‘O
São Francisco não avança mais ao mar, pois não tem mais força’, alerta
presidente do CBHSF
Com farta cabeleira preta, olhos esbugalhados e boca
aberta mostrando dentes enormes, a carranca decora as proas dos barcos que
navegam pelas águas do rio São Francisco. Para barqueiros e pescadores da
região, a figura antropomórfica (mistura de traços humanos e animalescos) tem o
significado de proteção, assustando maus espíritos, animais perigosos,
tempestades, naufrágios, e trazendo sorte. Apesar de esteticamente divergir
quanto ao padrãozinho de beleza imposto, ela foi escolhida para ser modelo da
campanha 'Eu Viro Carranca para defender o Velho Chico', realizada pelo Comitê
da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF).
O objetivo é dar visibilidade aos problemas
enfrentados pelo rio de mais de 2.800 km de extensão, que nasce na Serra da
Canastra, em Minas Gerais, e deságua no Oceano Atlântico, na divisa entre
Alagoas e Sergipe. Ou pelo menos costumava desaguar, como nos ensinou o saudoso
Gonzagão, nos versos da música Riacho do Navio: “O rio São Francisco vai bater
no ‘mêi’ do mar”.
É que, com o passar dos anos, a dinâmica do Velho
Chico tem mudado: “Com a chegada das grandes hidrelétricas, sua vazão passou a
ser controlada, havendo modificação da hidrodinâmica natural. O São Francisco
hoje não avança mais ao mar, pois não tem mais força. O que ocorre é o oposto:
o mar avança no rio. Infelizmente, parte do Baixo São Francisco está com a água
salgada”. Quem explica é Maciel Oliveira, presidente do CBHSF.
Em abril, representantes do Comitê e da sociedade
civil foram até Brasília para cobrar ações de proteção e anunciar a criação da
Frente Parlamentar em Defesa do São Francisco. Entre eles, discursando para
dezenas de políticos, estava Maciel.
Crítico da transposição, o alagoano de 40 anos
afirma que o Comitê sempre foi contrário ao conceito do projeto, principalmente
na ausência de ouvir a população afetada e envolvida com a obra. Durante o
último governo, segundo ele, a situação ficou pior: "Nesses quatro anos, a
transposição foi tocada absolutamente às escuras. O Comitê gestor da
transposição, criado anteriormente para acompanhar e definir critérios, nunca
se reuniu, nem discutiu. Ou seja, ficamos alheios a qualquer informação".
Neste sábado (3), é comemorado o Dia Nacional de
Defesa do São Francisco, no Dia Mundial do Meio Ambiente, nesta segunda-feira
(5), Maciel Oliveira convoca toda a sociedade a também virar carranca para
proteger o Velho Chico: "O momento é de uma grande pactuação pela
revitalização do nosso rio. São mais de 500 cidades lançando esgoto no Velho
Chico, são expansões agrícolas sem controle. Todos precisam ver que o São
Francisco é fonte de vida para mais de 18 milhões de pessoas que habitam em sua
bacia".
LEIA A ENTREVISTA:
·
Qual a importância do rio São Francisco para o
Nordeste?
O Rio São Francisco é de extrema importância para o
abastecimento de água do Nordeste, sendo considerado um dos fatores essenciais
para o seu desenvolvimento. Por localizar-se no semiárido nordestino, o Velho
Chico é a principal fonte de água da região.O Brasil é um país privilegiado em
termos de recursos hídricos, mas isso não quer dizer que essa água se distribua
de maneira igualitária. É como a natureza trabalha. Enquanto a Região Norte tem
praticamente 65% dessa disponibilidade, no Nordeste temos apenas 3%. Há essa
disparidade e, nesse contexto, o São Francisco é determinante e está sob enorme
pressão de demandas para usos múltiplos.
·
Poderia traçar um breve panorama histórico do que
ocorreu com o rio, ao longo desses anos?
Ao longo dos anos, o Velho Chico passou por muitos
processos antrópicos (resultado da ação humana). Com a chegada das grandes
hidrelétricas, sua vazão passou a ser controlada, havendo modificação da sua
hidrodinâmica natural. O São Francisco hoje não avança mais ao mar, porque não
tem mais força. O que ocorre é o oposto: o mar avança no rio. Infelizmente,
parte do Baixo São Francisco está com a água salgada. As cidades próximas à foz
passam por sérios problemas de salinização das suas águas.
·
Na Bahia, onde começa e onde termina o Velho Chico?
O Estado da Bahia é um dos principais privilegiados
com o Velho Chico. Após a divisa com Minas Gerais, até Paulo Afonso, mais de
115 municípios baianos compõem a Bacia do Rio São Francisco, com as regiões
fisiográficas do médio e submédio São Francisco.
·
Quais os usos feitos do rio, por parte da população?
Além da geração de energia, o rio é usado para
irrigação, pesca artesanal, turismo, navegação, consumo humano, entre outros. E
os usos são conflitantes, então há a necessidade de um planejamento rigoroso e
uma concertação de interesses para se antecipar aos conflitos pelo uso da água.
·
Qual a missão do Comitê da Bacia Hidrográfica do São
Francisco (CBHSF)? Há quanto tempo existe? Como surgiu? Quem participa?
O CBHSF tem como missão descentralizar o poder de
decisão, integrar as ações públicas e privadas e promover a participação de
todos os setores da sociedade. O objetivo é implementar a política de recursos
hídricos em toda a bacia, estabelecendo regras de conduta locais e
gerenciando os conflitos e os interesses
locais. Foi criado por decreto presidencial, em 05 de junho de 2001, após uma
grande mobilização social das instituições da bacia. Ao longo dos seus mais de
20 anos, o Comitê presta um serviço à sociedade como forma de gestão e
participação social. Fazem parte do comitê organizações da sociedade civil,
usuários da água de diversos setores, instituições técnicas e de ensino e
pesquisa, os povos e comunidades tradicionais, além da representação dos
poderes públicos, nas esferas municipal, estadual e federal.
·
Quais as ações mais importantes já realizadas pelo
Comitê?
Desde 2010, já elaboramos 116 planos municipais de
saneamento básico (47 apenas no estado da Bahia), fizemos obras de
abastecimento de água para povos e comunidades tradicionais em toda a bacia.
Aproximadamente, R$ 35 milhões foram investidos de 2012 a 2022, no estado da
Bahia, com recursos oriundos da cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Temos
mais obras e projetos importantes em andamento.
·
Este ano, uma comissão foi para Brasília, para o
lançamento da edição de 10 anos da campanha ‘Eu Viro Carranca para Defender o
Velho Chico’. Poderia falar um pouco sobre a campanha e como foi o lançamento
pontual na capital do Brasil? Quais foram os encaminhamentos?
Realizamos o lançamento no salão nobre do Congresso
Nacional. A intenção foi mostrar e conclamar os políticos a se inteirar sobre
os problemas do Velho Chico. Chamamos atenção para o fato de que o Dia Nacional
em Defesa do Rio São Francisco e a campanha irão se realizar em um novo
contexto institucional, resultante das eleições realizadas em 2022 para
renovação dos governos. Diante disso, o CBHSF reafirmou seu papel histórico de
completo distanciamento da política partidária, sem, no entanto, deixar de lado
a necessidade de continuar atuando intensamente em todos os espaços da política
institucional, em defesa dos princípios e das legítimas demandas referentes à
boa gestão das águas no Brasil. Apelamos, ainda, à Ministra do Meio Ambiente,
Marina Silva, como demanda principal da comunidade brasileira das águas, que dê
à temática das águas o lugar mínimo que lhe é devido na estrutura da política
ambiental oficial brasileira. Entre eles, a criação da Secretaria Nacional de
Águas na estrutura do Ministério do Meio Ambiente. Também apelamos ao governo
federal para a consolidação do Sistema Nacional dos Recursos Hídricos, através
da criação de novos comitês interestaduais de bacias hidrográficas; da
universalização da cobrança pelo uso das águas em todas as bacias hidrográficas
de domínio federal; a universalização da implantação de sistemas de
monitoramento da quantidade e da qualidade das águas em todo o território
nacional.
·
Vamos falar de transposição. Em que pé está?
O Comitê sempre foi contrário ao conceito do projeto
da transposição, principalmente na ausência de ouvir a população afetada e
envolvida com a obra. A transposição já está em operação, principalmente no
eixo Leste, onde leva água para a região de Campina Grande, Paraíba.
·
Em relação a abastecimento, o que dá para
dimensionar de bom ou ruim?
Em relação ao abastecimento temos conhecimento que o
projeto trouxe melhorias em Pernambuco e Alagoas
·
Do ponto de vista dos recursos, há dinheiro para
manter as obras de transposição?
O grande problema é a operação, ou seja, a gestão da
transposição daqui pra frente. Quem vai pagar a conta? Os estados beneficiados
ainda não estão pagando.
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Como foi tocada a transposição nos últimos quatro
anos?
Absolutamente às escuras. O Comitê gestor da
transposição, criado anteriormente para acompanhar e definir critérios, nesse
último governo nunca se reuniu, nem discutiu. Ou seja, ficamos alheios a
qualquer informação.
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Quais as perspectivas para os próximos anos?
Temos perspectivas positivas em participar do
processo de diálogo. Já cobramos que os Conselhos Gestores da Transposição e
Revitalização sejam imediatamente retomados. Acreditamos que possamos ter mais
envolvimento da participação social nos processos de decisão.
·
Como as atuais gestões - estadual e nacional - têm lidado
com a questão da preservação do São Francisco?
No âmbito estadual, já tivemos reuniões com o
secretário de Meio Ambiente da Bahia, Eduardo Sodré, a fim de estreitar laços
com o CBHSF. O secretário mostrou-se muito interessado na articulação e afirmou
que irá contribuir com a gestão e preservação da Bacia. Já no âmbito federal,
estamos em articulação com os diversos ministérios e já retomamos diálogos
importantes.
·
Atualmente, quais as maiores ameaças ao rio?
As maiores ameaças são a falta de gestão e planejamento.
Todos querem água do Velho Chico, pensam em grandes projetos, sem pensar em sua
recuperação. O momento é de uma grande pactuação pela revitalização do rio São
Francisco. Todos precisam pensar na mesma causa. São mais de 500 cidades
lançando esgoto no Velho Chico, são expansões agrícolas sem controle. Todos
precisam ver que o rio é fonte de vida para mais de 18 milhões de pessoas que
habitam em sua bacia.
·
O Velho Chico vai morrer?
Não podemos pensar na morte do São Francisco,
enquanto houver pessoas e instituições abnegadas em defesa do rio e de seu
povo.
Existe um programa de fiscalização, do qual o Comitê
faz parte, realizado em cidades banhadas pelo São Francisco. Fale um pouco
sobre esse programa e os benefícios para o rio.
Contando com a participação de ONGs e diversos
órgãos públicos, de todas as esferas, o programa FPI - Fiscalização Preventiva
Integrada - é o maior programa de integração, educação e defesa do rio em todo
o Brasil. A FPI é um grande exemplo de
organização. Iniciou-se em 2002, através da iniciativa do Ministério Público da
Bahia (MP-BA) e do CREA e hoje está nos principais estados da bacia (Minas
Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco). O Comitê apoia, participa e
financia a iniciativa, que traz resultados positivos de recuperação do Velho
Chico e de melhoria da qualidade de vida da nossa população.
Fonte: Correio

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