Venenos na comida: Uma chance de frear o
“agro”
O STF estará julgando,
no próximos dias, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.553)
impetrada pelo PSOL, questionando o projeto de lei 6.299/2002 que modifica a
legislação sobre agrotóxicos vigente, visando ampliar os subsídios e isenções
fiscais no Brasil. O agronegócio brasileiro já é há alguns anos o maior
consumidor de agrotóxicos do mundo, sendo que pelo menos um terço com alto grau
de toxidade e muitos deles proibidos por órgãos reguladores tanto nos Estados
Unidos como na União Europeia. As reduções de impostos têm um papel importante
neste processo, mas o agronegócio quer mais, sobretudo reduzir em 60% o ICMS e
zerar o IPI sobre os agrotóxicos.
Em outras manobras
legislativas, a bancada ruralista almeja facilitar ainda mais a liberação de
novos agrotóxicos, apesar de estar conseguindo colocar estes produtos cada vez
mais rapidamente no mercado interno, na base de centenas a cada ano, oito vezes
mais ligeiro do que na União Europeia. Isto se faria pela retirada da
competência da Anvisa e do Ibama do sistema de aprovação, entregando-o
estritamente nas mãos da complacente e cúmplice burocracia do MAPA.
O agronegócio
brasileiro argumenta que sem estes e outros subsídios (sobretudo para
fertilizantes e sementes) não conseguiriam competir no mercado internacional e
que teriam que cotejar as eventuais vantagens apontadas pelo agrobusiness com
os impactos negativos (custos externos) das suas atividades.
Com toda a propaganda
de alta qualidade e alto custo na mídia brasileira (“agro é pop, agro é tech,
agro é tudo…”) o nosso agronegócio confessa a sua ineficiência quando cobra do
erário o custo da sua sobrevivência.
O argumento da
preocupação com a alta do custo dos alimentos é pura falácia. O aumento dos
preços do arroz com feijão, que usaremos como indicativo da base de uma dieta
nacional desejável, não é provocado principalmente pelos custos de produção
(inclusive dos agrotóxicos), mas pela baixa oferta dos produtos no mercado
interno.
A oferta per capita de
arroz e de feijão vem caindo regularmente ao longo dos últimos 50 anos. Entre
1977 e 2022, o consumo per capita de arroz caiu de 79 para 49 quilogramas por
ano, uma redução de 38%. O de feijão caiu de 24,7 kg para 14 kg, 43% a menos.
O consumo de outros
alimentos básicos da dieta tradicional brasileira (aquela entronizada na lei do
salário-mínimo de Getúlio Vargas nos anos trinta e que está longe de ser a mais
correta do ponto de vista nutricional), como o milho e a mandioca, seguiram o
padrão do arroz e feijão. Em 2022, o milho usado para consumo humano não
superou os 8,7 kg per capita no ano, um sétimo do que foi consumido por animais
sob forma de ração e a metade do que foi usado para produzir biodiesel. Ficou
muito para trás o tempo em que a broa de milho era o pão de boa parte dos
brasileiros
Para apontar o destino
da produção agropecuária brasileira de forma mais geral, basta olhar a área
cultivada dos produtos dirigidos principalmente para o mercado interno e os
dirigidos principalmente para as exportações. Entre os 22 cultivos mais importantes,
ocupando em 2022/2023 perto de 88 milhões de hectares de lavouras, soja e milho
(em grande parte exportados quer em grãos, farelo ou para a engorda de frangos,
suínos e bovinos, também exportados em grande parte) ocuparam 71% da área
total. Mais 15% da área foi destinada para outros produtos de exportação como
cana de açúcar, algodão, café, cacau e fumo. Apenas 11,5 % da área de lavouras
foi destinada a cultura alimentares do mercado interno, como arroz, feijão,
trigo, mandioca, banana, batata, aveia, cebola, tomate, etc.).
Este processo de
internacionalização do nosso agro não é novo. Afinal de contas, o país nasceu e
cresceu sob o signo da exportação de produtos agrícolas, açúcar, café, algodão,
cacau e outros, nos famosos ciclos econômicos que só tiveram um período em que
foram os minerais (ouro) que dominaram a exportação. O que é novo é que, depois
de um período de desenvolvimento industrial acelerado iniciado nos governos de
Vargas, mas que tiveram continuidade até no regime da ditadura militar,
voltamos a ser essencialmente um país exportador de produtos primários,
agrícolas e minerais, com a produção industrial caindo a pouco mais de 12 % do
PIB.
Esta regressão tem um
efeito brutal no custo da alimentação dos brasileiros. Neste século, tivemos 6
anos apenas em que a inflação geral medida pelo IPCA ficou acima da inflação de
alimentos (60% mais alta em média), enquanto nos outros 18 anos esta última
bateu a primeira mais ou menos com a mesma média anual.
Descartemos, portanto,
o argumento de que os subsídios se dirigem a baratear a alimentação dos
brasileiros. Eles se dirigem a aumentar a competitividade dos nossos produtos
no mercado internacional, deixando o consumo interno de alimentos em permanente
insuficiência frente às necessidades dos consumidores.
Para dar uma ideia
aproximada do problema, é só lembrar que a demanda anual reprimida de arroz (em
casca) é de 18 milhões de toneladas, extrapolação realizada pelo autor a partir
do consumo desejável indicado em pesquisa do Instituto de Nutrição da UERJ,
publicada na Revista de Saúde Pública. A demanda anual reprimida de feijão é de
7,6 milhões de toneladas, pelo mesmo critério. Isto significa a necessidade de
se multiplicar a produção de arroz por 2,8 e a de feijão por 3,4 para alimentar
corretamente os brasileiros (sem contar, é claro, vários outros produtos
alimentares necessários e igualmente deficitários). E, enquanto os preços da
soja e do milho nos mercados internacionais de commodities forem mais altos do
que os do feijão e arroz no mercado interno, a orientação do agronegócio será a
de privilegiar as exportações.
Enquanto isso, a
produção de soja cresceu de 12 para 153 milhões de toneladas, entre os anos de
1977 e 2022. A de milho de 19 para 125. Ambos os produtos, como vimos acima,
dirigidos essencialmente para o mercado externo sob diversas formas, grãos,
farelo e carnes de frango e de suínos.
O agronegócio é
“tech”, como ele autoproclama na sua propaganda? Nem tanto. A produtividade da
soja brasileira iguala a americana e supera a da Argentina, dois grandes
exportadores, mas com uso mais intensivo de insumos. Já a produtividade do
milho é muito menor: 2,78 e 1,7 vezes mais baixa do que nos Estados Unidos e na
Argentina. Os nossos concorrentes têm algumas vantagens naturais de clima e de
solos, mas isto não explica o nosso atraso em termos de produtividade.
Entretanto, o Brasil hoje produz e exporta mais do que qualquer outro e não só
nestes dois produtos dominantes. Como explicar?
É simples. Por um
lado, a legislação ambiental e a sanitária nos EUA e na União Europeia implicam
em custos mais altos na aplicação das mesmas tecnologias. Temos custos bem
menores pela fragilidade da aplicação da nossa legislação ambiental, cada dia
mais permissiva. E temos custos de mão de obra também muito mais baixos. Mas,
sobretudo, nós temos disponibilidade de terras baratas para expandir a
produção, algo que falta para os concorrentes. Enquanto a demanda continuar
aquecida pelas compras chinesas estaremos bombando com preços compensadores,
mas com qualquer redução das cotações nós seremos os primeiros a perder mercado
pois nossos custos de produção são mais altos. Como nossa produtividade é mais
baixa, nem o custo quase zero da ocupação de terras griladas na Amazônia ou o
trabalho mal pago compensará os custos maiores de produção.
É claro que existem
setores do agronegócio mais tecnificados e competitivos, mas a maioria vive de
explorar as vantagens naturais e humanas locais sem pensar no amanhã. Se fossem
de fato “high tech”, como proclamam, já estariam aplicando as tecnologias disponíveis
para reduzir o uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos, ao invés de lutar
para facilitar o uso de produtos cada vez mais perigosos … e caros.
Na verdade, a
experiência internacional mostra que o agronegócio é igual em todo o mundo. Os
produtores americanos só adotam técnicas mais racionais e de menor risco
ambiental ou para a saúde quando a pressão de legisladores ou do mercado os
obriga.
Um exemplo do outro
lado do mundo é dos mais ilustradores deste axioma. Nas Filipinas dos anos 90,
a FAO convenceu o governo da hora a montar um plano de redução do uso dos
agrotóxicos na cultura do arroz, central na economia e na sociedade do país. O
projeto visava não a erradicação do uso de agrotóxicos, mas o seu uso racional,
na forma do manejo integrado de pragas ou IPM, na sigla em inglês. O programa
dirigiu-se a agricultores de pequeno, médio e grande porte, mas seu sucesso
inicial se deu principalmente no primeiro grupo. Os pequenos produtores, com
menos acesso a recursos financeiros, perceberam a oportunidade de reduzir
custos sem perder produtividade e filiaram-se ao programa em grandes números.
Já os médios e grandes produtores só aderiram quando o governo filipino retirou
os subsídios para o uso de agrotóxicos na produção de arroz. Em dez anos, as
Filipinas reduziram o emprego de agrotóxicos no arroz a menos de 20% dos
volumes anteriormente empregados. Com ganhos de produtividade e menores custos.
O programa da FAO
ganhou prêmios de excelência e passou a ser disseminado na Ásia e na África com
apoio do Banco Mundial, que estava carente de alguma coisa para melhorar a sua
imagem junto aos ambientalistas. Embora o IPM esteja longe de ser um programa
agroecológico e que ele nem sequer imagine outros componentes de racionalização
do uso de insumos, o resultado, embora estrategicamente diminuto, aponta na
direção correta. Ele ficou ainda mais relevante com a escalada dos preços dos
agrotóxicos e dos adubos químicos nas últimas décadas e que tende a se
intensificar ainda mais.
Ao que eu saiba, não
existe no Brasil um cálculo sobre os custos indiretos do uso de agrotóxicos nos
sistemas produtivos do agronegócio. Sabe-se que cerca de 25% das amostras de
alimentos contêm, em média, doses de agrotóxicos acima do tolerável, segundo as
definições da Anvisa. Também é sabido que a contaminação de trabalhadores
agrícolas é um recorde mundial contínuo. Mas não se sabe quanto isto custa em
termos de gastos privados ou do SUS. Os impactos ambientais sobre fauna e flora
são constatados em grande escala, mas também sem avaliações de custos. A única
indicação encontrada foi de um estudo da cooperação técnica da Alemanha,
apontando para um custo indireto (abrangendo todos os impactos) de 20 reais
para cada real de faturamento do agronegócio. Não tive acesso ao estudo,
somente às suas conclusões que me parecem algo exageradas, mas por comparação
com estudos em outros países estes “custos externos” apontados pelo estudo
podem estar corretos.
O que temos que
entender no caso brasileiro é que o caráter predador e imediatista do nosso
agronegócio só pode ser parado com maiores controles de seus impactos
ambientais e na saúde e não com o programa da bancada ruralista que é desmontar
a legislação e os instrumentos estatais de controle para poderem devastar a seu
talante.
Sem sombra de dúvida,
o maior freio possível no uso dos agrotóxicos é o financeiro, na forma da
diminuição paulatina até a eliminação dos subsídios existentes. O STF tem nas
mãos a possibilidade de colocar limites nesta fúria devastadora, já que o
governo Lula ou bem resolveu se aliar com o agronegócio, na ilusão de amansar a
besta ou bem capitulou frente a bancada ruralista por total falta de poder de
fogo.
Resta saber se os
votos restantes no STF (em seções anteriores suas excelências já votaram a
favor do agronegócio por 6×2) vão equilibrar o resultado e estimular algum dos
anteriores a se penitenciar e rever sua posição, talvez pensando no bem do
Brasil, do seu povo e de sua fauna.
Fonte: Por Jean Marc
von der Weid, em Outras Palavras
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