"Para enfrentar o racismo é preciso
repensar o poder", afirma Lázaro
Ramos
Oito anos depois de seu best-seller Na Minha
Pele, o ator, cineasta, apresentador de TV e ativista brasileiro Lázaro Ramos
lança na próxima terça-feira (18/03) Na Nossa Pele – Continuando a Conversa. O
novo livro parte de um entendimento coletivo da história da segregação racial,
cultural e social que marca o racismo estrutural da sociedade brasileira – com
o mesmo tom intimista, em que o autor parte de suas próprias experiências de
vida para "bater um papo com o leitor”.
Consagrado ator da cena cultural brasileira,
Ramos expõe memórias da sua infância e ressignifica o papel de sua mãe, Célia,
em sua formação. Ela era empregada doméstica e em uma das passagens mais
marcantes do livro, o autor conta como foi revisitar o apartamento em Salvador
onde ela trabalhava – e morava em um pequeno quartinho. Com as condições
financeiras proporcionadas pelo seu sucesso profissional ele decidiu dar
"uma rasteira na história", em suas palavras: comprou o antigo
apartamento e transformou o espaço em um centro de assistência e acolhimento a
vítimas de trabalho análogo à escravidão.
Ramos concorda que essa "vingança
pessoal" em busca de uma certa justiça social não é acessível para a maior
parte das pessoas. E que ele só conseguiu fazer isso porque ascendeu
socialmente. "É por isso que a gente tem de pensar em política pública",
afirma.
• Já
que neste livro você propõe "continuar a conversa" do anterior, Na
Minha Pele, eu gostaria de retomar a partir dele. Você publicou Na Minha Pele
em 2017, um livro íntimo e pessoal no qual você tratou de racismo,
empoderamento, solidão da mulher negra, mortalidade jovem negra, vitimismo… Em
sua visão, o que mudou no Brasil de lá para cá, no contexto desses temas?
Lázaro Ramos: Acho que a gente tem algumas
coisas a celebrar: uma presença no audiovisual que inegavelmente melhorou,
apesar de a gente ter dificuldade de dar continuidade; tem uma presença de
pessoas no meio universitário, que trouxe outros pontos de vista; a gente tem
uma presença estética mais variada nos trabalhos do jornalismo; a gente tem uma
imprensa negra que está ocupando mais espaço… Isso são coisas importantes de
celebrar. Por outro lado, a gente tem uma retração, nas empresas, do debate
racial e dos grupos de diversidade. A gente tem uma reação a alguns avanços e
alguns posicionamentos de pessoas pretas, pessoas que dizem "se querem
debater isso, vão para outro lugar". O que traz uma exigência de que a
gente renove nossas estratégias. Por isso que é "continuando a conversa”.
Eu entendo que o primeiro livro é reflexo de algumas décadas de aprendizado.
Mas a gente precisa continuar a conversa sobre isso, tendo a coragem de não ser
estanque, de não estar resolvido. De que não há fórmula fácil ou de que a gente
não tem mais o que debater.
Este livro é muito moldado para o hoje. Eu
não sei se os meus livros vão envelhecer bem, mas eu sei que eles são
tentativas de contribuir para o hoje, para a gente diagnosticar coisas hoje e
pensar alternativas para melhorar o hoje. Eu não quero nem melhorar o amanhã.
Eu quero melhorar o hoje.
• Por
que "continuar a conversa" é importante, especialmente no momento em
que o mundo vive o segundo governo de Donald Trump e que países como a
Alemanha, por exemplo, veem um recrudescimento da ultradireita, concretizada na
expressiva votação do partido AfD no Parlamento no final de fevereiro?
Essa é uma conversa que não é única. Acho que
algumas pessoas não querem conversar, estrategicamente. A tentativa, na
verdade, é silenciar. Não é que [elas] não sabem conversar. A verdade é que não
conversar facilitar você ser autoritário, facilita você parecer que tem uma
resposta fácil para um problema complexo. Então, tem esse setor aí que não quer
conversar estrategicamente. Conversar significa desconversar com as pessoas que
estão no mesmo espectro, para a gente ter coragem de avaliar a trajetória, ver
o que precisa se reinventar, se renovar.
Essas conversas são fundamentais. E tem
pessoas que não estão em extremo nenhum e que estão tentando encontrar, com
suas novas fórmulas para o bem-viver… Essas sim é que [proporcionam] uma
conversa interessantíssima. Eu acho que elas são o foco de esperança para a
gente não viver um futuro bruto, um futuro que mata, um futuro que silencia,
que não tenha a capacidade de mediar diferenças para um projeto coletivo. A
minha fé está nesse lugar.
Tendo a consciência de que a não conversa é
estratégica, é estratégica por parte de pessoas que estão na liderança. A gente
não pode ser tolo com relação a isso. Mas a minha função aqui é essa. Eu sou
uma pessoa que tem sonhos, metas e utopias: tentar fazer com que a gente se medie
para fazer um projeto coletivo. Porque esse que está aí não está legal não.
• Na
última semana, a repercussão dos ataques a um jogador do Palmeiras ilustrou a
persistência do racismo neste esporte, considerado paixão nacional. Que
dificuldades você vê na sociedade para lidar com essa questão?
Porque para a gente enfrentar o racismo a
gente vai ter de repensar poder, pensar na mão de quem está na gestão das
coisas. A gente vai ter de repensar a economia, a distribuição de renda. A
gente vai ter de repensar os saberes que estão no mundo para gerir seja lá o
que for. A gente vai ter de pensar no desequilíbrio que se tem. E isso mexe com
as certezas que as pessoas têm, e com os lugares que as pessoas acham que têm
de direito. Combater essa conversa é muito estratégico. Porque você faz as
pessoas ficarem com medo, se apequenarem, se silenciarem.
As pessoas estão tendo coragem de, na
internet, sendo filmadas, praticarem atos de racismo. As pessoas estão tendo
coragem de defender atitudes racistas. Mexe com a estrutura, eu sempre soube
disso. Eu sempre soube disso. É preciso muita coragem, generosidade e sabedoria
para conseguir enfrentar de verdade as nossas chagas. ,
Parece que o país tem de funcionar de
determinada maneira. E mexer com o dinheiro, o poder e com aquilo que a gente
acha que é quem detém o saber, isso aí, meu velho, é mexer com a cultura que
está arraigada com a gente há muito tempo, há muito tempo.
Felizmente fazemos parte de uma geração que
veio para dizer assim "peraí, gente, eu também vi, eu quero falar isso
aqui, presta atenção, tem outros caminhos, tem outros lugares”. A gente está
lidando com uma falência de gerar o mundo.
Eu aqui do meu lado fico tentando, através da
utopia, dos sonhos, da arte, dos exemplos, das alternativas, da sensibilização,
fazer um pouco minha parte. Este meu livro, inclusive, não é um livro para
conscientizar. É um livro para sensibilizar este debate que está aí. Estou
tentando fazer a minha parte oferecendo este livro utópico.
• Na
Nossa Pele é descrito como um livro em que você mostra "que sua pele é
coletiva, forjada em experiências e aprendizados comuns". Pode dar um
exemplo concreto desses aprendizados? Que lições você quis deixar registradas
com o livro?
Olha como são as coisas. O Na Minha Pele
chama "minha pele” e um monte de gente lia e falava "nossa, parece
que sou eu”. E eu falava: "O que está acontecendo, esta história é minha,
vocês estão querendo roubar a minha história". Este livro tem experiências
que facilmente são compartilhadas. É uma maneira de olhar para a minha mãe e
ser um pouco mais justo com ela.
É um livro que traz também como identificação
a questão sobre a emancipação. E falar sobre as prisões que a gente vive.
Isso aí é um tema que toca as outras pessoas.
• No
capítulo Emancipação, você conta como, em suas próprias palavras, "agora
ator famoso" deu "uma rasteira na história". É comovente a
compra do apartamento onde sua mãe trabalhava, revisitar o lugar sob outra
perspectiva e, por fim, transformá-lo em centro de auxílio para os resgatados
em trabalho análogo à escravidão. Como dar "rasteiras na história”?
É por isso que a gente tem de pensar em
política pública. Este é um livro em que falamos sobre arte, dos mecanismos da
arte de salvação. Mas tem coisas de que a arte não dará conta. Tem coisas que
estão no plano da política pública, da justiça, do Judiciário. Não dá para ler
este livro tão utópico e falar que magicamente as pessoas vão dar rasteira na
vida. Não vão dar.
Tem pessoas que não vão conseguir deixar
herança e legado nenhum para as próximas gerações, seus filhos. É por isso que
a gente fala tanto em justiça social, em mobilização social. É por isso que a
gente fala tanto em pautas de políticas que pensem em fazerem as pessoas
progredirem tendo prazer na vida. É por isso que a gente fala em carga horária
de trabalho, para as pessoas terem ócios. É por isso que a gente fala sobre
acesso à cultura, educação. Está neste plano. Não vai acontecer magicamente.
A maioria da pessoas que passarem pela Terra
e pela vida vai ter uma vida muito difícil. Se a gente não fizer um esforço
social e político as coisas não vão mudar. Este livro é um toque de esperança,
de fé, de estratégia. Mas, ao mesmo tempo tendo muita consciência de que a
arte, a literatura, a cultura não vão dar conta de tudo. Tem coisas que são do
campo da Justiça e da política pública. E da consciência social. E de quem tem
a oportunidade de fazer um bem para a sociedade.
• Gostaria
que você revisitasse sua experiência escolar e nos dissesse: O que você
gostaria que tivesse sido diferente para a sua formação cidadã dentro de um
país estruturalmente racista? E o que foi fundamental na sua formação escolar
nesse contexto, de um país estruturalmente racista?
Nossa… Eu não sei se eu seria outra pessoa.
Porque deixa eu dizer uma coisa muito legal que meu pai fez? Eu não tive um
[videogame] Atari. Mas eu tive a [enciclopédia] Barsa. […] Eu tive um ensino de
qualidade, eu tinha profissionais da educação apaixonados por ensinar. E sou
fruto disso. Dessa educação. Então as faltas que eu tive acabaram moldando o
meu caráter.
A minha história é de exceção. Eu tive
exceção por encontrar a professora Idalina, a professora que não deixou eu
abandonar a escola para trabalhar e ajudar a minha mãe. Eu encontrei a voz da
professora Idalina: ela me enxergou e disse: "Permaneça, porque você tem
um caminho”. Eu tive o professor Alberto, que era de teatro e me ensinou, me
deu aula… Essas pessoas fizeram a diferença. Eu não sei o que acrescentaria,
porque eu tive pessoas assim. Eu fui muito beneficiado por pessoas que me
ofereceram seu tempo e palavras de incentivo e direcionamento. Coisas que muita
gente não tem porque não é vista.
• Qual
é o papel da arte, sobretudo dos artistas negros, na formação e fabulação do
Brasil?
Na maneira de a gente ter um retrato mais
justo do que nós somos.
Eu me lembro de tanta coisa que fez um
retrato mais justo do que nós somos num lugar de reconhecimento e
fortalecimento de autoestima e justiça. […] A gente está com um monte de gente
fazendo coisas muito legais.
• Como
escritor, apresentador, diretor de teatro, cinema, autor de livros infantis,
ator, como enxerga o impacto – e o legado – do seu trabalho e também do seu
engajamento, tanto Brasil quanto para gerações mais jovens como as de seus
filhos?
Eu me sinto muito feliz. Era o que eu queria
da minha vida. Eu acho que estou no lugar que eu estou, que eu mereço. Essa é a
minha função mesmo. Acho que meus ancestrais estão felizes. Mas eu não quero
representar ninguém. Eu quero companhia. […] É muito bacana estar aqui, eu fico
feliz de ser inspiração, de ser exemplo. Mas bacana mesmo é ter companhia, ter
mais gente com oportunidade, com o talento reconhecido, com a sua voz também.
Eu não quero ser dono de pauta nenhuma, não quero falar sozinho. Tenho muita
coisa para aprender também e é libertador falar isso porque, de fato, é. Este é
um pouco o desejo de agora. […] Mas é isto que a gente merece. E eu quero isso
para mais gente.
• Mulheres
negras e a luta pela dignidade no trabalho.
Por Ynaê Lopes dos Santos
Entre os anos de 2003 e 2023, 70% das
mulheres que foram resgatadas de condições análogas à escravidão são mulheres
negras. Um percentual feio, mas nem um pouco alarmante. Afinal, venhamos e
convenhamos, a história do Brasil foi construída para que as mulheres negras
estivessem em nenhum lugar, para que suas vidas só importassem assim, nas
estatísticas que reforçam o quão desigual, racista e misógina é a sociedade
brasileira.
Então, ainda que dados como esse sejam
revoltantes, eles de alguma forma são azeitados pela maneira como o Brasil
decidiu tratar suas mulheres negras que, vale lembrar, compõem o maior
percentual da população brasileira na atualidade. Um silêncio sistêmico, uma
mordaça que foi desenhada na figura da negra Anastácia e que, se dependesse de
muita gente, continuaria na boca das mulheres negras.
Mas, para nossa sorte, a história não foi
exatamente assim. Ainda que números e estatísticas tenham sido constantemente
utilizados para reduzir a experiência de mulheres negras, boa parte dos avanços
que conhecemos e dos quais usufruímos foram construídos com o suor dessas
mulheres e seu trabalho árduo, tanto no período de vigência da escravidão, como
no pós-abolição. Dito em alto e bom som: as mulheres negras sempre lutaram pela
sua honradez e integridade, apesar de e contra um país que insistia em lhes
reservar apenas o indigno. E aqui vos trago dois exemplos para sustentar meu
ponto.
<><> Esperança Garcia
Piauí, século 18. A capitania não estava
diretamente vinculada à economia de exportação que ordenava o sentido da
colonização portuguesa no Brasil. Mas, nem por isso, era um território que
desconhecia a escravidão. Pois bem: foi ali na capitania do Piauí, no dia 06 de
setembro de 1770, que Esperança Garcia (1751-?) escreveu uma carta ao
governador da capitania denunciando os maus-tratos que sofria e reivindicando
melhores condições de vida e de trabalho para ela e outras pessoas
escravizadas.
Isso mesmo. Num período em que a
escolarização era um privilégio de muito poucos (a maior parte dos moradores do
Brasil colônia era iletrada), uma mulher escravizada não só escreveu de próprio
punho uma carta para a maior autoridade local, como o fez para denunciar seu
novo proprietário que, além de ser um péssimo cristão, era profundamente
violento com seus escravizados, especialmente mulheres e crianças.
A importância dessa carta escrita por
Esperança Garcia tem muitas camadas. Por um lado, nos ajuda a desmistificar a
ideia de que a população escravizada era pacata e subserviente aos mandos e
desmandos de seus proprietários. A resistência sempre existiu, das mais
diferentes formas.
Em segundo lugar, o documento em si é de um
valor inestimável, já que foi escrito em primeira pessoa por uma mulher que
estava na pior condição social daquele período. Em terceiro, sua carta, redigida
com clareza e firmeza, tornou-se um marco na história por direitos, fazendo com
que, em 2017, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Piauí reconhecesse esse
documento como uma petição, escrita por aquela que foi condecorada como a
primeira advogada do estado. Isso mesmo: uma das primeiras advogadas do Brasil
foi uma mulher negra, que na condição de escravizada lutou pelo que entendia
ser a dignidade que merecia.
<><> Laudelina Campos Melo
O segundo exemplo é um pouco mais recente, de
um período em que a escravidão já havia sido abolida, mas que a dignidade
continuava sendo apenas um horizonte distante para as mulheres negras. Pois
bem: no começo do século 20, Laudelina Campos Melo (1904-1991) começou a
escrever seu nome nos anais da história.
Nascida em Poços de Caldas, Minas Gerais,
desde jovem se envolveu em movimentos sociais e percebeu as dificuldades
enfrentadas pelas empregadas domésticas, uma profissão historicamente marcada
pela exploração e pela informalidade. Em 1936, fundou a primeira associação de
trabalhadoras domésticas no Brasil, em Santos, São Paulo, buscando garantir
melhores condições de trabalho, acesso a direitos básicos e o reconhecimento da
categoria.
Sua militância esteve fortemente ligada à
luta contra o racismo e à defesa da valorização da mulher negra, evidenciando
como a desigualdade de classe e raça impactava as trabalhadoras domésticas.
Ao longo de sua vida, Laudelina continuou a
atuar ativamente na organização das trabalhadoras domésticas, ampliando a
mobilização e pressionando o governo por mudanças legais. Seu esforço foi
fundamental para a criação de sindicatos da categoria e para a conquista de
direitos trabalhistas formais, que só começaram a ser reconhecidos na
legislação brasileira a partir da Constituição de 1988, sendo oficialmente
equiparada aos direitos trabalhistas das demais categorias depois da
promulgação da PEC das Domésticas, em 2013.
Então, se hoje podemos olhar com horror a
permanência de mulheres negras em condições análogas à escravidão, é também
porque fomos formados por outras mulheres negras, que não se curvaram frente à
luta por dignidade em seus trabalhos, mesmo que elas não tivessem o privilégio
de escolher com o que trabalhar.
Fonte: DW Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário