Simony dos Anjos é evangélica, filha de pastor evangélico e
de seminarista, cientista social, mestre em educação e integrante do coletivo
Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Composto por mulheres feministas e
evangélicas, o coletivo promove a igualdade de gênero dentro e fora da igreja e
dá palestras sobre direitos reprodutivos e violência doméstica.
“A gente age em igrejas neopentecostais, casas-abrigo da
prefeitura. Começaram a enxergar na gente, mulheres evangélicas, uma maneira de
tratar problemas que a igreja tem enfrentado, a violência doméstica, por
exemplo. Porque há duas décadas a violência doméstica era abafada. Hoje, com
toda essa efervescência, essa primavera feminista, as mulheres se sentem
encorajadas a denunciar e a igreja está em um ponto em que, se ela abafa, vai
perder fiéis. Então, vai ter que tratar da violência doméstica de alguma
maneira. E aí a gente começou a ser muito convidada”, conta.
Ela acrescenta, porém, que o direcionamento quanto ao
divórcio em caso de violência doméstica, por exemplo, ainda depende muito da
opinião do líder espiritual de cada igreja: “Varia muito, porque há uma
personalização da liderança, e as vontades pessoais dessa liderança vão
influenciar muito no andamento da comunidade. Mas de modo geral o que se
percebe é repúdio total à violência doméstica proporcional ao repúdio ao
divórcio. O divórcio não é uma questão. O que as igrejas sempre orientam essas
mulheres que sofrem é que elas saiam de casa um tempo, fiquem na casa de um parente
e que orem pelo marido. Mas o divórcio não é uma opção na maioria das igrejas”.
Simony conta que teve uma criação “preconceituosa,
conservadora e de intolerância total”, mas, ao entrar na faculdade de ciências
sociais, levou um choque ao descobrir pessoas que pensavam de modo diferente de
tudo que ela conhecia e passou a repensar a maneira de exercer sua fé: “A
igreja é uma bolha. Eu acho, inclusive, que o primeiro grande aspecto do porquê
de as pessoas não criticarem os políticos evangélicos é esse. Você socializa
dentro da igreja, você namora dentro da igreja, você passa o Natal dentro da
igreja, você passa a virada do ano dentro da igreja. Todas as datas
comemorativas são dentro da igreja. Então, você vive como se tudo que estivesse
sendo dito ali fosse a única possibilidade de enxergar o mundo”.
Ela acredita que foi a antropologia que forneceu as
ferramentas para que ela se mantivesse na igreja enquanto uma voz de
resistência. “Existe também a Frente Evangélica pela Legalização do Aborto,
essa bem atacada. Algumas integrantes recebem ameaças de morte, e uma delas
deixou o país recentemente. Mas nós participamos de fóruns de discussão pela
descriminalização do aborto, vamos para as ruas nas manifestações feministas,
lutamos contra a PEC 181.”
Ela conta que existe toda uma escola de teologia feminista
que busca ler a Bíblia de uma perspectiva questionadora: “Como que nós,
teólogas feministas, tratamos dos textos-chave do patriarcado? Que é submissão
da mulher, a mulher deve ficar calada, a mulher virtuosa. São textos-chave do
patriarcado para fazer com que a mulher pense que esse é seu lugar.
A teologia feminista é a teologia da suspeita. Porque nós
encontramos a palavra de Deus na Bíblia, mas ela não é integralmente a palavra
de Deus. A teologia da suspeita sempre vai fazer uma perguntinha muito
safadinha que é: quem escreveu? Foram homens sobre mulheres. Então por que o
texto de Gálatas 3:28, que fala que não existe homem nem mulher, todos são em
Jesus, não é tão utilizado?
Há um uso interessado da Bíblia. Por exemplo, todo mundo
gosta de colocar Dalila como traidora, mas ela não traiu ninguém porque ela não
era judia, ela era filisteia! Sansão que era um cara egoico, um cara
inconsequente. Ele apostava as coisas e depois não conseguia pagar e matava todo
mundo. Ele se enrabicha com uma filisteia e essa mulher é pressionada pelos
poderosos, pelos príncipes filisteus a matá-lo. A filisteia não traiu o povo de
Deus porque ela não era do povo de Deus. Mas a gente constrói todo uma
narrativa de traição”.
Simony cita a freira Ivone Gebara, filósofa e uma das
fundadoras da teologia feminista na América Latina, que incomodou tanto o
Vaticano que foi obrigada a ficar dois anos enclausurada, sem se manifestar
publicamente. “As mulheres constituem a base da igreja, são elas que abrem o
templo, limpam, cuidam dos doentes. Se essas mulheres fugirem do controle, a
igreja foge do controle. E por isso as mulheres que são consagradas pastoras
muitas vezes são as que reproduzem o discurso machista. Como a menina pastora,
como a ministra Damares Silva, como a Ana Paula Valadão, como a Helena Tannure.
Mulheres que reproduzem e agradam esse discurso.”
Pergunto a Simony o que aprendeu sobre ser mulher na igreja
e o que pensa hoje a respeito disso: “Eu aprendi que ser uma mulher era alguém
que tinha que se preparar para casar. Eu aprendi que ser mulher era ser uma boa
mãe, era ser uma boa esposa, era ser uma boa serva, era ser o arrimo da
família, era ser o esteio do lar, era ser ajudadora idônea. Ajudadora idônea é
aquela que ajuda o seu homem a não errar. Na igreja, eu aprendi que ser uma boa
mulher era ser o contrário do que Eva foi. Eva levou o homem dela ao erro. Uma
boa mulher é aquela que não leva o seu homem a errar e não leva homem nenhum a
errar porque, quando eles nos estupram, eles nos assediam, somos nós quem
seduzimos. Eu aprendi que ser sedutora, ser sensual, ser feliz com o meu corpo,
expor o meu corpo era errado. E hoje você tem que achar o ponto ótimo entre a
indústria de exposição da mulher e o recato que a igreja impõe porque, por
exemplo, nossos jovens têm as suas vidas sexuais pautadas pelos filmes
pornográficos, e você é uma mulher que não pode ser como Jezebel. Você tem que
ter uma vagina adequada, você não pode ser gorda. Você vai por silicone. Você
vai adequar o seu corpo ao modelo porque nós fomos criadas para agradar. Mas a
gente vai fazendo isso sendo belas e recatadas.
Tem uma loja de eróticos que chama Erótica Fé, e um dos
adstringentes que são vendidos é o ‘virgem novamente’, que faz a parede da
vagina se colar para que quando você vá ter relação sexual com o seu homem
pareça que você é virgem novamente. Isso é um produto para mulheres
evangélicas.
O que eu estou querendo dizer, no limite, é que a gente vive
em uma eterna luta contra o corpo feminino. Isso é ser mulher da igreja, é você
estar lutando contra o corpo feminino o tempo inteiro, e a naturalidade do
corpo feminino é ofensiva.
Mas eu gostaria de encerrar dizendo o seguinte: quem é mais
parecido com Jesus? Quem é que sangra e não morre? Quem é que gera a vida? Quem
é que cuida? Quem é que apascenta? São as mulheres. O corpo feminino gera medo.
É um corpo que sangra e não morre e de todo o tipo de sangue que há na
sociedade, o único que causa nojo é o sangue da menstruação. Isso é ser mulher
na igreja. É você equilibrar tudo isso, e, se você falhar nessa dança louca, a
culpa é sua. Eu acho que é mais ou menos por aí”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário