e equilíbrios
sob um “estado de exceção” autoimposto. Esse status de emergência permitiu que
Bukele suspendesse muitos direitos enquanto ele empreendia o que chama de “guerra contra as
gangues”.
A
repressão se manifesta em prisões arbitrárias em massa de qualquer pessoa que
se enquadre em características demográficas estereotipadas de membros de
gangues, como ter tatuagens, antecedentes criminais ou até mesmo “parecer
nervoso”.
Como
resultado das contínuas prisões em massa, El Salvador agora tem a maior
taxa de encarceramento do mundo. A proporção de sua população que El Salvador encarcera
é mais do que o triplo da dos EUA e o dobro da do país mais
próximo, Cuba.
O país
mais seguro da América Latina?
A
personalidade durona de Bukele lhe rendeu ampla popularidade em seu
país e no exterior – ele fomentou uma amizade imediata com o novo governo dos
EUA, em particular.
Mas a
manutenção dessa popularidade envolveu, segundo se alega amplamente,
manipulação de estatísticas criminais, ataque a jornalistas que o criticam e a
negação de envolvimento em uma ampla campanha de combate ao crime organizado.
No
entanto, a manutenção dessa popularidade envolveu, segundo se alega amplamente,
manipulação de estatísticas criminais, ataque a jornalistas que o criticam e
negação de envolvimento em um pacto secreto entre gangues amplamente documentado,
que foi desfeito pouco antes do início do estado de exceção.
Bukele e
a mídia salvadorenha pró-governo insistem que a repressão às gangues
transformou El Salvador no país
mais seguro da América Latina.
Mas, no
local, os salvadorenhos descreveram como a polícia, os militares e os cartéis
mexicanos assumiram as práticas de exploração anteriormente realizadas por gangues
como MS-13 e Barrio 18. Uma salvadorenha cujo filho morreu na
prisão apenas alguns dias depois de ter sido detido arbitrariamente disse a um
repórter da Al Jazeera: “A gente está sempre com medo. Antes era o medo
das gangues, agora são também as forças de segurança que levam pessoas
inocentes”.
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Tortura como política de Estado
A
repressão de Bukele às gangues teve um custo enorme para os direitos
humanos – e em nenhum outro lugar isso é visto mais do que no sistema prisional
de El Salvador.
Bukele ordenou
um bloqueio de comunicação entre as pessoas encarceradas e seus entes queridos.
Isso significa que não há visitas, cartas ou ligações telefônicas.
Essa
falta de contato torna quase impossível para as pessoas determinarem o
bem-estar de seus familiares encarcerados, muitos dos quais são pais com filhos
pequenos que agora são cuidados por parentes extensos.
Apesar
do blecaute, acadêmicos, grupos de direitos internacionais e nacionais e
jornalistas investigativos conseguiram construir um quadro das condições dentro
das prisões de El Salvador por meio de entrevistas com vítimas e seus
familiares, registros médicos e análise forense de casos de mortes na prisão. O
que eles descrevem é um cenário infernal.
Os
salvadorenhos encarcerados são amontoados em celas superlotadas, espancados
regularmente pelos funcionários da prisão e não recebem medicamentos, mesmo
quando estão disponíveis. Os presos são frequentemente submetidos a punições
que incluem privação de alimentos e choques elétricos. De fato, um relatório do
Departamento de Estado dos EUA de 2023 sobre El Salvador observou as
“condições prisionais severas e ameaçadoras à vida”.
A
organização de direitos humanos Cristosal estima que centenas de
pessoas tenham morrido de desnutrição, traumatismo craniano, estrangulamento e
falta de tratamento médico que possa salvar vidas.
Muitas
vezes, seus corpos são enterrados por funcionários do governo em valas comuns
sem notificar as famílias.
Embora El
Salvador seja signatário da Convenção contra a Tortura das Nações Unidas,
a Anistia Internacional concluiu, após várias missões ao país e
entrevistas com vítimas e suas famílias, que há “uso sistêmico de tortura” nas
prisões salvadorenhas.
Da
mesma forma, um estudo caso a caso realizado pela Cristosal, que incluiu a
análise forense de corpos exumados de pessoas que morreram na prisão,
determinou em 2024 que “a tortura se tornou uma política de Estado”.
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“Em risco de dano irreparável”
O que
torna isso ainda mais preocupante é a escala de possíveis abusos.
El
Salvador agora abriga uma população carcerária de cerca de 110.000 pessoas
– mais de três vezes o número de presos antes do início do estado de exceção.
Para
aumentar a capacidade do país para o encarceramento em massa
contínuo, Bukele construiu e inaugurou a mega-prisão Terrorism Confinement Center em 2023. Uma análise do
centro usando imagens de satélite mostrou que, se a prisão atingisse sua suposta
capacidade total de 40.000 pessoas, cada prisioneiro teria menos de 60
centímetros de espaço em suas celas.
É para
essa prisão que os deportados dos EUA têm sido levados.
O
presidente Donald Trump invocou a Lei dos Inimigos
Estrangeiros de 1798 para
transferir os detidos. A lei de tempo de guerra foi invocada apenas três vezes
na história, inclusive para justificar o internamento japonês durante
a Segunda Guerra Mundial.
Há
sérias preocupações sobre o processo e a legalidade da transferência de
prisioneiros americanos para uma nação que não protegeu os direitos humanos de
sua população detida.
Embora Trump tenha
afirmado que os deportados eram membros das gangues Tren de
Aragua e MS-13, os indivíduos encarcerados não receberam uma
audiência para contestar as alegações de que eram membros de gangues, o que
suscitou dúvidas quanto à viabilidade dessa alegação.
Além
disso, o acordo por meio do qual o governo Trump está tentando
transferir os migrantes detidos nos EUA para El
Salvador enfrenta escrutínio de acordo com o direito internacional, dado o
que se sabe sobre as condições das prisões do país.
Os direitos
humanos internacionais são regidos por leis que proíbem as nações de
transferir pessoas para lugares perigosos, seja devolvendo estrangeiros a
países onde “há motivos substanciais para acreditar que a pessoa estaria em
risco de sofrer danos irreparáveis”, ou transferindo detentos para jurisdições
nas quais eles correm o risco de serem torturados ou submetidos a tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes.
Os
esforços de organizações de direitos humanos, jornalistas e acadêmicos para
documentar as condições das prisões apontam para uma conclusão
inequívoca: El Salvador não cumpre os termos necessários para
proteger os direitos humanos dos migrantes deportados e encarcerados. Ao
contrário, o governo de El Salvador tem sido repetidamente acusado
por grupos de direitos humanos de cometer crimes contra a humanidade, inclusive
contra sua população carcerária.
Fonte: Opera Mundi/The Conversation

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