segunda-feira, 24 de março de 2025

Henrique Pizzolato: Anistia é instrumento de pacificação, não um escudo para a impunidade

A anistia ressurge no centro da vida política brasileira como uma palavra densa, carregada de ruídos, disputas e silêncios. Há quem a evoque como gesto necessário para reatar laços partidos pelo conflito. Mas há também quem a utilize como véu para esconder delitos, como truque para driblar a verdade. Neste cenário, torna-se vital distinguir a reconciliação verdadeira da manobra oportunista, separar o que busca curar daquilo que apenas encobre. Como democratas, inquieta-nos o risco de vermos um instrumento de paz transformado em escudo para os que atentaram contra a República. A anistia, como ideia e prática, não pode ser descolada de seu contexto histórico, tampouco esvaziada de seu conteúdo ético. Seu significado depende, em cada momento, do modo como é invocada e dos objetivos que serve.

A anistia, em sua origem, nasce da necessidade de reconciliação. Não apaga a história, mas oferece a chance de superá-la. Surge quando um país ferido precisa costurar seus próprios retalhos. Não se trata de esquecer, mas de escolher um caminho comum, sustentado por um acordo honesto entre forças antes em confronto. É um pacto. Um silêncio consentido entre vozes que reconhecem seus erros e assumem a tarefa de recomeçar. Como na parábola do filho pródigo, o retorno só se realiza quando há perdão, mas também quando há reconhecimento. Só há reconciliação onde há verdade. E só há verdade onde há disposição para ouvir, acolher e transformar.

O espírito da anistia exige coragem de todas as partes envolvidas. Exige que os que foram feridos estendam a mão, e que os que feriram reconheçam a dor que causaram. Quando isso ocorre, a sociedade avança. Mas quando o perdão é pedido por quem nega os próprios atos, e oferecido por conveniência política, o gesto perde sua força. A anistia deixa de ser ponte e vira atalho. Um atalho perigoso, que ignora a estrada longa e difícil da responsabilização. Um atalho que favorece os mais poderosos, os mais bem articulados, os que ocupam os palcos do poder para mascarar intenções.

Esse pacto se desfaz quando a anistia é invocada por quem recusa o erro, por quem transforma o perdão em trincheira. Não há justiça quando a anistia nasce do medo de responder por atos que feriram a Constituição, incendiaram instituições, vilipendiaram a convivência. O perdão imposto por quem empunhou a violência não une — agride. O que se pede agora, sob o manto da anistia, não é reconciliação, mas absolvição. Clamam por ela não em nome do país, mas de si mesmos. Buscam escapar da verdade, não acolhê-la. Tentam reviver o velho truque de disfarçar o crime com o pano da clemência. Essa prática contamina a política, empobrece o debate público e fragiliza os fundamentos da democracia.

O Brasil já conhece o custo desse truque. Em 1979, sob domínio militar, o país foi convencido a aceitar uma anistia que salvou vítimas, mas também poupou algozes. A barganha preservou torturadores e apagou arquivos. A ferida aberta pela ditadura não cicatrizou — foi coberta. E agora sangra outra vez, em discursos que celebram a barbárie como se fosse bravura. O silêncio da Justiça diante de crimes imprescritíveis prolonga o sofrimento de famílias inteiras. Como apontou Marcelo Rubens Paiva, a omissão do Judiciário aprofunda a dor de quem ainda espera por verdade e reparação. A persistência em não rever essa lei revela uma escolha institucional: manter o pacto de silêncio em nome de uma estabilidade frágil, que se constrói às custas da memória das vítimas e do sofrimento dos seus familiares.

Essa mesma lógica se repete agora, com novas faces, novas estratégias. Nos últimos meses, Bolsonaro, acuado, reuniu aliados e evocou a anistia como escudo. Pediu o Congresso aos seus seguidores. Disse que, com metade da Câmara e do Senado, salvaria os seus. Apresentou o perdão como estratégia de conveniência política, não como reconciliação. Declarou que uma eleição sem ele seria ilegítima, revelando o que sempre sustentou seu discurso: não a vontade de participar, mas de controlar. Seu fracasso em consolidar-se como líder absoluto da direita expôs fissuras, mas não dissolveu o risco. O projeto permanece. Muda o tom, mas conserva o intento. E é por isso que não se pode ceder ao cansaço.

O gesto de reunir milhares em Copacabana, de discursar como vítima, de clamar por clemência para aqueles que atentaram contra a ordem constitucional, não é um pedido de reconciliação nacional. É uma encenação. É uma tentativa de reposicionar a narrativa e recuperar capital político. Os que pedem anistia hoje o fazem para fugir da justiça, e não para construir pontes. Querem apagar o 8 de janeiro da memória nacional como se fosse um episódio menor. Mas aquele dia foi um trauma. Foi uma tentativa clara de ruptura institucional. Anistiá-lo seria o mesmo que normalizá-lo.

A anistia, quando brota do diálogo, pode ser ponte. Mas quando imposta, torna-se atalho perigoso. Construída na sombra, entre os escombros de um golpe, ela não cura — apenas adia o colapso. A democracia exige mais que gestos simbólicos. Precisa de verdade, justiça e responsabilidade. Perdoar não é esquecer. É lembrar com grandeza. É transformar a dor em aprendizado. A esquerda brasileira, fiel à sua história, não endossa anistias. Valorizar a democracia é proteger a memória, punir os culpados e afirmar, sem hesitação, que a paz jamais será alcançada às custas da verdade.

Dizer não à anistia dos que atacaram a democracia é reafirmar que há limites. É dizer que há princípios que não se negociam. A República não pode ser rendida por conveniências que, aliás, ferem de morte o Estado Democrático de Direito.  

•                            Gleisi denuncia projeto para livrar Bolsonaro da cadeia

A ministra da Articulação Política do governo Lula, Gleisi Hoffmann, denunciou neste sábado, 22 de março, o Projeto de Lei 2.858/2022, conhecido como “PL da Anistia”. Em uma postagem incisiva nas redes sociais, Gleisi afirmou que o projeto representa uma tentativa clara de garantir impunidade a Jair Bolsonaro e seus cúmplices pelos crimes cometidos contra a democracia brasileira.

A crítica foi publicada em seu perfil no X (antigo Twitter) e destaca o teor do projeto que tramita na Câmara dos Deputados. Segundo Gleisi, o PL é “para livrar Bolsonaro da cadeia” e não para beneficiar supostas “senhorinhas da Bíblia”, como tentam justificar os defensores da proposta. O texto do projeto é explícito ao anistiar todos os que participaram de atos golpistas entre 30 de outubro de 2022, dia da eleição de Lula, e a data de sua eventual aprovação.

“Art. 1º Ficam anistiados manifestantes, caminhoneiros, empresários e todos os que tenham participado de manifestações nas rodovias nacionais, em frente a unidades militares ou em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 ao dia de entrada em vigor desta Lei”, diz o projeto.

Gleisi alertou para o caráter abrangente da proposta. “O Projeto de Lei 2.858 determina a completa impunidade de todos que tramaram, participaram, apoiaram e financiaram os atentados contra a democracia no país”, afirmou. Ela também ressaltou que o texto permite a anistia de crimes eleitorais, políticos e de qualquer outra natureza, desde que relacionados a motivações políticas, o que inclui os atos de 8 de janeiro, os acampamentos golpistas, os bloqueios de rodovias, o plano de assassinato de autoridades, as articulações com militares e os decretos do golpe.

“Em linguagem clara: além dos atentados de 8 de janeiro, dos acampamentos nos quartéis, bloqueios de estradas, da bomba no aeroporto de Brasília, seriam perdoados como ‘crimes conexos’ os decretos do golpe, o plano de assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, a conspiração com os chefes militares, todos os crimes praticados por Bolsonaro e seus cúmplices contra a democracia, inclusive os crimes eleitorais”, escreveu a ministra.

A postagem ocorre na mesma semana em que a Procuradoria-Geral da República iniciou o julgamento da denúncia contra Jair Bolsonaro e aliados por tentativa de golpe. A possível aprovação do PL da Anistia poderia esvaziar a responsabilização criminal dos envolvidos, gerando um impasse jurídico e político de grandes proporções.

Lideranças progressistas já se manifestam contra o projeto, apontando o risco de institucionalização da impunidade para golpistas. O debate deve se intensificar nas próximas semanas, à medida que o Congresso Nacional retoma suas atividades e pressões de ambos os lados se ampliam.

Gleisi, por sua vez, deixou claro o posicionamento do governo e do PT: “Não é, nunca foi para as ‘senhorinhas da Bíblia’. O PL da Anistia é para livrar Bolsonaro da cadeia”.

•                            Bolsonaro articula em múltiplas frentes para reverter inelegibilidade e fugir da prisão

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tem intensificado ações políticas, jurídicas e internacionais com o objetivo de reverter sua inelegibilidade até 2030 e se antecipar a um possível julgamento criminal no Supremo Tribunal Federal (STF).

A Primeira Turma da Corte inicia na próxima terça-feira, 25, a análise da denúncia que o acusa de liderar uma tentativa de golpe de Estado para abolir o Estado democrático de Direito. A informação é da Folha de S. Paulo.

Bolsonaro é investigado pelos crimes de tentativa de golpe, dano ao patrimônio público tombado, ameaça violenta contra a União e organização criminosa. As acusações, somadas, podem resultar em mais de 40 anos de prisão, caso haja condenação.

Em paralelo ao processo no STF, Bolsonaro tem ampliado sua atuação no Congresso Nacional. Ele tem demonstrado apoio público a propostas de anistia aos envolvidos nos ataques às sedes dos Três Poderes, ocorridos em 8 de janeiro de 2023.

Em entrevista à revista Oeste, no último dia 18 de março, reafirmou essa posição. Embora negue que a proposta o beneficie diretamente, juristas ouvidos pela reportagem afirmam que o texto da anistia é genérico e pode abrir brechas legais que impactem sua inelegibilidade.

O projeto de anistia, inicialmente encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), foi transferido para uma comissão especial por decisão do então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

O atual presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), ainda não decidiu se manterá esse encaminhamento ou se levará a pauta diretamente ao plenário.

O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), líder da legenda na Câmara, afirma que há apoio de mais de 260 parlamentares ao projeto.

Apesar disso, reconhece que o processo legislativo pode ser demorado. A lentidão, no entanto, não impede o uso político da proposta por Bolsonaro junto à sua base de apoiadores.

Outra linha de atuação do ex-presidente tem se concentrado em declarações direcionadas à comunidade internacional. No mesmo dia da entrevista à revista Oeste, Bolsonaro declarou que “não temos como buscar paz, tranquilidade e democracia internamente. É impossível. Precisamos de ajuda de fora”. A fala foi interpretada por setores da oposição como tentativa de internacionalizar sua situação jurídica no país.

Também no dia 18, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do ex-presidente, declarou que avalia solicitar asilo político aos Estados Unidos. A justificativa apresentada foi a de que estaria sofrendo perseguição ideológica.

Eduardo Bolsonaro tem realizado viagens frequentes ao país com o objetivo declarado de pressionar por sanções contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Embora Jair Bolsonaro tenha negado que cogite pedir asilo, parlamentares da oposição consideram que as ações do filho fazem parte de uma estratégia mais ampla.

Em outra frente, Bolsonaro passou a criticar publicamente a Lei da Ficha Limpa. Em fevereiro, disse que a norma tem sido usada para “perseguir a direita” e defendeu a redução do período de inelegibilidade de oito para dois anos. “Aí sim eu poderia disputar as eleições em 2026 e você vai decidir se pode votar em mim ou não”, afirmou à época.

No Congresso, há propostas legislativas que buscam modificar essa legislação. Um projeto apresentado pela deputada Dani Cunha (União Brasil-RJ) propõe reduzir o período de inelegibilidade. Alterações recentes no texto, no entanto, limitaram o alcance da proposta, reduzindo as chances de que essa mudança beneficie diretamente o ex-presidente.

Bolsonaro também aposta em mudanças na composição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), previstas para 2026.

Ele considera que a presidência do ministro Kassio Nunes Marques, com André Mendonça como vice — ambos indicados por ele ao STF —, poderá proporcionar um cenário mais favorável a eventuais recursos contra sua inelegibilidade.

Apesar dessas expectativas, especialistas em direito eleitoral como Fernando Neisser e Alberto Rollo avaliam que tentativas de reversão por meio de ações rescisórias no TSE são juridicamente inviáveis.

Segundo eles, eventuais revisões da decisão que declarou Bolsonaro inelegível devem ocorrer no Supremo Tribunal Federal, onde a defesa do ex-presidente aguarda julgamento de recursos apresentados contra decisões anteriores da Justiça Eleitoral.

Enquanto articula nos bastidores, Bolsonaro mantém presença em eventos públicos e segue promovendo debates sobre temas relacionados à sua inelegibilidade e à situação dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro. O julgamento no STF poderá marcar um novo estágio em sua trajetória judicial e política.

 

Fonte: Brasil 247/O Cafezinho

 

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