Como a indústria utiliza a ciência para
defender uso de agrotóxicos
UMA EPIDEMIA de
depressão e suicídios no sul do Brasil. Altas taxas de incidência de câncer em
Mato Grosso e de malformações congênitas no Ceará. Crianças intoxicadas em
escola ao lado de plantação de soja, também em Mato Grosso. Redes de
abastecimento de água contaminadas por agrotóxicos em todo o país.
Apesar de diversos
estudos e reportagens apontarem os riscos à saúde e ao meio ambiente em razão
do alto consumo de pesticidas, um grupo de professores de universidades
públicas e privadas de São Paulo lidera uma instituição que, com apoio de
fabricantes de agrotóxicos, atua para promover uma imagem positiva do setor.
Por meio da publicação
de artigos, promoção de palestras e participação em audiências no Congresso
Nacional e em assembleias legislativas, o CCAS (Conselho Científico Agro
Sustentável) se apresenta como uma voz da ciência que prega a sustentabilidade
na agricultura. Na prática, o grupo defende argumentos comuns do setor
agroindustrial, como o de que, se devidamente utilizados, agrotóxicos não fazem
mal.
O CCAS tem em seu
conselho vários acadêmicos com passagens por fabricantes de agrotóxicos ou
associações representantes do setor. A atuação da entidade se fortaleceu num
período em que o Brasil bateu recordes de consumo de pesticidas, enquanto
outros países tentam reduzir o uso.
A organização foi
fundada em 2011 pelo agrônomo José Otávio Menten, professor da Esalq/USP
(Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo),
em Piracicaba. Ele tinha acabado de passar dois anos como diretor de uma
associação representante da indústria de agrotóxicos, a Andef, quando teve a
ideia de “trazer a academia mais perto do agro”. O objetivo era, como diz o
site da entidade, construir uma “imagem mais positiva da agricultura
brasileira”.
Em setembro de 2023,
Menten participou de audiência pública na Assembleia Legislativa da Bahia
(Aleba) sobre um projeto de lei para proibir no estado a pulverização de
agrotóxicos por meio de aeronaves. Na sessão, ele defendeu o uso das
substâncias e negou haver riscos socioambientais.
“De uma maneira geral,
não há evidências científicas conclusivas que a utilização de pesticidas de
acordo com as boas práticas agrícolas estejam causando problemas toxicológicos
ou ambientais relevantes aqui no Brasil”, afirmou na audiência, da qual participou
a convite da Federação da Agricultura e Pecuária da Bahia (Faeb), representante
de produtores rurais.
A fala de Menten “não
dialoga com a realidade” do campo brasileiro, afirma Wanderlei Pignati, doutor
em saúde pública e professor da pós-graduação de Saúde Coletiva da UFMT
(Universidade Federal de Mato Grosso), onde coordena pesquisas sobre o uso de
agrotóxicos na região.
O pesquisador destaca
que, na prática, os profissionais que aplicam agrotóxicos não costumam seguir
as chamadas “boas práticas agrícolas”. A utilização de EPI (Equipamento de
Proteção Individual) é pouco usual. Além disso, os EPIs mais utilizados no país
não têm filtros específicos para os diferentes grupos químicos. Isso reduz a
capacidade de proteção, já que para cada tipo de pesticida seria necessário um
item diferente.
“A eficiência e
eficácia dos EPIs não são levadas em consideração. Mas, ainda que fosse seguro
para o trabalhador, os agrotóxicos seguem contaminando o ar e a água”,
contrapõe.
A própria defesa da
pulverização aérea contraria consensos científicos, afirma Pignati. O
pesquisador da UFMT diz que a indústria negligencia o risco de contaminação
humana e ambiental. Ele explica que o vento carrega os agrotóxicos, atingindo
outras propriedades, terras indígenas e unidades de conservação. “Eles usam
dessas falácias de que vai reduzir a produtividade se tirar o avião [agrícola],
mas essa é uma narrativa da indústria dos agrotóxicos”, diz.
Em nota, a CCAS diz
que seu papel é discutir, promover e disseminar “conhecimento científico e das
boas práticas agrícolas, sempre baseando nossas ações em fatos, dados e
evidências científicas”. Leia mais sobre o posicionamento do CCAS ao longo do
texto.
O professor Menten
também foi procurado, mas não retornou até o fechamento desta matéria. A
reportagem será atualizada, caso um posicionamento seja enviado. A assessoria
de imprensa do CCAS informou que Menten é um especialista renomado em sua área
de atuação e que estuda há décadas o manejo de pragas agrícolas.
• Agrotóxicos é um dos temas mais tratados
pelo CCAS
A fala na Bahia não
foi a primeira vez em que Menten abordou o assunto para uma plateia de
parlamentares. Em junho de 2022, ele fez uma declaração idêntica no Senado
Federal durante audiência pública sobre a nova Lei dos Agrotóxicos. Promulgada
pelo Congresso em maio deste ano, a lei é chamada de “PL do Veneno” por
ambientalistas, por enfraquecer a competência de órgãos de saúde e de meio
ambiente no registro de novos pesticidas. Na sessão, Menten voltou a dizer que
não há riscos “de acordo com as boas práticas”.
Na avaliação de
Pignati, o comentário ignora uma série de impactos socioambientais. O professor
da UFMT indica pesquisas que mostram, por exemplo, incidência de câncer
infantojuvenil de três a quatro vezes maior do que a média brasileira nas
regiões mato-grossenses produtoras de soja – zonas que mais utilizam
agrotóxicos no país.
Os índices de
malformação no nascimento também são mais altos nesses municípios, segundo
dados de fontes oficiais, como o DATASUS, compilados por Pignati para um artigo
científico a ser publicado em breve.
“Intoxicação crônica
tem evidências demais aqui no Mato Grosso. Malformação, a cada mil nascimentos,
quatro têm malformação no Brasil. No Mato Grosso são 14. Em algumas regiões
onde mais se usa agrotóxico, como Rondonópolis, Sinop e Sorriso, o dado é de 32
para cada mil nascidos vivos”, diz o pesquisador. “Temos muitas evidências
científicas, embora digam que não”, reitera.
Na mesma audiência
ocorrida no ano passado na Bahia, Menten buscou rebater a informação de que o
Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Porém, dados da
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) acessados
pela reportagem indicam o Brasil como líder disparado no consumo absoluto de
pesticidas (800 mil toneladas aplicadas em 2022).
Para desmontar a
informação, o fundador do CCAS defendeu outras métricas. “Essa visão de que o
Brasil é o maior consumidor de produtos químicos não tem base. O Brasil é um
grande mercado pela pujança de sua agricultura, pela importância das pragas,
mas se a gente expressar o consumo pela quantidade utilizada, pela quantidade
produzida de alimentos ou pela quantidade usada por área, nós vamos ficar em
13º, 15º, independente das fontes que utilizamos”, disse.
Segundo os números da
FAO, no ano de 2022 o país estava na 25ª colocação no consumo de pesticidas por
área de lavoura, com 12,6 kg aplicados por hectare. À frente do Brasil, porém,
aparecem países pequenos, como Nauru, Antígua e Barbuda, Bahamas, Maldivas,
Qatar, Brunei, dentre outros muito menos relevantes para a produção de
alimentos. Há exceções, como Colômbia e Coreia do Sul.
No entanto, quando
considerados os dez países com as maiores áreas de lavoura do mundo, o Brasil
lidera com folga, com mais de 12 kg aplicados por hectare. Na sequência estão
Indonésia (6,5 kg/ha), Argentina (5,9 kg/ha) e Estados Unidos (3 kg/ha).
• Vínculos dos conselheiros com o agro
Além da Esalq/USP, há
diversos conselheiros do CCAS vinculados a outras instituições de ensino,
também com histórico de relações com a indústria de agrotóxicos.
O conselheiro Caio
Carbonari, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), já usou de seu
prestígio como pesquisador para defender o “PL do Veneno” em audiência no
Senado Federal. Ele também é membro do Ilsi, outra organização de divulgação
científica financiada pela indústria de agrotóxicos e que atua em prol do
setor, como revelou a Repórter Brasil.
Ângelo Zanaga Trapé,
médico, professor da Unicamp e também conselheiro do CCAS, já teve a publicação
de uma pesquisa sobre o agrotóxico paraquate suspensa pela universidade após a
Repórter Brasil denunciar o conflito de interesses no estudo financiado pela
Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), que fazia uso político
da pesquisa..
O conselheiro
Coriolano Xavier, do Núcleo de Estudos do Agronegócio da ESPM, trabalhou no
marketing da Andef e de fabricantes desses produtos, como a antiga Monsanto
(atual Bayer), a Dupont e a Dow.
A atuação do CCAS
consiste em “favorecer uma perspectiva produtivista”, afirma Paulo Eduardo Moruzzi Marques,
agrônomo, sociólogo e coordenador do Grupo de Pesquisas em Agriculturas
Emergentes e Alternativas da Esalq/USP.
“Eles vão buscar
enfatizar pontos específicos, tomando das verdades produzidas aqui e ali,
aquilo que interessa e que ajuda a preservar as relações favoráveis com o
setor, deixando de lado o que poderia ser contestado, os efeitos
socioambientais nefastos”, explica.
Procurado, Carbonari
disse que sempre que possível ele participa de audiências e debates para os
quais é convidado. “Meu objetivo central é discutir os temas sob a ótica da
ciência”, afirmou à Repórter Brasil.
“Isso inclui a
apresentação de estudos científicos e estatísticas adequadas que possam
contribuir para o debate qualificado sobre diversos assuntos relacionados à
proteção de cultivos (minha área de atuação), abrangendo o uso de agrotóxicos.
Os conteúdos abordados são estritamente técnicos e cientificamente
fundamentados”, acrescentou Carbonari.
Trapé e Xavier não
retornaram os pedidos de comentários feitos pela Repórter Brasil. O espaço
segue aberto a manifestações.
Segundo a nota do
CCAS, seus membros “atuam de forma voluntária, não são remunerados e nem têm
atividades financiadas pelo conselho”.
O texto afirma que os
profissionais “se destacam por suas atividades técnico científicas e comungam o
objetivo de pugnar pela sustentabilidade do agro brasileiro, dispondo-se a
desenvolver debates e artigos sempre lastreados em fatos concretos e evidências
científicas, sobre a sustentabilidade das atividades agrícolas do país”.
O conselho diz ainda
que participar do grupo permite “intercâmbio de experiências, o que é de alto
valor para profissionais que lidam com pesquisas”.
• Artigos vão além da ciência
Em seu site, o
Conselho Científico Agro Sustentável também publica artigos de tons políticos e
ideológicos.
“No passado o homem
branco tomava terra de índio, agora índio toma de homem branco”, escreveu um
dos conselheiros, o publicitário e ex-coordenador do Núcleo de Estudos de
Agronegócio da ESPM José Luiz Tejon, em texto que questiona a demarcação de
Terras Indígenas no Mato Grosso do Sul.
Já um artigo escrito
pelo agrônomo Décio Gazzoni, pesquisador da Embrapa e conselheiro do CCAS,
afirma que não existem mais latifúndios improdutivos no Brasil, desde a
primeira metade do século 20.
A afirmação, porém,
bate de frente com dados oficiais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária). De acordo com a Diretoria de Gestão Estratégica do órgão
federal, havia 52.276 imóveis rurais improdutivos em abril de 2024 no Sistema Nacional
de Cadastro Rural. No total, eles ocupam uma área de 183 milhões de hectares
improdutivos – equivalente aos estados de Pará e Minas Gerais somados.
O CCAS também mantém
parceria com a associação De Olho No Material Escolar, fundada em 2021 pelo
movimento “Mães do Agro” para “fiscalizar” uma suposta representação negativa
do agronegócio nos livros didáticos, como já mostrou a Repórter Brasil.
O conselheiro do CCAS
Xico Graziano é um entusiasta da iniciativa, que é liderada hoje por Christian
Lohbauer, um dos fundadores do partido Novo e ex-presidente da Croplife Brasil
– entidade que representa as maiores multinacionais dos agrotóxicos, como Bayer,
BASF, Syngenta, Corteva e Sumitomo Chemical.
• Quem financia o CCAS?
Embora os laços entre
o CCAS e a indústria sejam explícitos, o financiamento da entidade não é
divulgado. Em suas redes sociais, o CCAS afirma ter apoio da Croplife Brasil.
A entidade foi criada
em 2019 a partir da fusão da Andef e de outras associações. O relatório
“Comércio Tóxico – A Ofensiva do Lobby dos agrotóxicos da União Europeia no
Brasil” identifica a Croplife como um “poderoso grupo de lobby”, por meio da
qual multinacionais do setor de agrotóxicos “apoiam esforços que enfraquecem
medidas de proteção ambiental”. A publicação é assinada pelas pesquisadoras
Larissa Mies Bombardi e Audrey Changoe e apoiada pela organização Amigos da
Terra.
O relatório indica que
essa estratégia ocorre também por meio do apoio de campanhas e plataformas com
o objetivo de “fazer uma lavagem verde (greenwashing) na imagem do agronegócio
do Brasil”.
Consultada, a
assessoria de imprensa do Conselho Científico Agro Sustentável afirmou que seu
estatuto prevê apoio institucional de pessoas jurídicas de qualquer natureza e
convênio com entidades privadas para a execução de seus objetivos, uma vez que
o CCAS presta “serviços onerosos a entidades públicas ou privadas que atuam em
áreas afins”. A entidade não respondeu quais são seus principais financiadores,
mas não negou o apoio da Croplife.
Questionada sobre o
apoio financeiro ao CCAS e o estímulo ao lobby no país, a Croplife Brasil
respondeu que faz parte das responsabilidades de uma associação “reunir dados e
informações que contribuirão para o processo de tomada de decisão”.
A associação afirmou
que “apoia diversas iniciativas que tenham como objetivo uma agricultura cada
vez mais tecnológica e sustentável” e que defende uma liberdade de pesquisa e
inovação, além da atuação “independente, imparcial, ética e transparente” dos
pesquisadores.
Fonte: Repórter Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário