Racismo
anti-indígena e a nova faceta do agrogolpe: o pacto narcísico da branquitude
‘aliada’
“Não quero deixar nenhuma terra indígena sem
demarcação”, essa foi uma das frases proferidas pelo presidente Lula no último
dia do 19º Acampamento Terra Livre (ATL), ocorrido em Brasília, no mês de abril
(ASSUNÇÃO, 2023). O presidente ratificou o compromisso do seu governo com uma
das pautas prioritárias dos povos indígenas e dos povos tradicionais
brasileiros: a demarcação de terras.
No dia 28 de abril de 2023, munido de um discurso
emocionante sobre a retomada dos processos de demarcação de terras indígenas,
os quais se encontravam parados desde 2018, o presidente Lula homologou a
demarcação de 06 territórios:
As Terras Indígenas (TI1s) de Arara do Rio Amônia,
no Acre, com população de 434 pessoas e portaria declaratória do ano de 2009;
Kariri-Xocó, em Alagoas, com população de 2,3 mil pessoas e portaria
declaratória do ano de 2006; Rio dos Índios, no Rio Grande do Sul, com
população de 143 pessoas e portaria declaratória de 2004; Tremembé da Barra do
Mundaú, no Ceará, com população de 580 pessoas e portaria declaratória do ano
de 2015; Uneiuxi, no Amazonas, com população de 249 pessoas e portaria
declaratória do ano de 2006; e Avá-Canoeiro, em Goiás, com população de nove
pessoas e portaria declaratória do ano de 1996 (VERDÉLIO, 2023).
No mesmo dia da homologação das TIs, Lula reafirmou
o comprometimento do governo com a luta dos povos indígenas: “a luta por
demarcação dos povos indígenas é uma luta por respeito, direitos e proteção da
nossa natureza e país. Estamos avançando” (SILVA, 2023). Ainda assim, das 14
terras com processos de demarcação já concluídos, ou seja, que aguardavam
apenas a homologação do presidente, apenas 06 (seis) foram assinados. Ainda há
outros 251 territórios com processos em andamento, no aguardo de ações
governamentais que possam garantir celeridade para conclusão (MARTINS, 2023a).
O Cacique Raoni Kayapó, liderança indígena Kayapó,
que subiu a rampa do Planalto ao lado de Lula, destacou a importância das ações
políticas do governo para acelerar os processos de demarcação em andamento:
“Falei para o presidente Lula agilizar (os
processos) para os parentes que ainda têm (a titulação). E vocês também
precisam defender esse território para não deixar os garimpeiros e os
madeireiros entrarem. O presidente Lula precisa rever recursos financeiros para
o atendimento dos povos indígenas”, discursou Raoni, em linguagem indígena.”
(FELLET, 2019).
É importante destacar que o presidente Lula foi
eleito por unanimidade nas 48 urnas localizadas em territórios indígenas, que
compreendem 11 estados brasileiros (OLIVEIRA, 2022). As motivações representam
manifestações de insubordinação e r-existência dos povos originários contra a
política de destruição do meio ambiente, de negação de danos e de disseminação
de discursos declaradamente anti-indígenas adotados pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro, durante o seu governo.
Logo, os votos que levaram à eleição de Lula são, na
realidade, não apenas uma chance de a população brasileira respirar novamente
frente aos últimos anos de necropolítica dos governos Temer e Bolsonaro, mas,
sobretudo, um voto de confiança concedido ao presidente Lula para fazer cumprir
suas promessas aos povos originários da Terra.
No entanto, uma série de ataques e retrocessos estão
ocorrendo nos últimos dias, notoriamente, desde o dia 24 de maio, onde a
comissão mista do Congresso Nacional, designada para analisar a Medida
Provisória nº 1.154\2023 que trata das mudanças na estrutura dos ministérios
realizadas pelo governo Lula em janeiro deste ano, aprovou o relatório ecocída
do Deputado Federal alagoano, Isnaldo Bulhões (MDB). O relatório impacta
radicalmente os Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Originários, pois
houve a transferência da responsabilidade sobre o reconhecimento da demarcação
das terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), para ao
Ministério da Justiça.
Assim como, houve a substituição de competência
sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) – documento obrigatório para registro
dos imóveis rurais, integrando um conjunto de informações ambientais que evitam
processos de grilagem e desmatamento de terras, por meio do controle e
monitoramento de propriedades e posses rurais – para o Ministério da Gestão e
da Inovação em Serviços Públicos, retirando, portanto, o papel do Ministério do
Meio Ambiente.
Além disso, no mesmo dia, o plenário da Câmara dos
Deputados aprovou, em regime de urgência, a tramitação do PL nº 490/2007 que
trata sobre o marco temporal. O marco temporal é “um genocídio legislado”, nas
palavras da deputada federal Célia Xakriabá (PSOL), pois estipula uma data
limite, a data da promulgação da Constituição Federal – 05 de outubro de 1988
-, para que os povos originários possam reivindicar os seus direitos à
demarcação de terras (NOGUEIRA, 2023).
A votação do PL ocorreu no dia 30 de maio,
oportunidade em que a Câmara dos Deputados aprovou com 283 votos favoráveis e
apenas 155 contrários. O objetivo dos parlamentares é fazer pressão diante do
julgamento do recurso extraordinário do Supremo Tribunal Federal (STF), agendado
para o dia 07 de junho, que trata sobre a tese do marco temporal. Além disso, a
Bancada Ruralista objetiva transferir a competência do Executivo sobre a
demarcação de terras indígenas para o Legislativo, ou seja, o Congresso
Nacional mais reacionário dos últimos tempos decidindo sobre a luta pelas
terras ancestrais dos povos originários e, consequentemente, dos não indígenas.
Além disso, a tese do marco temporal permite
que TI’s sejam exploradas por megaempreendimentos econômicos, pois dispensa a
consulta prévia dos povos indígenas locais, além de uma série de retrocessos
que dizem respeito a chancela de invasões e expedições missionárias em
comunidades indígenas isoladas; a retomada de terras demarcadas, caso o governo
verifique uma “alteração de ordem cultural” naquela comunidade; a não ampliação
das terras já demarcadas, caso houver alguma retificação ou erro no processo de
homologação, assim como autoriza a exploração de atividades econômicas dentro
das TI’s por terceiros, sobretudo, para cultivo de transgênicos.
É de conhecimento público que a agenda do presidente
Lula está articulada com o “Centrão” – grupo de partidos de centro-direita
que apoiam diferentes governos para obter ganhos políticos e econômicos -,
fruto de uma tentativa do Partido dos Trabalhadores (PT) de se unir com os
partidos conservadores e liberais para derrotar o governo de extrema-direita do
Jair Bolsonaro.
No entanto, o preço desta aliança é sentido de forma
potencializada pelas minorias políticas, devido ao processo de desradicalização
das demandas apresentadas pelo governo do PT em favor da luta dos povos
originários e da comunidade preocupada com as questões ambientais, através de
concessões com os interesses da Bancada Ruralista. Uma conciliação que parte de
um lugar de protagonismo envolvendo gênero, raça, classe e espécie, de forma
muito específica: a branquitude masculina especista.
As conciliações realizadas na área ambiental pelo
atual governo, não param na tese do marco temporal ou na desestruturação dos
ministérios do MA e MI, houve também a aprovação do texto que altera a Lei
º 11.428/2006 da Mata Atlântica, autorizando o desmatamento para a
construção de linhas de transmissão de energia elétrica, de gasoduto ou de
sistemas de abastecimento público de água, sem a realização de estudo prévio de
impacto ambiental (EIA) ou outras formas de compensação. A votação contou com
34 parlamentares do PT favoráveis a medida provisória.
Percebe-se pelas ações políticas tomadas nos últimos
dias, que o governo não pensou duas vezes antes de renunciar e\ou subsidiar às
pautas que estruturam os Ministérios dos Povos Originários e do Meio Ambiente,
ao conciliar outros interesses com o Centrão. A partir disso, podemos
compreender que essa tomada de decisões revela não apenas uma estratégia pragmática
do jogo político, a tradicional “conciliação de classes” para governar, mas
como já pontuado pelas ministras Sônia Guajajara e Marina Silva, o pacto
narcísico da branquitude: “dois ministérios comandados por duas mulheres que
representam a diversidade. Nós entendemos que é machismo e racismo impregnado
no Parlamento” (ESTEVES, 2023).
O “pacto narcísico”, denominado por Maria Aparecida
da Silva Bento (2002), faz alusão ao pacto estabelecido entre brancos que
provoca a negação e o evitamento do problema para a manutenção dos privilégios
raciais. “O negro é inventado como um ‘outro’ inferior, em contraposição ao
branco que se tem e é tido como superior; e esse ‘outro’ é visto como
ameaçador” (BENTO, 2002, p. 07).
Neste caso, o fator em comum que liga o pacto da
branquitude à política brasileira é o racismo antinegro e anti-indígena, pois
ao serem considerados um “perigo”, não apenas socialmente, como também
economicamente, esses grupos se tornam ameaças sociais, de modo que na primeira
oportunidade de seus “aliados” brancos realizarem concessões para não se
comprometerem com a elite burguesa do Congresso Nacional, grandes corporações
imperialistas e o agronegócio, são atacadas, silenciadas e têm seus direitos
negados.
Cabe relembrar ao presidente Lula, o peso das suas
escolhas ao subir a rampa do Planalto no 1º dia do mês de janeiro de 202, ao
lado de lideranças que representam diferentes grupos da sociedade, em
específico o Cacique Raoni Metuktire, que também se opôs aos governos Lula e
Dilma, quando da construção da usina de Belo Monte – um dos maiores danos
ambientais da história brasileira.
Nas palavras de Raoni: “Nossa luta contra Bolsonaro
é a mesma que fizemos contra Lula e Dilma. Todos eles (Lula, Dilma, Bolsonaro)
geraram essa divisão entre o índio e o governo” (FELLET, 2019).
O impacto da presença de Raoni marca o
reestabelecimento de pontes de diálogo do Governo Federal com as populações
indígenas, as quais haviam sido quebradas pelas políticas anti-indígenas
adotadas pelo governo PT no passado.
O agravamento das mudanças climáticas, assim como os
inúmeros casos de danos ambientais provocados por grandes corporações, em
conluio com os Estados e mercados, têm sido objeto de atenção global,
especialmente no contexto brasileiro onde o desmatamento é um dos maiores
causadores do aquecimento global.
Logo, as demandas dos povos originários, assim como
dos movimentos contra o racismo ambiental não envolvem apenas a tentativa de
sobrevivência de seus povos, mas primordialmente, a sobrevivência da Terra em colapso
pelas minorias dominantes.
Por isso, as justificativas adotadas por parte de
membros do partido do presidente e, até mesmo, de militantes da esquerda, no
sentido de que o governo precisa ceder e realizar concessões com o Centrão e a
direita Congressista para poder governar, não prosperam para os grupos que
subiram a rampa presidencial.
Os brancos podem até competir entre si, mas partem
de segmentos que se consideram “iguais” (BENTO, 2002), de modo que o racismo
epistêmico e ambiental, visualizado nas últimas decisões do governo, são
utilizados como instrumentos de autopreservação do pacto da branquitude,
sobretudo, de uma branquitude masculina dentro desses espaços políticos.
O dispositivo de poder da branquitude não se limita
apenas “aqueles que não desaprovam o pensamento e as práticas racistas”, para
usar as expressões de Lourenço Cardoso (2010) como, por exemplo, os grupos
conservadores da ultradireita e os brancos que reproduzem a lógica da
superioridade racial (branquitude acrítica). Mas, sobretudo, aqueles que se
dizem aliados, que desaprovam o racismo publicamente, mas no âmbito privado
estabelecem relações entre os seus adversários, geralmente homens brancos
ricos, de forma a descartar e silenciar o “Outro” (branquitude crítica).
Não se trata de se decepcionar com as artimanhas do
jogo político, uma vez que os povos originários são perseguidos, criminalizados
e massacrados historicamente, independentemente da perspectiva ideológica
adotada pelos governos que assumem o poder, tampouco diante das táticas
políticas utilizadas para eleger um governo progressista, em resposta aos
últimos anos de obscurantismo e genocídio operado pelo governo Bolsonaro, mas,
especialmente, por uma nova faceta do “agrogolpe” (WELCH, 2018).
Agora, a maior decepção está concentrada no golpe
articulado pelo agronegócio, chancelado pelo governo eleito, contra os povos
indígenas e, de certa maneira, contra a população brasileira, pois dependemos
dos ecossistemas protegidos para continuar sobrevivendo. O desmonte nos ministérios
do meio ambiente e dos povos originários ocorreu com o aval do governo, cuja
eleição colocou a pauta indígena no centro da roda.
“Todo mundo lembra da campanha do presidente Lula,
que trouxe a pauta indígena para o centro do debate. Foi nessa perspectiva que foi criado o Ministério dos Povos Indígenas.
Mas estamos assistindo a um verdadeiro ataque a um ministério que levou 523
anos para ser criado, mas nem cinco meses para ser desmontado. Arrancar do MPI
a demarcação é nos tirar o coração, nossa principal pauta, que é tão cara para
nós”, desabafou Sonia, no Salão Verde da Câmara, enquanto acompanhava o trator
ruralista passando sobre a agenda ambiental idealizada no início do governo
Lula (MARTINS, 2023b).
No mesmo dia da aprovação da MP que desmontou o
Ministério dos Povos Indígenas, foi realizada uma entrevista coletiva no Salão
Verde da Câmara dos Deputados, com a presença de Sônia Guajajara e das Deputadas
Federais Célia Xakriabá (PSOL), Dandara Tonantzin (PT) e Duda Salabert
(PDT).
No entanto, como destacado na reportagem do Sumaúma
(MARTINS, 2023b), o que mais chamou a atenção pública não foi a presença das
lideranças indígenas na entrevista (e por pouco a de Marina Silva, a qual só
não pode participar devido ao atraso da audiência que participava), mas sim,
aqueles que estavam ausentes, especialmente, os representantes aliados ao
governo, que se encontravam a poucos metros do Salão Verde: José Guimarães
(PT), Zeca Dirceu (PT), Jaques Wagner (PT), Fabiano Contarato (PT) e Randolfe
Rodrigues (sem partido-AP).
Essas ausências são desnudadas quando compreendemos
o pacto da branquitude articulado no Congresso Nacional, pois o branco não
apenas se favorece na lógica que fundamenta a sociedade racializada, como
também é produtor ativo dessa estrutura, através da manutenção dos privilégios
étnicos e raciais. Privilégios estes que permitem, inclusive, que os brancos
sejam isentos e imunes das responsabilidades atreladas as consequências danosas
das suas próprias decisões.
O mesmo não ocorre quando se trata de grupos sociais
demarcados pela raça, gênero e etnia como é o caso de Sônia Guajarara, a qual
foi veementemente atacada nas redes sociais – incluindo militantes de esquerda
-, pois estava na França, recebendo o prêmio “Amazon Fund
Alliance Program”, durante o Festival de Cannes, enquanto os brancos
determinavam os rumos do seu ministério, e do Ministério do Meio Ambiente. O
pacto de autopreservação da branquitude congressista contou com a comemoração
da própria ala governista do presidente Lula no Congresso Nacional, o Partido
dos Trabalhadores (PT) (OLIVEIRA, 2023).
“A preocupação em preservar, isentar, proteger os
interesses do grupo branco, convive nos discursos com uma culpabilização e
desvalorização dos negros, e por vezes, com uma indiferença em relação à
violação de seus direitos” (BENTO, 2002, p.164).
Assim, o “povo da mercadoria” presente no Congresso
Nacional, como refere Kopenawa (2019), até pode ter dialogado com a equipe de
Marina Silva, mas o racismo anti-indígena revela a árdua batalha que o
Ministério dos Povos Originários terá de enfrentar com a “branquitude crítica”,
que publicamente se diz aliada, mas no plano privado se mostra produtora e
reprodutora dos privilégios étnicos e raciais que produzem danos sociais.
A fala do Deputado Isnaldo Bulhões (MDB) em uma das
reuniões da MP nº 1.154/2023, é a que melhor representa o pacto da branquitude
crítica, Bulhões narrou publicamente que “adora os indígenas”, mas sequer
procurou a Ministra Sônia Guajajara para lhe escutar e dialogar a respeito das
decisões que afetam diretamente o seu ministério e a sobrevivência de seus
povos (MARTINS, 2023b).
Diante desse cenário, podemos ver a intrínseca
relação entre o pacto narcísico da branquitude e a colonialidade da natureza,
de maneira que esta é o objeto-mercadoria a ser dominada e explorada pelo
homem-branco-capitalista, e tudo aquilo que a representa em outros planos, como
a presença e o protagonismo dos povos originários pela Terra e as lideranças
contra o racismo ambiental no Congresso Nacional seja desqualificada, silenciada
e descartada.
Repetindo as palavras de Wakya Um Manee, do povo
Lakota, Krenak (2020, p. 13) destaca em seu livro “a vida não é útil”: Quando o
último peixe estiver nas águas e a última árvore for removida da terra, só
então o homem perceberá que ele não é capaz de comer seu dinheiro”.
Fonte: Por Karine Agatha França, no Ecodebate

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