Metano obriga moradores de favela de SP a
mudar de rotina
A placa desbotada indica que o prédio abriga
a escola municipal Péricles Eugênio da Silva Ramos em Heliópolis, na zona sul
de São Paulo. Mas dois anos já se passaram desde a última atividade pedagógica
no local, fechado após a Companhia Ambiental do estado (Cetesb) identificar
elevado acúmulo de metano (CH4) no solo.
No interior do imóvel, a vegetação avança
sobre o terreno que os vizinhos dizem estar abandonado. O lixo espalhado pelo
chão denuncia um cenário que se transformou em símbolo das consequências reais
do segundo gás estufa que mais contribui para o aquecimento global, atrás
apenas do dióxido de carbono (CO2).
As primeiras informações eram de que a
unidade ficaria interditada por 180 dias para uma reforma hidráulica. No
período, os cerca de 600 alunos seriam provisoriamente realocados a um outro colégio
a dois quilômetros de distância. Os seis meses, porém, foram sucessivamente
prorrogados e o prazo deu lugar a um contexto de incertezas e indignação na
comunidade.
"Foi tudo da noite por dia",
reclama a dona de casa Cinthia Cristina Vieira, de 45 anos, cujos filhos, Enzo
Vieira e Lauryn Vieira, de 12 e 9 anos respectivamente, estudavam na
escola. "As professoras pegaram as
coisas às pressas, não deu tempo de tirar nada de lá", lembra.
A mãe conta que os alunos foram transferidos
para o Centro Educacional Unificados (CEU) Meninos de maneira improvisada. As
salas tiveram que ser rapidamente divididas e muitas não tinham sequer
ventilador. Também não havia carteiras suficientes para os estudantes e o
espaço para as refeições era apertado.
O processo de adaptação foi particularmente
difícil para Enzo, que tem autismo. O jovem chegou a enfrentar episódios
inéditos de surtos nervosos, em meio à transição, que Cinthia considerou
inadequada. "Eles estão na CEU Meninos há dois anos sem nenhum tipo de previsão
de retorno", afirma.
Após tanto tempo de indefinição, a assistente
administrativa Ana Paula Almeida cansou de esperar por uma resposta. Ela
decidiu transferir o filho Bernardo Almeida, de 11 anos, para um colégio ainda
mais distante. "As condições de estudo ficaram muito precárias",
critica.
• Desigualdades
O caso ilustra o impacto desigual de
desequilíbrios ambientais causados por ação humana. Heliópolis é a segunda
maior favela de São Paulo e a sexta do Brasil, com 55.583 habitantes no Censo
de 2022, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). A organização social Unas Heliópolis e Região contabiliza uma população
ainda maior, de cerca de 200 mil, com base em números de atendidos pelo Sistema
Único de Saúde (SUS) e da subprefeitura local.
Como muitas outras pelo país, a favela
cresceu de maneira exponencial e desordenada ao longo das últimas décadas.
Próximo ao poluído rio conhecido como Córrego dos Meninos, conjuntos
habitacionais pintam o horizonte com prédios coloridos, que formam contraste
com instalações industriais. É ali que fica também a escola municipal fechada
desde 2023.
As edificações começaram a ser construídas no
final da década de 1980, em uma região que a própria Cetesb depois
classificaria como Área Contaminada Crítica (ACC) – termo técnico que descreve
lugares com concentração de substâncias que impõem risco à vida ou à saúde
humana. Semelhantes a ela, outras 17 estão espalhadas em todo o estado de São
Paulo, segundo levantamento do órgão.
Em Heliópolis, a contaminação é resultado da
intensa atividade industrial desenvolvida desde o século 19, segundo estudo
conduzido por um grupo de seis pesquisadores do coletivo Observatório de Olho
na Quebrada. Com idades entre 13 e 20 anos, todos moradores (ou "crias",
na gíria paulistana) do bairro, os jovens decidiram analisar o histórico da
exploração econômica do território, por considerarem insuficientes as
informações compartilhadas pelas autoridades.
"A contaminação é muito antiga. Por que,
então, não tiveram essa preocupação antes da construção das moradias?",
questiona a pesquisadora Myrella de Novais, de 17 anos.
• Histórico
de contaminação
As empresas do imigrante italiano Francesco
Matarazzo, uma das principais figuras da fase inicial da industrialização
brasileira, estiveram entre as primeiras que se instalaram na região. Eram fábricas de sabão, óleo e graxa
Pamplona, que abrigaram produtos químicos como mercúrio. Nas décadas seguintes,
Shell e Petrobras construíram bases de distribuição de combustíveis.
Ainda conforme o estudo, as corporações
usaram a terreno para o descarte de uma série de resíduos industriais, o que
causou o acúmulo principalmente de metano no solo. O gás é produzido a partir
da decomposição de matéria orgânica, não apenas em lixões, mas também em
pântanos e áreas alagadas. Vacas e outros ruminantes são outros emissores
relevantes.
Quando liberado, o CH4 tende a permanecer na
atmosfera por cerca de 10 a 12 anos, explica o analista em clima e emissões do
Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) Gabriel
Quintana. O tempo é consideravelmente menor que o prazo para gases como dióxido
de carbono (CO2), que pode chegar a 1 mil anos. "O problema é que o metano
aquece muito mais", ressalta Quintana.
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) estima que o metano tem potencial de aquecimento global cerca
de 80 vezes maior que o CO2 nos 20 anos seguintes à liberação.
• Compromisso
global
O Brasil é o quinto maior emissor global do
gás metano, conforme dados de 2023 da Agência Internacional de Energia
(AIE). A agricultura brasileira é
responsável por quase 70% das emissões, seguida de resíduos (19%) e queima de
combustíveis (10%). "As principais fontes de adição de metano na atmosfera
são antrópicas", explica Quintana, em referência ao termo que descreve
atividades humanas.
Para tentar reverter a tendência, o país é
signatário do Compromisso Global do Metano, no qual 159 países prometem agir
para reduzir a emissão global de CH4 em pelo menos 30% até 2030 em relação aos
níveis de 2020. A adesão é voluntária e cada nação fica responsável por
estabelecer as próprias metas.
Apesar disso, a maior economia da América
Latina caminha em direção contrária aos planos definidos internacionalmente. As
emissões brasileiras de metano cresceram 5% entre 2020 e 2023, de acordo com o
levantamento mais recente do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de
Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima.
Para Quintana, o sucesso do compromisso
global seria fundamental para cumprir o objetivo central do Acordo de Paris –
manter o aumento da temperatura do planeta no limite de 1,5 °C ante os níveis
anteriores à Revolução Industrial. "A cada ano que passa, os esforços para
garantir essa curva vão ficando cada vez mais difícil", alerta.
• Racismo
ambiental
O tema voltará à mesa de discussões na
Conferência do Clima da ONU, a COP 30, que acontecerá em Belém, em novembro.
Mas enquanto a comunidade internacional luta para firmar metas conjuntas para
as próximas décadas, em Heliópolis, os efeitos da emergência climática são
atuais.
Nos arredores da escola Péricles Eugênio da
Silva Ramos, os moradores comentam que já enfrentam verões cada vez mais
quentes. Para os jovens pesquisadores do Observatório de Olho na Quebrada, o
fechamento prolongado da unidade expõe um caso de racismo ambiental, o fenômeno
em que populações da periferia enfrentam o fardo mais pesado dos desequilíbrios
do clima.
"Nosso trabalho é para garantir que as
pessoas tenham conscientização do que acontece dentro do próprio território em
que vivem", diz a estudante Yaz Nascimento, de 19 anos, que também
participou da pesquisa sobre a contaminação do solo.
Procurada, a Cetesb informou que realiza
inspeções periódicas na região e que recebe relatórios regulares da Companhia
de Habitação Popular (Cohab) de São Paulo, responsável pelo monitoramento.
Esclareceu ainda que a reabertura da escola depende da implementação de um
sistema de dissipação passiva de metano, uma vez que o mecanismo de exaustão
atual é insuficiente.
O órgão também explicou que seria necessária
a instalação de sistemas de dissipação passiva nos pisos térreos dos prédios do
conjunto habitacional para garantir a segurança.
Por meio da Secretaria Municipal de Educação,
a prefeitura de São Paulo afirmou ter feito adequações na CEU Meninos para
receber os alunos da escola Péricles Eugênio da Silva Ramos, mas não respondeu
se há previsão para a reabertura do colégio fechado há dois anos.
• Metano,
o gêmeo malvado do CO2
Aquecimento global máximo de 2 ºC em relação
à era pré-industrial, no melhor dos casos até mesmo 1,5 ºC: as metas do Acordo
de Paris para o clima são ambiciosas, e, para que sejam cumpridas, é preciso os
países reduzirem radicalmente suas emissões, num prazo relativamente breve.
No centro das atenções está sobretudo o
dióxido de carbono (CO2). Mas agora uma surpresa desagradável faz cientistas de
todo o mundo acionarem o alarme: têm aumentado as concentrações atmosféricas do
outro importante gás do efeito estufa, o metano (CH4).
"Foi totalmente inesperado",
comenta Euen Nisbet, do departamento de geociência da Universidade de Londres.
Em cooperação com colegas de diversas regiões, ele descobriu um forte
incremento do metano nos últimos 12 anos. "O que pode ter
acontecido?"
Embora o metano desempenhe um papel decisivo
no dia a dia humano – o gás natural, utilizado na cozinha e calefação, por
exemplo, compõe-se quase exclusivamente de CH4 –, sob condições naturais sua
presença na atmosfera é mínima, muito inferior à do CO2. "A proporção é de
cerca de dois milionésimos", especifica Nisbet. Ou seja: em 1 milhão de
litros de ar estão contidos dois litros do gás incolor e inodoro.
O metano é gerado naturalmente em pântanos e
outras áreas alagadas, também vacas e outros ruminantes o emitem em grande quantidade.
A natureza possui mecanismos próprios para decompô-lo, de forma que a
concentração atmosférica não deveria aumentar de maneira tão súbita e forte
como ocorre no momento.
"O ser humano está desmantelando a ordem
natural", diz o pesquisador Nisbet. Pois metano também é liberado na
extração de carvão mineral ou no transporte de gás natural e, "quando um
gasoduto vaza, ele solta principalmente metano".
A última vez que a concentração atmosférica
de CH4 aumentou de modo tão dramático foi nos anos 1980, e "na época a
União Soviética ampliava sua produção de gás enormemente", recorda Nisbet.
Nas décadas de 1990 e 2000 a proporção se manteve quase constante, só voltando
a crescer significativamente em 2007.
Portanto é decisiva a influência humana sobre
a quantidade de metano que chega à atmosfera – cultivo de arroz e depósitos de
lixo são também grandes responsáveis. E isso pode se tornar um problema, já que
ele é "um forte gás-estufa, muito mais forte do que o CO2", frisa
Nisbet.
São precisos aproximadamente 12 anos até o
metano se decompor naturalmente – bem menos do que o dióxido de carbono, que
exige 120 anos. Por outro lado, os cientistas calculam que o CH4 absorva 25
vezes mais calor, e assim quantidades muito menores do que as de CO2 já causam
forte efeito estufa.
Esse é aparentemente um problema que os
negociadores do Acordo de Paris não consideraram. O histórico tratado parte do
princípio que nos próximos 30 anos os níveis de metano cairiam, ou pelo menos
não cresceriam. Assim, calculou-se que, com suficiente redução das emissões de
CO2, seria possível alcançar a meta dos 2 ºC.
A suposição de que haveria progressos na
produção de energia e no combate aos vazamentos de gasodutos era correta,
confirma Nisbet: sobretudo o setor de energia russo melhorou muito nesse
aspecto. No entanto o nível de metano na atmosfera continua crescendo desde
2015.
O cientista alemão Mojib Latif, do Geomar -
Centro Helmholtz de Oceanografia, na cidade de Kiel, desaconselha o pânico:
"Há muito mais CO2 no ar, portanto o efeito do CO2 continua sendo mais
forte do que o do metano", e é correto concentrar-se principalmente na
redução do dióxido de carbono.
Ao mesmo tempo, admite, é preciso seguir
observando o CH4: "Se esse incremento meteórico continuar assim, é claro
que será preciso restringir o CO2 proporcionalmente." Isso significa que
talvez haja ainda menos tempo para mudar o curso da mudança climática global.
<><> De vilão do clima a aliado
na energia
Especialmente preocupante para os cientistas
é não se saber exatamente de onde vem o metano adicional. "Isso mostra que
ainda não compreendemos inteiramente o ciclo desse gás", admite Latif.
Também Nisbet só é capaz de fazer suposições, mas só há duas opções: ou em
alguma parte do planeta está se produzindo mais CH4, ou o processo natural de
decomposição na atmosfera está comprometido.
"Pessoalmente, creio que o metano
aumentou devido ao maior número de vacas na agropecuária e às zonas alagadas
mais quentes e mais úmidas", supõe o geocientista da Universidade de
Londres. O que não é uma boa notícia, pois indica que a mudança climática se
retroalimenta: temperaturas mais altas, pântanos mais úmidos, mais metano,
causando aumento de temperaturas, e assim por diante.
No entanto, embora seja um vilão do clima, o
metano também representa um papel importante na demanda energética diária, como
componente principal do gás natural e do biogás. E, através de métodos
inovadores, pode até mesmo ajudar a movimentar veículos e sistemas de calefação
sem impacto climático.
Graças a novas técnicas de propulsão, carros
movidos a metano já circulam há algum tempo na Europa: atualmente são poucos,
mas seu número poderá aumentar no futuro. Metano sintético é gerado através do
processo "power to gas", explica Christian Bach, do instituto suíço
Empa, de pesquisas de materiais e tecnologia.
"Primeiro, realiza-se uma eletrólise, em
que se produz hidrogênio puro", utilizando o excedente de energia de
fontes eólicas ou solares. Normalmente esse excedente se perde, se não há
espaço para armazenamento ou se a rede elétrica não é ampla o suficiente. Em
seguida o hidrogênio é combinado com CO2, resultando em metano, a ser utilizado
em automóveis ou no aquecimento.
O dióxido de carbono necessário ao processo
precisa ser primeiro captado nas fábricas ou extraído da atmosfera. Para esse
assim chamado carbon engineering existem numerosas ideias e testes
preliminares. Extrair diretamente o próprio metano do ar é quase impossível ou
exige energia excessiva, devido à densidade muito baixa.
Na combustão, o metano se decompõe novamente
em CO2 e hidrogênio. O processo é climaticamente neutro, pois no fim a
quantidade de CO2 que sai pelo escapamento é, no máximo, a mesma que foi
filtrada do ar. No momento ainda se desperdiça muita energia no processo,
tornando pouco praticável seu emprego em grande escala. Entretanto esse tipo de
ideia ajuda a reduzir tanto o CO2 quanto o metano, para que talvez ainda se
alcancem as metas do Acordo de Paris.
Fonte: DW Brasil

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