quinta-feira, 2 de maio de 2024

Paulo Kliass: Lula, abandone o arrocho de Haddad!

No próximo dia 5 de maio ocorrerá o Concurso Público Nacional Unificado, um importante processo de inovação e democratização dos certames para seleção de funcionários públicos em uma série de carreiras do governo federal. Como a economia é uma das matérias que deverão ser apresentadas aos candidatos, não seria de todo impossível imaginar a seguinte questão:

(…) “Mais importante do que o número é o compromisso de que nós vamos botar ordem em 10 anos de déficits públicos que acumulam quase 2 trilhões de reais” (…).

Aponte quem foi o ministro da Fazenda que fez a afirmação acima:

  1. Antonio Palocci
  2. Joaquim Levy
  3. Henrique Meirelles
  4. Paulo Guedes
  5. Nenhuma das anteriores

Tendo em vista o evidente viés de austeridade fiscal que a frase comporta, os candidatos talvez ficassem em dúvida respeito de quais dos quatro responsáveis por política econômicas ortodoxas e monetaristas dos últimos governos poderiam ter sido os responsáveis pela afirmação. Ainda assim, é bem provável que poucos ousassem assinalar a alternativa e) em seu cartão de respostas. Mas o fato é que o responsável por essa pérola do fiscalismo extremado foi ninguém mais, ninguém menos do que o atual titular da pasta da Fazenda, Fernando Haddad. O perigoso e revelador sincericídio do professor do Insper ocorreu em entrevista recente que ele concedeu à jornalista Mônica Bérgamo.

·        O austericídio de Haddad

A frase expressa de maneira cristalina a abordagem que o conservadorismo econômico apresenta para a política econômica em geral e para a política fiscal em particular. Trata-se de reproduzir ad nauseam as simplificações reducionistas a respeito dos impactos das despesas públicas sobre a atividade econômica e sobre as contas governamentais. Um dos pontos de partida de tal falácia reside na comparação equivocada e oportunista entre as contas de um governo de um país soberano e a contabilidade da dona de casa. O governo de uma nação tem às suas mãos um conjunto amplo e diversificado de instrumentos de política econômica, ao contrário do que ocorre com os indivíduos e mesmo com as empresas. O governo pode lançar mão de tributos, pode utilizar suas reservas internacionais ou pode lançar títulos da dívida pública, dentre outras opções de busca de recursos para cumprir com suas obrigações junto à sociedade.

Dessa forma, a frase mais ouvida do “não temos recursos” não se aplica como argumento para a falta de vontade política de recompor os seis anos de desgraça que o Brasil enfrentou entre os governos de Temer e Bolsonaro. Os recursos existem e poderiam muito bem servir como lastro para colocar em movimento o tão necessário processo de planejamento, condição fundamental para que o Brasil reencontre a trilha do desenvolvimento social, econômico e ambiental. Apenas a chamada Conta Única do Tesouro Nacional que é administrada junto ao Banco Central mantém um saldo credor de R$ 1,8 trilhão, de acordo com as informações oficias do órgão.

Porém, o que mais impressiona na fala de Haddad é a desenvoltura com que ele assume o personagem do financista raiz. A primeira questão refere-se à necessidade de “botar ordem” nas contas públicas. Isso significa que o ministro parte do princípio de que as coisas estariam em desordem. O próximo passo, caso houvesse tempo e espaço na entrevista, provavelmente seria falar em descontrole e na gastança generalizada. Ora, não é por essa ótica que um responsável pela política econômica de um governo progressista deveria expressar seu diagnóstico. O presidente eleito já afirmou por mais de uma oportunidade que pretende colocar em marcha ações buscando a estratégia desenvolvimentista.

·        Botar em ordem” às custas de quem?

Assim a prioridade não seria “botar ordem” nas contas públicas, mas sim colocar o Brasil em condições de oferecer um futuro de crescimento, de qualidade de vida e de bem estar para a maioria de sua população. Pra cumprir tais missões, Lula sabe que o país precisa voltar a ter elevação nas despesas governamentais e nos investimentos públicos. A recuperação do protagonismo é condição sine qua non para que ele consiga realizar 40 anos em 4, como frisava durante a campanha eleitoral de 2022. Romper com a lógica da austeridade extremada é a única maneira que ele tem para “fazer mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos”.

Haddad adota o “bordão do trilhão”, imagem que se tornou moeda corrente nas falas de seu antecessor, Paulo Guedes. Na tentativa de apontar um suposto escândalo no volume dos gastos públicos, ele chama a atenção para uma sucessão de déficits fiscais que teriam acumulado um total de quase R$ 2 trilhões ao longo da última década. Ora, o ministro apenas se esqueceu de esclarecer aos espectadores que se trata de um tipo bem particular de abordagem das contas públicas. Ele se refere ao déficit primário, cuja metodologia de cálculo exclui as rubricas relativas à dimensão financeira da contabilidade pública. Assim, esse déficit surge na agregação de despesas como previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, salários de servidores, saneamento e outras.

Ora, apresentar uma necessidade de financiamento nesta abordagem está muito longe da expressão “rombo” como os especialistas a soldo do financismo tratam do assunto nos grandes meios de comunicação. É triste ver o principal ministro do terceiro mandato de Lula tratar essa dimensão da política econômica de forma semelhante ao povo da alta finança. Haddad sabe muito bem que as necessidades exigidas para a recomposição das políticas públicas desmontadas e para a reconstrução das instituições públicas destruídas ao longo dos últimos seis anos pressupõem um esforço fiscal de peso. Esse processo demandaria uma orientação exatamente oposta à da austeridade e de chamar atenção de forma desonesta para supostos rombos trilionários.

Na verdade, não há nada de problemático nem escandaloso em um governo apresentar contas públicas deficitárias. Aliás, esta é a realidade atual da absoluta maioria dos países desenvolvidos. E nem por isso Estados Unidos, Alemanha, França, Canadá ou Japão estão à beira do apocalipse. Pelo menos, não por conta de estarem apresentando déficit fiscal. Ao contrário do que Haddad deixa a entender, a existência de déficit fiscal neste momento no Brasil é um dos caminhos para a busca de solução para nossos problemas.

·        E os R$ 5 trilhões de juros?

Portanto, se o ministro quisesse realmente “botar ordem na casa”, ele deveria olhar para outra conta do gasto público. Refiro-me aqui justamente àquele tipo de despesa que escapa de qualquer tipo de teto, de limite ou de contingenciamento. Trata-se da rubrica que assinala o pagamento de juros de dívida pública. Esse tipo de despesa que o ministro não mencionou foi responsável por R$ 748 bilhões ao longo dos últimos 12 meses, o segundo maior item do Orçamento da União. Mas enquanto isso, o pessoal da Fazenda fica colecionando cortes e empecilhos de algumas centenas de milhões nas contas das universidades, da saúde e outras áreas sensíveis da dimensão social.

A verdadeira comparação com os tais R$ 2 trilhões que Haddad faz referência deveriam ser os R$ 5 trilhões que o Tesouro Nacional destinou ao pagamento de juros da dívida ao longo da mesma década. Mas neste caso, ele não deve achar a cifra relevante e talvez não considere importante “botar ordem” nesse domínio. Afinal, mexer com esse vespeiro significa afetar os interesses dos 1% do topo da nossa vergonhosa pirâmide da desigualdade. A opção de Haddad tem sido sempre a de buscar algum tipo de resultado positivo nas contas públicas por meio de redução ou limitação dos recursos nas despesas primárias. Assim, a lógica no Novo Arcabouço Fiscal – que ele elaborou após consultas ao presidente do Banco Central e a meia dúzia de banqueiros do oligopólio privado – supõe a retirada dos pisos constitucionais para saúde e educação, além da tão sonhada desindexação dos benefícios da previdência social em relação ao salário mínimo.

Lula sabe muito bem dos prejuízos que a trilha da austeridade extremada de Haddad pode provocar ao seu governo e à maioria da população. O próprio Partido dos Trabalhadores apontou tal risco em reunião recente. O Diretório Nacional usou, inclusive, a expressão “austericídio” na resolução em que condenou aspectos da política econômica do governo. No final de abril completam-se os primeiros 16 meses de Lula 3.0. Isso significa que já passou 1/3 deste mandato. Apesar dos inegáveis avanços realizados, a longa lista de demandas e necessidades continua sem ser atendida em função do arrocho fiscal imposto pela lógica do “não podemos gastar para botar ordem nas contas”.

É fundamental que Lula assuma o leme do barco e se desvie da rota da austeridade fiscal. Ele mesmo já se manifestou por diversas ocasiões a respeito da importância da responsabilidade social em comparação com a responsabilidade fiscal:

(…) “Se não resolvermos problemas sociais, não vale a pena recuperar esse país. Não adianta só pensar em responsabilidade fiscal, temos de pensar em responsabilidade social” (…)

Para dar conta das imensas tarefas que a História lhe reserva como dirigente político perante o futuro da nação, Lula precisa se livrar do abraço de afogado do financismo. Para colocar em marcha o motor do desenvolvimento, é preciso abandonar de forma urgente os dogmas financistas da austeridade.

 

¨      A flexibilização dos pisos de Saúde e Educação avança no governo Lula. Por Ana Paula Salviatti

Apesar de sempre ter sido sonho da direita, Haddad leva a ideia adiante

 

NOSSA COLUNA COMEÇA COM a seguinte manchete publicada na Folha/Valor Econômico: ‘Flexibilização dos Pisos de Saúde e Educação pode liberar até R$ 131 bilhões para outros gastos até 2033’.

Esta manchete nos leva a várias questões. A primeira que surge na mente é: Para quê, exatamente, será essa liberação? Quais outros gastos seriam mais urgentes do que Saúde e Educação em nosso país? Ou ainda, que dívida é essa que o país precisa saldar?

O debate em torno do orçamento previsto pela Constituição de 1988 tem a mesma idade da Nova República. Desde então, sua implementação enfrenta inúmeros entraves, e seus recursos já foram desviados para criar o Fundo Social de Emergência em 1993-1994. 

Posteriormente, foi provisoriamente institucionalizado através da Desvinculação de Receitas da União, a Dru, que chegou a representar 20% dos recursos com finalidade vinculante pela Constituição. Durante o governo Temer, essa porcentagem foi atualizada para 30%.

A frase mais repetida entre políticos de direita, centro e agora também de centro-esquerda é: ‘A Constituição não cabe no orçamento’. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, promoveu a flexibilização dos recursos de Saúde e Educação, um feito que o próprio partido do qual é membro conseguiu barrar várias vezes em governos de outras siglas.

Contudo, para manter o governo dentro da autoimposta meta de gastos fiscais, Fernando lançou mão da flexibilização dos dois orçamentos. A nova meta de gastos do governo faz parte do novo arcabouço fiscal proposto pelo governo logo nos meses iniciais de 2023.

A ideia era criar um espaço para a realização de políticas fiscais pelo governo. Deste modo, a regra que instituía o congelamento dos gastos fiscais por 20 anos, implementada ainda no governo Temer, era substituída pela nova regra, que criava uma espécie de elo entre os gastos fiscais e o crescimento econômico do país. Se o país crescesse, os gastos cresceriam também.

Já que estamos no reino da responsabilidade fiscal, a proposta de Haddad foi considerada um tanto quanto irresponsável. Se o país enfrentasse uma desaceleração econômica, não poderia reivindicar um dos principais mecanismos de amortecimento dinâmico da economia, o gasto fiscal.

Isso, é claro, se tomarmos como ponto de partida que o ajuste do mercado apenas acontecerá meses após o juízo final.

Respondendo à pergunta imaginada pelo leitor da nossa coluna sobre a manchete inicial – ‘Liberar R$ 131 bilhões para quais outros gastos?’ – as possibilidades são vastas. O país enfrenta um déficit crônico de investimentos em Saneamento Básico, investimentos que poderiam refletir diretamente na economia e no orçamento público, especialmente na área da Saúde, em relativamente pouco tempo.

Mas, a nossa manchete se baseia nos cálculos feitos pela Secretaria do Tesouro Nacional, que faz projeções quase que diárias sobre o perfil e a curva de gastos com a dívida pública brasileira. Seguindo o parco crescimento econômico do país desde meados de 2015, a curva e o vencimento da dívida têm reduzido o horizonte de manobra do Tesouro. Deste modo, metade da pergunta feita pelos leitores à manchete foi respondida.

Então, a economia de 133 bilhões, até 2033, o que supõe que a flexibilização duraria até lá, basicamente seria uma espécie de poupança do governo para garantir o pagamento dos credores do Tesouro Nacional.

Essa é a lógica por detrás da manchete e da flexibilização feita no piso da Educação e Saúde, a qual, convenhamos, é muito intuitiva, mas, em problemas econômicos talvez seja mais interessante uma abordagem mais pragmática.

A economia tem suas liturgias, seus cânticos, e até alguns evangelhos apócrifos, como o da dona de casa que emite moeda para pagar as compras na quitanda e decide os níveis de juros do mercado com outras ‘grandes donas de casa’ do bairro. São máximas como essas que sempre nos fascinam.

Por sua vez, o Tesouro Nacional, responsável pela administração da dívida pública, está preocupado com o perfil e o vencimento da mesma, e com razão.

No entanto, ao invés de apenas considerar como cortes em despesas vinculadas pela Constituição liberariam bilhões para ‘outros gastos’, o Tesouro poderia se concentrar em propostas que promovam a redução das taxas de juros dos títulos e o prolongamento de seu vencimento.

Não sejamos ingênuos, assim como a água encontra seu caminho entre as rochas, a economia sempre descobre formas de se ajustar às regulamentações. O objetivo é, pelo menos, buscar o controle orçamentário, especialmente diante de um governo de centro-esquerda.

Tudo isso sem esquecer que estamos lidando com a dívida interna, não a externa. Este é um tema que merece uma coluna própria para discussão.

Em última análise, o mercado – esse ente que vive à base de juros e maracujina – precisa ter a certeza de que suas expectativas serão realizadas. Assim, uma poupança de recursos está sendo feita até 2030, assegurando seu pagamento até lá.

O grande capital nacional é como uma embarcação ancorada na dívida pública, e a liquidez do nosso sistema financeiro se sustenta há décadas em taxas de juros reais elevadas. 

Num cenário onde os mecanismos de condução macroeconômica parecem sequestrados, reduzir a taxa de juro e incentivar o investimento privado através do gasto público são considerados quase heréticos.

Fernando, à frente da Fazenda, reafirma seu compromisso com as expectativas do mercado, sem alterar o status quo da máquina. Nada de novo sob o sol, exceto pelo fato de que este Fernando não é Henrique, mas Haddad.

 

Fonte: Outras Palavras/The Intercept

 

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