Boaventura de Sousa Santos: A Europa está a
armar-se ou a desarmar-se?
Toda a
normalidade induz e tolera um certo tipo de extremismo. Para além de um certo
limite, ou o extremismo é neutralizado ou o extremismo instaura uma nova
normalidade. A normalidade nos EUA é o cumprimento da Constituição e, no que se
refere às relações internacionais, é pôr esse cumprimento ao serviço dos
interesses dos EUA, o único aliado incondicional dos EUA. Digo incondicional no
sentido mais forte do termo: quem puser em causa esses interesses será
neutralizado, mesmo que seja o Presidente. A neutralização está a cargo do deep
State, o Estado profundo que, de facto, governa os EUA que conhecemos. O termo
deep State só começou a usar-se com referência aos EUA durante o primeiro
mandato de Trump, muitas vezes invocado por ele como bode expiatório dos seus
fracassos. Pretende designar a existência de interesses muito poderosos e bem
organizados que, sem qualquer escrutínio democrático, decidem os destinos do
país em momentos identificados como sendo de grave crise. É nesses momentos que
ocorrem acontecimentos dramáticos, ou decisões obscuras cujas causas nunca são
plenamente esclarecidas. Por exemplo, o assassinato do Presidente John Kennedy
(1963); Watergate (1972); Irão-Contra (1981-1986); o ataque às Torres Gémeas de
Nova Iorque conhecido como 9/11 (2001); a invasão do Iraque “justificada” por
inexistentes armas de destruição massiva (2003). Concebido de várias formas, o
deep State é hoje um tema incontornável e a sua aplicação é tão pertinente nos
países considerados autoritários como nos países considerados democráticos. (Para o caso dos EUA ver, por exemplo, Peter Dale Scott, The American
Deep State: Big Money, Big Oil and the Struggle for Democracy, 2015; Mike
Lofgren, The Deep State: The Fall of the Constitution and the Rise of a Shadow
Government, 2016). Por enquanto, o governo de Donald Trump é uma excepção
autorizada e o espectáculo de um extremismo. Se a normalidade vai sucumbir ou
prevalecer, se o extremismo de Trump se mantém ou não nos limites do tolerável,
são, por enquanto, questões em aberto. Tal como o futuro de Trump. Por agora,
legalmente, só o sistema judicial tem algum poder para deter Trump. Quanto ao
deep State, nada saberemos antes da sua intervenção estar consumada.
O
espectáculo gera um processo de retro-alimentação permanente: Donald Trump abre
em dias consecutivos os noticiários de quase todas as televisões do mundo. O
mundo surge como virado do avesso. De um dia para o outro, os EUA são (ou
parecem ser) aliados da Rússia contra a Ucrânia e a Europa. Quem podia imaginar
que os EUA votassem na ONU ao lado da China, da Coreia do Norte e do Irão na
resolução que visava condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia? O problema
maior para o mundo não é Trump, mas o modo com os líderes do mundo lidam com as
suas posições. Por outro lado, ao contrário do que a espuma dos dias nos
retrata, o comportamento de Trump é menos errático ou imprevisível do que se
imagina. Os eixos principais da sua política à luz dos seus primeiros passos
são os seguintes:
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O
negócio une e a política divide. Deve recorrer-se à divisão política para
melhorar os negócios, e não para os destruir. Neste domínio, a Rússia é mais
promissora que a Europa.
O
armamento é crucial para a economia norte-americana, mas para ser vendido, não
para ser usado, e muito menos pelos EUA.
Em
termos de rivalidade económica só a China conta.
O
capitalismo tem de fazer valer o seu DNA colonialista. O colonialismo é
pilhagem de recursos naturais. Sem ela não há capitalismo. Os palestianianos
são índios. Tal como os congoleses.
Uma
nova normalidade vai emergir não só nos EUA como no mundo: oligárquica,
autoritária, fascista na substância, democrática nas formalidades. É o
verdadeiro fim da história que só os ingénuos (como Francis Fukuyama) viram
residir no liberalismo capitalista.
·
A resposta da Europa
O
confronto “nunca visto” com Zelensky na Sala Oval da Casa Branca teve pouco a
ver com Zelensky. Com perfeita encenação, Trump quis acima de tudo humilhar a
Europa, humilhando o herói desta, o grande campeão da democracia. Quis também
humilhar Joe Biden por este ter impedido que a guerra terminasse dois meses
depois de ter começado; e também por estar convencido de que Biden está morto
nos EUA, mas vivo na Europa. E a Europa comportou-se como Trump esperava de
dirigentes medíocres que nada sabem de negócios. A Europa entrou na guerra por
pressão dos EUA via NATO. A NATO é os EUA pouco mais. A invasão pela Rússia foi
ilegal e condenável, mas está hoje plenamente documentado de que foi provocada
pelos EUA, convencidos de que enfraquecer a Rússia era enfraquecer um
aliado-chave da China. Trump tem um entendimento oposto. Por um lado, para ele,
só uma aliança calibrada com a Rússia pode enfraquecer a China. Por outro lado,
a Europa tem características contrárias ao que Trump antevê para os EUA e o
mundo: é demasiado secular e liberal; tem sistemas públicos de saúde e de
educação robustos (até agora); “excessiva” protecção dos trabalhadores;
“excessiva” protecção do meio ambiente e “excessiva” regulação estatal.
Em suma, a Europa é fraca por ter um Estado forte, por não ter recursos
naturais e por não poder defender-se de ataques externos sem o apoio dos
EUA.
O que
os líderes europeus não entendem é que a verdadeira fraqueza da Europa (não a
fraqueza segundo Trump) foi querida e induzida pelos EUA desde o fim da União
Soviética. Os EUA desde cedo temeram que a Europa se tornasse num global player
e com isso alimentasse o multipolarismo, sempre temido pelos EUA, que não
imaginam (e temem) deixar de ser o único global player. Quando o Presidente
Chirac da França e o chanceler Gerhard Schröder da Alemanha se opuseram à
invasão do Iraque, os EUA tomaram nota de que os aliados europeus eram futuros
rivais num mundo multipolar. Essa suspeita aumentou com o Tratado de
Lisboa de 2007, com a inauguração, em 2011, do primeiro gasoduto Nord Stream
para fornecer energia barata russa à maior economia europeia (e a outros estados
europeus) e com o fortalecimento, no mesmo ano, do pacto fiscal para fortalecer
a integração europeia. Aliás, a preferência da Alemanha pelo Nord Stream e a da
Itália (de Berlusconi) pelo South Stream aumentava a suspeita contra estes dois
países vistos como parceiros estratégicos da Rússia. A mesma suspeita contra um
multipolarismo que enfraqueceria os EUA está na base do apoio dos EUA ao Brexit
(2016-2020). Ou seja, os medíocres líderes europeus da última década não
entenderam que os EUA procuraram enfraquecer a Europa para agora a poderem
desprezar…por ser fraca.
Retirado
o apoio dos EUA à continuidade da guerra, os líderes europeus, bem oleados pelo
lobby da indústria de armamentos dos EUA, em vez de se sentirem aliviados por
se verem livres de uma guerra que lhes foi imposta e os levará à ruina
financeira – e à destruição da Ucrânia –, assumiram a continuidade da guerra e
a preparação para outras guerras como sua missão histórica, e pretendem vender
esta ideia suicida aos europeus, inventando um novo perigo: a ameaça russa. Em
suma, a Europa mordeu o isco lançado por Trump: vai rearmar-se para continuar a
desarmar-se social e politicamente. As armas mais complexas e caras serão
compradas à indústria militar dos EUA. De novo Trump atinge o seu objectivo: o
material bélico é crucial para fazer negócios, não para fazer a guerra. Ao
rearmar-se, a Europa transfere o investimento nas políticas sociais e na
transição energética para o investimento nas armas e, em consequência, aumenta
a desigualdade social e a polarização social, e ignora o perigo do colapso
ecológico. Abre um campo fértil onde pastam as ideias e as políticas de
extrema-direita. Ou seja, transforma-se numa réplica rasca dos EUA. O
autoritarismo fascista com fachada democrática está no horizonte, tal como
Trump deseja para a Europa e para o mundo.
Em
suma, ao rearmar-se, a Europa desarma-se. Em poucas décadas, a economia
europeia no seu conjunto não estará entre as dez maiores economias do mundo. E
do desarme social só beneficiará a extrema-direita, que neste momento, pelo
menos pela voz de Viktor Orban, parece ser mais a favor da paz e mais
resistente contra a orgia da preparação para a guerra que outras forças
políticas de direita e de esquerda.
·
Há uma ameaça russa?
A
Europa só seria um rival-aliado a respeitar se se tivesse mantido unida à
Rússia, o país com a maior superfície do mundo e com recursos naturais em
grande medida inexplorados. Era a proposta que dominou o eixo Paris-Berlim nas
duas primeiras décadas do século XXI. Haverá hoje uma ameaça russa contra a
Europa quando Putin pede aos empresários europeus para regressar à Rússia?
Trata-se da transferência subliminar do anti-comunismo para a russofobia? A
russofobia é algo muito mais antigo e vem desde, pelo menos, o final do século XIX.
Fiel ao seu projecto revolucionário, o próprio Karl Marx pode ser considerado
russófobo nas cartas que escreveu em 1878 a Wilhem Liebknecht, pai de Karl
Liebknecht. Tratava-se então de combater o reacionário império russo na altura
em guerra com o não menos reacionário império otomano. Perante a passividade da
Inglaterra e da Alemanha, Marx desabafava em francês: «il n'y a plus
d'Europe». Depois da Segunda Guerra Mundial, a russofobia metamorfoseou-se no
anti-comunismo. O grande pilar do anti-comunismo na Europa foi o catolicismo
conservador e, nos EUA, o Macarthismo. Mas a russofobia também alimentou a
ideologia comunista da China de Mao Tse Tung e a ideologia imperial do Japão
durante décadas. No Ocidente, os acordos de Yalta mantinham sob controle os
impulsos mais extremistas. Convém recordar que em 1955 o exército soviético
(pertencente ao regime comunista) retirou-se da Áustria em troca da
neutralidade desta. O mesmo tipo de proposta foi feita por Gorbachov em 1990 ao
aceitar a reunificação da Alemanha.
A ideia
da ameaça russa era sobretudo compreensível nos países da Europa do Norte e
Oriental. Lembremos que, para Lenin, o tempo da Revolução Russa foi
condicionado pela necessidade de terminar a guerra a todo o custo. E o custo
foi alto porque a Rússia
perdeu cerca de 30% do território que antes fazia parte do Império russo. Os
Bolsheviques aceitaram a independência da Finlândia, Estónia, Letónia,
Lituânia, Ucrânia e Bielorrússia, os últimos cinco países ocupados então pela
Alemanha. Foi um tratado de pouca dura, dado o desfecho da guerra, mas as
guerras locais que se seguiram (entre a Ucrânia e a Polónia, por exemplo) e a
Segunda Guerra Mundial voltaram a mudar o mapa geopolítico desta região, uma
região que, até à guerra da Ucrânia, era considerada periférica, tal como os
Balcãs, e de pouca importância para grandes projectos europeus (isto é, do eixo
Paris-Berlim). A russofobia regressa precisamente porque agora o centro da
Europa parece ter-se deslocado para a Ucrânia, a Europa Oriental e os países
bálticos.
Em
minha opinião, a maior ameaça para a Europa decorre da sua incapacidade de se
aproximar da Ucrânia, distanciando-se de Zelensky. Trump tentou mostrar aos
europeus que Zelensky era parte do problema, e não da solução. Os líderes europeus,
dando provas da sua indigência política, fazem vista grossa dos partidos
democráticos proibidos, da censura, dos democratas presos na Ucrânia e da forte
presença nazi no exército ucraniano. Ao entronizar um presidente de credenciais
democráticas duvidosas, praticam “regime change” ao contrário, fazendo tudo
para que não surjam outros líderes na Ucrânia que, em eleições livres e justas
e não dominadas pela paranoia russofóbica, reconstruam o país e façam prosperar
a democracia. O povo mártir da Ucrânia merece isso e muito mais.
·
Que futuro para a Europa?
Até à
guerra da Ucrânia, a Europa parecia um oásis num mundo em convulsão. Para quem
a observava de fora, a Europa juntava três características difíceis de reunir
em qualquer outra parte do mundo: liberdade individual (democracia considerada
robusta), solidariedade social, e paz. Para quem vivia na Europa, essas
características eram em parte verdade e em parte ficção. As desigualdades
sociais aumentavam; Bruxelas era mais uma comunidade de lobistas e burocratas
escandalosamente bem pagos do que de democratas focados nos interesses dos
cidadãos; a xenofobia crescia, como causa e consequência da polarização vinda
da extrema-direita em ascensão. Um mal-estar estava instalado depois de trinta
anos de crítica alimentada sobretudo pelo neoliberalismo interno e
internacional, para quem o Estado de bem-estar era inviável e a privatização
das políticas públicas (sobretudo das mais vinculadas ao bem-estar das
populações: saúde, educação, sistema de pensões) era a solução.
A
primeira Guerra Mundial fez desaparecer quatro impérios, três dos quais
europeus (russo, alemão, austro-húngaro e otomano); a Segunda Guerra Mundial
fez sucumbir o império japonês, emergir o império soviético e consolidar o
império norte-americano, enquanto os impérios europeus agonizavam no Sul global
(onde incluo as Caraíbas). Só para mencionar os casos mais salientes, o império
holandês, na Indonésia, o inglês, na Índia, o francês, na Argélia e nos países
do Sahel, e o português, na África sub-sahariana. Subrepticiamente reemergia um
velho-novo império, a China. A Europa está fora do jogo inter-imperial e
decidiu tragicamente optar pela política perdedora, quer ante o império
norte-americano, quer ante o império chinês. Enquanto as ex-colónias europeias
aprenderam a tirar vantagens das rivalidades inter-imperiais, a Europa, de tão
viciada pela memória do seu passado imperial, recusa-se a aprender com as suas
ex-colónias, e prefere um não lugar, uma espécie de subcontinente sem abrigo.
Tal como as populações sem abrigo, estará sujeita a todas as intempéries.
Fonte: Brasil 247

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