quinta-feira, 1 de junho de 2023

Petróleo na foz do Amazonas: expoentes da política do Amapá se unem para desinformar a população

Pelas ruas do município de Oiapoque, no estado do Amapá, Região Norte do Brasil, um carro de som circulava e convidava a população para a audiência pública “Petróleo e gás na costa do Amapá – Um debate sobre o futuro”. Na praça principal, uma faixa avisava sobre a realização do evento, proposto pelo deputado estadual Inacio Monteiro Maciel (PDT). Os principais hotéis da cidade estavam lotados, e a maior parte dos hóspedes eram pessoas envolvidas na produção, assessores de políticos e outros interessados na discussão sobre a abertura de uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. Mas em vez de um espaço para expor e debater as consequências do projeto da Petrobras, a audiência pública tornou-se um palco para a desinformação disseminada por alguns políticos amapaenses e para ataques à ministra Marina Silva e ao presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho.

No saguão de um dos hotéis, o ex-deputado federal Antonio Feijão, que quando presidiu o extinto Departamento Nacional de Produção Mineral no Amapá foi condenado por inserir informação falsa em documento, dava o tom do que seria o encontro: “Randolfe ressuscitou politicamente. Fortaleceu a união da Assembleia amapaense. O que ele está dizendo é: Marina Silva não quer o petróleo que dá trabalho ao povo do Amapá”.

Feijão se referia ao senador Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso, que recém havia deixado o partido Rede Sustentabilidade, o mesmo da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e corrido a se posicionar a favor da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. O senador tomou a decisão logo após o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, negar em 17 de maio a licença de perfuração na área requerida pela Petrobras.

No café da manhã do dia da audiência, 19 de maio, Feijão já alardeava previsões sobre o tempo de permanência de Marina Silva na pasta, em conversas com hóspedes e colegas da região. Na bolsa de apostas dos políticos amapaenses, Marina vai durar no máximo mais 90 dias no ministério. O prognóstico do político ligado ao garimpo é o mesmo de boa parte da elite política e econômica da Região Norte: Marina Silva vai cair e Randolfe, com seu gesto inusitado – de rifar seu comprometimento com as causas ambientais –, deve ser o próximo ministro do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

•        “Burocrata de olhos claros”, diz Randolfe sobre presidente do Ibama

Com os ânimos acirrados, dois dias depois de o Ibama negar a licença de Atividade de Perfuração Marítima no bloco FZA-M-59, chamado de bloco 59, os políticos do Amapá promoveram e disseminaram, por mais de cinco horas, a narrativa uníssona de que o órgão ambiental do governo federal estava cometendo “um crime”. Ignoravam, em suas falas, o fato de que o Ibama segue orientações técnicas para evitar um colapso ambiental.

O crime do Ibama, segundo a maioria dos políticos locais, teria sido “negar o desenvolvimento do Amapá e a geração de emprego e renda”.  Em vídeo gravado e enviado para a abertura do evento, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil), ex-presidente do Senado, acusou: “O Ibama cometeu um crime de lesa-pátria contra o povo brasileiro. O que o presidente do Ibama fez foi negar ao povo o direito de saber o que tem em seu solo”.  Alcolumbre tachou a decisão de Agostinho de “inoportuna”.

Para não ficar atrás, Randolfe gritava, ao microfone, que o povo amapaense deveria ser consultado e que tal decisão não poderia vir de “um burocrata de olhos claros”, referência a Rodrigo Agostinho, que tem os olhos azuis. O senador afirmou ainda que não aprendeu “meio ambiente na [avenida] Faria Lima [centro financeiro de São Paulo] ou no banco da faculdade”, mas sim com os povos indígenas do Amapá. Não explicou, porém, como a proteção da natureza combina com a defesa veemente da extração de petróleo em uma região de alta vulnerabilidade socioambiental.

Nem Alcolumbre nem Randolfe explicaram na audiência pública por que a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia estão lutando para não fazer a Avaliação Ambiental Estratégica, se dizem ter tanta certeza de que a exploração de petróleo na margem equatorial é segura. A dupla de senadores amapaenses com ressonância nacional preferiu não fazer esse debate. Ao contrário. Randolfe insistiu na tese de que a população amapaense deveria ser consultada sobre a aprovação da licença.  O argumento a favor da consulta, porém, não procede, como já foi exaustivamente explicado pelos técnicos do Ibama e pelo próprio Agostinho.

No processo de licenciamento ambiental, o “empreendedor” tem a obrigação de realizar audiências públicas apenas para informar a população da área afetada pelo projeto e tirar dúvidas, o que ocorreu no caso do bloco 59. O Ibama explica que a fase de análise é exclusivamente técnica, portanto não existe a obrigatoriedade de ouvir, por exemplo, os políticos da região. O objetivo é exatamente evitar qualquer tipo de ingerência e contaminação em um debate delicado e complexo que deve ser guiado somente pela ciência, em nome do bem comum.

Outro participante do evento, o senador Lucas Barreto (PSD) afirmou que as bancadas federal e estadual do Amapá estão mais unidas do que nunca para vencer o que ele chamou de “forças ocultas” que tentariam barrar o desenvolvimento do estado. “Nós vamos vencer as forças ocultas”, garantiu. “O Amapá é vítima de uma guerra de vaidades entre o Ministério do Meio Ambiente e a Petrobras”, entoou o senador. Barreto disse ainda que ele, Randolfe e Alcolumbre, os três representantes do Amapá no Senado, estão “ombreados para a guerra”.

O senador Barreto declarou que, junto com Alcolumbre, fará o necessário para que Randolfe assuma o Ministério do Meio Ambiente. E questionou até o passado e a identidade de Marina Silva como amazônida pelo fato de ela ter escolhido o estado de São Paulo para disputar a eleição de 2022. Marina, uma filha de seringueiros do Acre que se converteu em ativista ao lado de Chico Mendes e tem uma longa trajetória de defesa do meio ambiente, foi eleita deputada federal. Ela se licenciou do cargo para ocupar o ministério a pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem se reconciliou durante a campanha eleitoral, tornando-se uma das principais fiadoras de sua vitória sobre Jair Bolsonaro.

Fazendo coro com os parlamentares no ataque à ministra, o deputado estadual Jory Oeiras (PP) disse que Marina é ligada a ONGs internacionais e deixou de defender o povo da Amazônia – outro discurso bastante comum entre políticos locais que tentam sempre associar o terceiro setor, de forma indistinta, a interesses internacionais espúrios na região. Paradoxalmente, costumam receber as grandes mineradoras transnacionais com os braços abertos.

O Ibama apontou três pilares que fundamentaram a negativa da licença no caso do bloco 59. O primeiro diz respeito à insuficiência do Plano de Proteção à Fauna Oleada, parte do Plano de Emergência Individual, que é o planejamento das ações da empresa em resposta a um eventual vazamento de petróleo no mar. Além disso, o Ibama informou que há falhas e medidas insuficientes no plano de comunicação social com comunidades indígenas da região e que não foram considerados os impactos do empreendimento nos três territórios indígenas da região do Oiapoque. Por fim, ao negar a licença, o presidente do Ibama citou a inexistência de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS) para a margem equatorial do Brasil, que inclui a foz do Amazonas. A AAAS é um instrumento criado em 2012 para avaliar quais áreas numa região estão aptas ou não para a exploração de petróleo e gás natural. Essa avaliação deveria ter sido encomendada pelos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima de Minas e Energia antes do leilão do bloco 59 e de outros na margem equatorial, em 2013, mas isso não ocorreu. A AAAS pode dar maior segurança ao licenciamento ambiental feito pelo Ibama.

•        Usando indígenas para posar nas redes

As primeiras fileiras de cadeiras foram reservadas aos indígenas da região. Poderia ser considerado um sinal de respeito aos povos originários, mas as horas  revelaram que era uma estratégia para que os políticos pudessem cumprimentá-los enquanto seus assessores gravavam o ato.  A cena foi projetada para convencer a opinião pública do país de que as comunidades tradicionais são a favor da exploração do petróleo. Era, também, uma forma de tentar deslegitimar o apontamento do Ibama de que o projeto apresentado pela Petrobras continha falhas no plano de comunicação social com as comunidades indígenas da região.

O indígena Ramon Karipuna se apresentou e, em seu discurso, disse que representava 60 lideranças da região. “O povo indígena não é contra o empreendimento, mas precisamos que a atividade seja feita da melhor forma, sem sermos contaminados. Precisamos viver em paz no nosso território”, alegou. A representação de Ramon, porém, não refletia a realidade. Caciques consultados por SUMAÚMA sob a condição de anonimato – por questões de segurança, a pedido deles próprios – contaram que haviam optado por boicotar o evento porque tinham sido convidados de última hora, sem tempo hábil para discutir o assunto com as comunidades.

Segundo o protocolo do Conselho de Caciques dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO), as comunidades devem ser convidadas para audiências com no mínimo 15 dias de antecedência, para que todas as lideranças, que representam 53 aldeias, tenham tempo de discutir um posicionamento comum. “Mobilizar nossas lideranças de aldeias mais distantes e de todo o território não é fácil. Tem acessos que são difíceis. Com dois dias [de antecedência] não tem como mobilizar, se reunir e ter um alinhamento de conversa para poder participar de uma audiência desse porte. É impossível”, afirmou um dos caciques, que pediu para não ter o nome publicado na reportagem por temer a forte pressão política na região.

A audiência pública em Oiapoque foi majoritariamente ocupada por políticos e defensores do projeto da Petrobras. Entre eles, estavam o governador do estado, Clécio Luís (Solidariedade); o diretor-presidente da Companhia Maranhense de Gás, Allan Kardec, representando o governador do Maranhão, Carlos Brandão (PSB); os deputados estaduais paraenses Iran Lima (MDB), Luth Rebelo (Progressistas) e Nilton Neves (PSD); a presidenta interina da Empresa de Pesquisa Energética, Angela Livino; e o prefeito de Oiapoque, Breno Lima (PRTB). Em nenhum momento se abriu espaço para o contraditório e a apresentação das inconsistências do projeto de perfuração do poço na foz do Amazonas e seus riscos para a fauna, a flora e a população local. O que foi dito aos participantes da audiência é que a decisão tomada pelo Ibama era política e não levava em consideração o desenvolvimento econômico de Oiapoque e do estado do Amapá. Sem contrapontos, o evento se tornou um palco para a desinformação sobre a biodiversidade local e sobre o próprio projeto defendido.

‘Escravos ambientais’ ávidos por petróleo

Ignorando o que aponta a comunidade científica, o senador Lucas Barreto chegou a afirmar, da tribuna do evento, que não existem recifes na bacia da foz do rio Amazonas, mas apenas “fósseis”. Ao defender a perfuração na área, ele disse ainda que o território amapaense já cumpre suas obrigações ambientais, por ser o estado com o maior número de reservas no Brasil: “De que adiantou ser um estado preservado? Do que adiantou fazer o dever de casa na questão ambiental? Ninguém nos paga por isso. Ninguém nos vê. Ninguém paga para sermos escravos ambientais”. E continuou: “Somos o estado mais rico do planeta, mas o nosso povo está em cima da riqueza, na pobreza, contemplando a natureza. Olhar para a árvore, beleza cênica, não enche barriga. O povo da Amazônia não faz fotossíntese. A solução está na costa do Amapá”.

Em relação à existência dos recifes amazônicos, sua abundância na região se traduz, por exemplo, na volumosa pesca do pargo, um peixe recifal, explicou a SUMAÚMA o biólogo Vinicius Nora, mestre em ecologia e gerente de Oceanos e Clima, da organização brasileira Instituto Internacional Arayara. Para Nora, “a alegação de que ‘existem apenas fósseis’ é mais uma desinformação para diminuir a importância dos recifes amazônicos”. O biólogo enfatiza que os recifes são um fato reconhecido até mesmo pelas petroleiras. E defende a ideia de que “é necessário criar mecanismos de proteção, como a criação de uma reserva extrativista ou outra categoria de unidade de conservação, para preservar os meios de vida e esse importante ecossistema amazônico”.

Os políticos que ocuparam a tribuna tentaram minimizar os prováveis impactos para a região abordando o tema da distância do ponto de exploração do bloco 59 até a foz. “Está mais perto da Guiana do que do Brasil”, alegou Randolfe, ignorando  que essa localização não traz nenhuma garantia de segurança por conta da velocidade das correntes marítimas. A preocupação de entidades da sociedade civil é que discussões sem transparência e sem compromisso com a verdade camuflem a especulação do setor de petróleo e gás na região, onde a Agência Nacional do Petróleo incluiu 328 blocos exploratórios, entre concessão, oferta e estudo. Todos os 328 prontos para tentar seguir o mesmo caminho do bloco 59, todos à espera apenas de um precedente.

 

Fonte: Sumaúma

 

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