Por
que Brasil é o segundo país com mais casos de hanseníase no mundo
O dermatologista Marco Andrey Cipriani Frade
trabalha com pacientes de hanseníase e estuda a doença há mais de 25 anos.
Ele é professor da Faculdade de Medicina da USP de
Ribeirão Preto, no interior paulista, e atualmente preside a Sociedade
Brasileira de Hansenologia.
Em meados de 2008, ao voltar de um pós-doutorado na
Holanda, o especialista sentiu algo estranho. Dois dedos do pé começaram a
formigar enquanto ele caminhava numa praia. Pouco depois, uma região da coxa
perdeu pelos e ficou dormente.
"Como eu não queria me autodiagnosticar,
procurei dois colegas e relatei essa perda de sensibilidade. Eles disseram que
provavelmente não era nada demais, apenas 'coisa da minha cabeça'",
relata.
Os exames laboratoriais que o médico fez também não
permitiram nenhuma conclusão definitiva.
Não satisfeito, Frade foi conversar com sua chefe na
universidade. "Ela examinou, disse que aquilo era hanseníase e precisava
ser tratado", diz.
A história do dermatologista, ele próprio um dos
principais especialistas no tema do país, reflete uma realidade pouco
divulgada. O Brasil ainda é o segundo país do mundo com mais casos de
hanseníase — só fica atrás da Índia.
Para piorar, dificuldades para reconhecer os
sintomas mais frequentes desta doença e a falta de conscientização sobre o tema
dificultam o diagnóstico precoce de uma condição para a qual há tratamento e
cura.
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Uma doença milenar
A hanseníase é descrita em tratados de Medicina da
Índia do século 6 a.C. Ela também aparece em diversas passagens do Novo
Testamento da Bíblia, ainda com o nome pelo qual era conhecida no passado: lepra.
No Evangelho de Marcos, por exemplo, há uma passagem
em que um "leproso" se aproxima de Jesus Cristo e pede para ser
curado.
"E Jesus, movido de compaixão, estendeu a mão,
tocou-o [...] Logo a lepra desapareceu e [ele] ficou limpo", diz o texto.
Na Europa durante a Idade Média, indivíduos com a
doença eram expulsos das cidades e obrigados a andar com um sino para anunciar
a passagem.
Muitos eram internados nos "leprosários"
ou "lazaretos", instituições que continuaram (e continuam) a existir
em muitos lugares — inclusive no Brasil.
Em suma, a hanseníase é causada pela bactéria Mycobacterium
leprae. Ela é transmitida por meio de gotículas de saliva e do contato
próximo e frequente com um indivíduo infectado.
Esse micro-organismo tem uma preferência pelos
lugares mais frios do corpo — como cotovelos, joelhos, pés e lóbulos da orelha
—, onde há uma menor circulação de sangue.
Ele costuma se esconder nos nervos periféricos, que
ficam logo abaixo da pele, e podem permanecer ali por anos ou décadas antes de manifestar
qualquer sintoma.
"Cerca de 90% da população consegue se defender
bem do patógeno. Mas há 10% que, por uma questão de imunidade, vão desenvolver
a doença", estima o médico Egon Daxbacher, coordenador do Departamento de
Hanseníase da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
O nome hanseníase, aliás, faz referência ao
cientista norueguês Gerhard Hansen, que descobriu o patógeno e o identificou
como o causador da moléstia no século 19.
Outra característica marcante da Mycobacterium
leprae é o tempo que ela leva para se reproduzir: enquanto outras
bactérias geram descendentes em 12 ou 24 horas, essa espécie tem uma replicação
lenta, que demora até 15 dias.
Essa morosidade ajuda a entender uma das
características mais marcantes da enfermidade: os anos ou as décadas que ela
demora a se manifestar e provocar os efeitos mais graves no organismo.
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Uma ameaça mais real do que se imagina
Embora essa doença pareça uma lembrança que ficou no
passado, as estatísticas mostram uma realidade completamente distinta: o mais
recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, publicado
em 11 de maio, revela que 18.318 brasileiros foram diagnosticados
com hanseníase em 2021.
Isso representa 13% de todos os casos registrados no
mundo — segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram 140.594 pacientes
detectados com o Mycobacterium leprae em todo o planeta naquele
ano.
No documento, o Ministério da Saúde faz uma análise
das notificações de hanseníase no país entre 2010 e 2021.
A boa notícia é que a taxa de novos casos está em
queda: na maioria dos Estados, esse índice diminuiu. A doença só continua a ser
considerada "hiperendêmica" (quando há mais de 10 casos por 100 mil
habitantes) em Tocantins e Mato Grosso.
Ela também está "muito alta" (5 a 9,99
casos por 100 mil habitantes) no Maranhão e no Piauí.
Para completar, oito Estados têm uma taxa
"alta" (2,5 a 4,99 casos) nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Daxbacher indica que a queda maior observada nos
últimos dois ou três anos não deve ser encarada com tanto otimismo. "Eu
gostaria muito que isso indicasse uma melhora da situação, mas certamente há um
efeito da pandemia de covid-19 na diminuição dos diagnósticos da
hanseníase", avalia.
Ou seja: como falamos de uma doença de progressão
lenta, a tendência é que as estatísticas também se modifiquem pouco a pouco.
Na visão do dermatologista, grandes mudanças epidemiológicas
num espaço tão curto de tempo refletem mais a urgência relacionada ao
coronavírus, que exigiu um desvio em esforços e recursos de todo o setor de
saúde.
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Uma realidade esquecida
Frade faz outra ponderação a respeito desses números
recém-divulgados.
Ele lembra que, no início dos anos 2000, a OMS
lançou uma estratégia para diminuir a hanseníase em todo o globo — a meta era
ter menos de um caso por dez mil habitantes e, assim, tirar a doença da lista
dos principais problemas de saúde pública.
"E isso de fato ocorreu em boa parte do mundo.
Mas o Brasil não alcançou esse objetivo", destaca o dermatologista.
"Porém, com a meta global atingida, as
campanhas de busca ativa de novos casos deixaram de ocorrer e as próprias
Faculdades de Medicina passaram a não falar mais sobre a hanseníase com os
novos alunos", lembra ele.
Esse alívio das medidas até fazia sentido do ponto
vista internacional — porém, no caso particular do Brasil e das outras nações
que ficaram pelo caminho e não tiveram a diminuição esperada, a hanseníase
perdeu a atenção que vinha recebendo.
E isso, por sua vez, fez com que os casos e as
transmissões continuassem a acontecer na surdina, sem o devido cuidado das
instituições de saúde regionais, nacionais e internacionais.
"O dado que aparece nos boletins
epidemiológicos é nada mais, nada menos, que a representação da realidade. A
questão é que os profissionais formados hoje em dia sabem pouco sobre quando
suspeitar de hanseníase", opina Frade.
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Por que o Brasil?
Mas o que faz do nosso país um dos líderes do
ranking global de hanseníase até hoje?
Daxbacher explica que a doença está muito
relacionada à pobreza e aos locais onde várias pessoas dividem a mesma casa.
"Índia, Brasil e Indonésia são países muito
populosos e com grandes aglomerados urbanos, onde mora boa parte da
população", contextualiza.
O dermatologista lembra que a bactéria causadora da
enfermidade é transmitida por meio da respiração e depende do contato
constante.
"As pessoas mais acometidas ficam muito
próximas umas das outras e moram em casas com poucos cômodos e baixa
ventilação. Essa ainda é a realidade de parte da população brasileira e desses
outros países", complementa.
E isso, claro, se alia ao fato de a hanseníase ser
uma doença que recebe menos atenção das políticas públicas.
Sem diagnóstico e tratamento, os infectados seguem
transmitindo a bactéria por muitos anos — o que perpetua as cadeias de
transmissão dela na comunidade.
Mas Frade lembra que a moléstia pode acometer gente
de qualquer classe social. Segundo ele, a hanseníase está de fato vinculada à
pobreza, mas ela não é exclusiva dos menos favorecidos.
"Nós temos muitos pacientes de classe média ou
alta que passam por inúmeras ressonâncias magnéticas ou ultrassonografias e
demoram décadas para ter um diagnóstico adequado", destaca.
·
Sintomas além da pele
Frade também chama a atenção para o fato de os
sintomas da hanseníase serem mais amplos do que é conhecido pelo imaginário
popular — em linhas gerais, as pessoas pensam que ela só provoca lesões
deformadoras de pele.
"Precisamos lembrar das manifestações
neurológicas dessa doença", diz o professor da USP de Ribeirão Preto.
Ele ainda estima que as lesões de pele clássicas
aparecem em menos de 30% dos casos mais recentes.
"As pessoas sofrem por muito tempo com outros
sintomas neurológicos e há uma dificuldade enorme em reconhecê-los como um
sinal de suspeita", lamenta ele.
Os outros incômodos relacionados à hanseníase que
vão além da pele incluem dormência e formigamentos de partes específicas do
corpo (especialmente mãos, braços, pés, pernas e rosto), perda de sensibilidade
de trechos da pele, cãibras e dores.
E todas essas pistas da infecção têm repercussões
práticas na qualidade de vida e na saúde dos acometidos.
"É a dona de casa que encosta na panela quente
e não sente nada. Ela só vai perceber a bolha na pele depois, enquanto toma
banho. Ou o mecânico que não consegue mais rosquear um parafuso com a ponta dos
dedos", exemplifica Frade.
Com o passar do tempo — e a destruição dos nervos
pela Mycobacterium leprae —, ocorre a perda de movimentos,
deformações e outras complicações secundárias.
"Há pacientes que calçam um sapato com uma
pedra dentro e nem se dão conta. Eles só vão perceber algo de errado quando
veem a meia cheia de sangue no fim do dia", lembra.
"Fora que essas lesões despercebidas elevam o
risco de outras infecções, que às vezes necessitam até de amputação",
acrescenta o médico.
O dermatologista destaca que, nas definições
oficiais da OMS, o diagnóstico da hanseníase é feito a partir de um trio de
manifestações:
- Lesões em áreas da pele com alteração da sensibilidade térmica,
dolorosa e/ou tátil;
- Espessamento de nervos periféricos, associado a alterações
sensitivas, motoras e/ou autonômicas;
- Presença de bacilos do Mycobacterium leprae em
exames.
"Se há um desses três fatores, mesmo que o
teste dê negativo, é necessário pensar em hanseníase", esclarece Frade.
Daxbacher pondera que o xis da questão está na
detecção precoce. "Se realizarmos o diagnóstico nos primeiros estágios, o
paciente pode apresentar apenas queixas neurológicas sem manifestações na
pele", diz.
"Portanto, é importante procurar o serviço de
saúde para uma avaliação se você estiver com dormência persistente em partes do
corpo ou o aparecimento de manchas na pele, especialmente aquelas que não ardem,
não coçam e não doem", orienta.
Esses sintomas podem ser várias coisas — de diabetes
à hérnia de disco, de micose à dermatite. Mas também sugerem o início de uma
hanseníase.
Feito o diagnóstico, o tratamento é relativamente
simples e está disponível a todos os brasileiros no Sistema Único de Saúde
(SUS). A depender do estágio e do grau de acometimento, o médico vai prescrever
dois ou três antibióticos, que são tomados por seis a doze meses.
Esse esquema terapêutico tem poder curativo — mas
pacientes que já tiveram lesões profundas em nervos muitas vezes não recuperam
100% dos movimentos ou da função de pés, mãos e outras partes do corpo,
infelizmente.
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Como diminuir os casos
Daxbacher destaca que, nos últimos meses, o
Ministério da Saúde atualizou a estratégia para lidar com a hanseníase.
"Uma novidade que já está em curso em vários
Estados é a implantação de um teste rápido que permitirá acompanhar os
familiares de indivíduos que foram diagnosticados com a doença", resume.
"A ideia é seguir mais de perto essas pessoas
ao longo dos anos para conferir se elas se infectaram. A partir daí, é possível
fazer a detecção mais precoce e iniciar o tratamento", complementa.
A esperança é que esse rastreamento de contatos
permita flagrar os casos nos estágios iniciais e impedir a criação de novas
cadeias de transmissão do Mycobacterium leprae na comunidade —
para, futuramente, ter taxas cada vez menores dessa enfermidade no país.
Para Frade, a hanseníase deixará de ser um problema
de saúde pública no Brasil quando médicos, enfermeiros e outros especialistas
estiverem melhor treinados sobre o problema.
"É necessário formar e capacitar profissionais
de saúde para que eles não tenham preconceitos e sejam capazes de reconhecer os
três sinais cardinais da hanseníase", conclui ele.
Fonte: BBC News Brasil

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