Fernando Nogueira da Costa: ‘Superação do
marxismo e sua crítica à (mal)dita financeirização’
A expressão “superação
do marxismo”, em sentido dialético, conforme a tradição filosófica hegeliana
também utilizada Marx, não implica em abandono completo da teoria marxista, mas
sim em uma Aufhebung. Este termo hegeliano significa “superação” ou
“elevação”. Essa superação envolve três aspectos: preservação de conceitos
válidos, negação e elevação (aprimoramento) de conceitos antigos.
Na dialética, superar
algo implica manter aspectos ainda relevantes e verdadeiros. No
caso do marxismo, conceitos como a lei geral de acumulação de capital, a
alienação do trabalho e as contradições internas do capitalismo continuam a ter
valor analítico. Esses conceitos ajudam a compreender as estruturas
fundamentais de exploração e desigualdade no capitalismo contemporâneo.
A superação também
envolve a crítica e a rejeição de conceitos tornados obsoletos ou
sem capacidade de captar plenamente as complexidades do capitalismo atual. Por
exemplo, a ideia de o colapso do sistema ser inevitável ou a ênfase excessiva
em uma visão determinista da história devem ser reconsideradas à luz de novas
dinâmicas sociais, tecnológicas, econômicas e financeiras no sistema
capitalista.
O terceiro aspecto da
superação dialética é a elevação, quando novos conceitos e
abordagens são desenvolvidos para lidar com as realidades do capitalismo
contemporâneo. Isso inclui a incorporação de teorias e inovações não
disponíveis na época de Marx, como as teorias econômicas modernas. Um
pós-marxismo necessita ser plural (ou não sectário) incorporando o
Pós-keynesianismo, Economia Comportamental, Teoria dos Sistemas Complexos,
entre outras, adicionando novos elementos para explicar comportamentos dos agentes
econômicos e crises no capitalismo atual.
Por exemplo, necessita
fazer análise (e não apenas “denúncia”) de fenômenos como a globalização, a
(mal)dita financeirização da economia e a era digital. Exigem novos conceitos e
análises, indo além das ideias conservadoras do marxismo.
Questões ambientais e
tecnológicas são imprescindíveis de serem tratadas. O impacto das mudanças
climáticas, as inovações tecnológicas e a automação do trabalho são aspectos
exigentes de uma abordagem capaz de integrar as ideias marxistas de crítica ao
capitalismo com novos insights e ferramentas analíticas.
Dentro do método
marxista – concreto-abstrato-concreto pensado –, pensar o concreto
atual significa analisar o capitalismo contemporâneo não apenas com as
categorias abstratas da análise marxista clássica, mas usando uma combinação de
conceitos novos e adaptados. Inclui considerar a complexidade das interações
sociais e econômicas modernas, a pluralidade de agentes com comportamentos
heterogêneos e os problemas contemporâneos, como a desigualdade exacerbada pela
tecnologia, as redes de produção globais e a centralidade da lógica financeira.
A dialética é
um processo em constante movimento e transformação: tese-antítese-síntese.
É um processo de diálogo e debates entre posições contrárias.
Portanto, a “superação
do marxismo” envolve manter seu núcleo crítico e analítico, enquanto se avança
com ideias adequadas para responder às novas condições históricas e materiais.
Essa abordagem dialética permite a crítica marxista evoluir positivamente e
incorporar novas perspectivas, sem perder sua essência de análise crítica do
capitalismo.
A superação dialética
do marxismo, ou seja, o pós-marxismo, significa não apenas manter o
que é válido e essencial na teoria marxista, mas também criticá-la e expandi-la
para compreender melhor o capitalismo contemporâneo. Envolve pensar com novos
conceitos e métodos de modo a complementar e ampliar a capacidade de análise
crítica das realidades atuais, mantendo a relevância e a aplicabilidade do
pensamento marxista em um mundo em transformação.
Por exemplo, a crítica
obtusa à financeirização falha quando não reconhece a complexidade e a
interdependência do sistema financeiro em relação ao sistema econômico
produtivo e mercantil. Uma análise mais aprofundada e fundamentada deveria
levar em consideração as funções principais desempenhadas pelo
sistema financeiro, essenciais para a economia moderna.
Ele é fundamental
na criação da infraestrutura dos sistemas de pagamento, capazes de
escriturar a circulação de dinheiro digital e o suporte ao comércio e às
transações globais. As inovações em tecnologia financeira, como pagamentos
digitais e soluções de blockchain, facilitam a velocidade em tempo
real das transações, conectando mercados e facilitando o consumo e a produção.
O sistema financeiro
oferece ativos diversificados para o acúmulo de riqueza e o
planejamento de longo prazo, essenciais para a segurança econômica
individual em idades avançadas. Os fundos de pensão, entre outros investidores
institucionais, investem em uma ampla carteira de ativos financeiros, inclusive
globais, garantindo uma fonte de renda futura para trabalhadores aposentados.
Reflete a interconexão entre a economia produtiva e os mercados financeiros
para a alocação de recursos ser rentável, segura e líquida.
O acesso ao
crédito para a alavancagem financeira permite as empresas aumentarem
sua escala de operações e, por conseguinte, criarem mais empregos e gerarem
mais renda. A capacidade de conceder capital emprestado para
expandir a produção e inovar é uma função essencial do sistema financeiro,
proporcionando o crescimento econômico, o desenvolvimento tecnológico e maior
rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio.
O mercado financeiro
serve como um mecanismo de coordenação para a economia globalizada.
A precificação de ativos, como ações e títulos de dívida, reflete expectativas
sobre o desempenho futuro de empresas e setores, guiando as decisões de
investimento e a alocação de recursos. O valor de mercado das
participações acionárias, por exemplo, atua como um sinalizador ou coordenador
de investimentos e decisões estratégicas, comparando aos valores
intrínsecos das empresas e ajudando a ajustar estratégias corporativas
e políticas econômicas.
Os mercados de
capitais, destacadamente o de ações, proporcionam um meio para a
alocação experimental (tentativa-e-erro) de recursos, canalizando
poupanças, inclusive os dos trabalhadores qualificados, para os setores mais
promissores da economia. Essa função é vital para a inovação e a sustentação de
empreendimentos capazes de gerar retornos e contribuir para o crescimento.
Outro papel
fundamental do sistema financeiro é a gestão de riscos por meio de
instrumentos como derivativos e seguros. Ajudam empresas e indivíduos a
protegerem-se contra flutuações de mercado, volatilidade cambial, taxas de
juros e outros riscos possíveis de prejudicar suas operações ou as finanças
pessoais.
Embora essas funções
sejam essenciais, a crítica à financeirização se concentra
apenas nos excessos e nas distorções como a especulação na fase
altista por “comportamentos de manada” ou profecia autorrealizável. A
busca por ganhos de capital imediatos leva à especulação desenfreada,
descolando os preços dos ativos de seus fundamentos microeconômicos, setoriais
e macroeconômicos.
A concentração
de riqueza, gerada pelas taxas de juro compostas acima da taxa de
crescimento da renda, gerada na produção de bens e (principalmente) serviços,
exacerba a desigualdade. Evidentemente, beneficia mais os trabalhadores (e
capitalistas) idosos já com recursos financeiros acumulados maiores.
Na fase
altista, a (mal)dita financeirização gera uma desconexão entre o
crescimento do ganho de capital e o desempenho das empresas distribuidoras de
dividendos, levando à bolha de ativos – e sequência boom-crash.
Na fase baixista, as empresas não-financeiras fazem desalavancagem
financeira e acumulam reservas, nos mercados financeiros, para usá-las em
investimentos produtivos na futura retomada do crescimento sustentado em longo
prazo.
Fazem isso quando
o valor de construir ou fabricar ativos novos fica inferior
ao valor de ativos existentes. Nesse caso, ao invés de comprar
ativos usados, como plantas industriais de concorrentes com capacidade
produtiva ociosa, constrói novas. Este ensinamento de Marx é ainda
válido: transferências de propriedades privadas não geram valor
adicionado, inclusive renda para trabalhadores empregados.
Portanto, uma análise
da financeirização com conhecimento de causa deve reconhecer tanto
suas contribuições indispensáveis quanto seus riscos e limitações. Entender
como o sistema financeiro opera de forma intrínseca ao sistema econômico
produtivo e mercantil é fundamental para críticas serem bem-informadas e construtivas.
Avaliar suas funções principais e o impacto das inovações financeiras em toda a
economia permitirá um entendimento mais transcendente, diante as críticas
superficiais à (mal)dita financeirização, por promover uma visão mais holística
da economia contemporânea com o uso da Teoria de Sistemas Complexos
pós-marxista.
¨
A devastação da
transição forçada ao capitalismo. Por Jenny Farrell e Karl Döring
A unificação da
Alemanha em 1990 trouxe esperança, mas essa esperança rapidamente se
transformou em caos para muitos na antiga República Democrática Alemã (RDA).
Como alguém que vivenciou de perto as mudanças profundas que se seguiram,
experimentei em primeira mão a transição de uma economia planejada para um
sistema orientado ao mercado. Meus esforços para salvar o Eisenhüttenkombinat
Ost (EKO, Complexo de Ferro e Aço) e meu tempo na Treuhandanstalt (Autoridade
de Confiança), agência responsável por privatizar empresas estatais da Alemanha
Oriental, encapsulam a turbulência emocional e econômica daquela época.
Os processos de
privatização após a anexação da RDA pela República Federal formam o núcleo da
minha experiência de gestão no “novo mundo” do capitalismo — com todas as suas
possibilidades e impossibilidades. Dentro de nossa equipe de liderança e do
conselho de trabalhadores, estabelecido no início de 1990, havia uma forte
determinação em preservar o local de Eisenhüttenstadt.
Afinal, não se tratava
apenas de uma usina siderúrgica, mas de um complexo metalúrgico com produção de
minério, operações de alto-forno, a própria siderúrgica, além de áreas de
processamento e refinamento de aço. A planta era moderna e nova. Quando o fim
da RDA chegou, havia 12.000 pessoas trabalhando no EKO. Toda a cidade de
Eisenhüttenstadt, junto com a economia local — incluindo padarias, laticínios e
salões —dependia da usina siderúrgica, assim como a região circundante. Era
óbvio: “Se a usina morrer, a cidade também morre.”
Meu papel como
representante da Alemanha Oriental na Treuhand foi marcado por conflitos, pois
muitas vezes fui visto como um “criador de problemas” por meus colegas da
Alemanha Ocidental. A Treuhandanstalt tinha dois órgãos de governo: o conselho
de supervisão, que supervisionava as operações, e o conselho executivo, que
gerenciava os assuntos diários. O primeiro foi inicialmente presidido por
Detlev Rohwedder, um pragmático, que reconheceu a importância de incluir os
“Ossis” (alemães orientais) na tomada de decisões. Ele apoiou minha nomeação
para o conselho de supervisão em 1990. Esta posição, embora não remunerada, me
deu uma visão direta das decisões sérias que moldavam o futuro do Oriente.
Contudo, meu tempo
nesse papel foi breve. Quando Rohwedder passou a presidir o conselho executivo,
foi substituído por Jens Odenwald, um alemão ocidental cuja atitude em relação
aos alemães orientais era tudo menos inclusiva. Odenwald claramente nos via como
obstáculos, e não como parceiros. Um a um, meus colegas e eu fomos excluídos
dos processos de decisão. Reuniões e comitês foram reorganizados, e nossos
nomes foram removidos da lista de participantes.
Não houve confrontos,
mas uma marginalização lenta e insidiosa. Fui instruído pelo próprio Odenwald a
“focar no EKO” e não me preocupar com as operações mais amplas da Treuhand —
uma dispensa velada. Embora formalmente nomeados pelo governo da RDA, as autoridades
da Alemanha Ocidental ignoraram nosso status legal, sem dar explicações para
nossa exclusão. A Treuhand mostrou pouco respeito pela experiência dos alemães
orientais, refletindo uma atitude geral de desrespeito. Rohwedder, que era mais
conciliador e menos contundente, disse: “Sr. Döring, desista, você não tem
chance — este é o clima atual.”
O descontentamento
político atual no Leste da Alemanha, visto em movimentos populistas como o AfD,
tem raízes nos anos pós-unificação. A forma como os alemães orientais foram
tratados após 1990, particularmente em termos econômicos, deixou muitos com sentimentos
profundos de humilhação e ressentimento.
Vi de perto a
devastação do desemprego em massa; em Eisenhüttenstadt, ele superou 20% nos
anos 1990, com pouca esperança de recuperação. Muitos trabalhadores receberam
pacotes de indenização semelhantes aos do Ocidente, mas para pessoas que
passaram suas vidas inteiras trabalhando em tempo integral, serem instruídas a
aceitar uma compensação e se aposentar aos 55 anos foi desmoralizante.
Estruturas sociais inteiras, desde comunidades no local de trabalho até clubes
esportivos locais, desmoronaram. A desilusão se estendeu à próxima geração, que
cresceu vendo seus pais lutarem com o desemprego e a insegurança econômica.
Os políticos do
Ocidente, então e agora, falham em compreender a magnitude dessa devastação.
Eles veem o desemprego como um problema administrável, sem perceber que, na
RDA, a falta de emprego era inimaginável. Da noite para o dia, milhões de
pessoas se encontraram nas ruas, suas conexões coletivas desapareceram — o
clube esportivo da empresa e outros lugares se foram. O colapso repentino das
estruturas econômicas e sociais da RDA deixou cicatrizes profundas que
permanecem visíveis até hoje.
A diferença-chave
entre um sistema de planejamento funcional e o sistema rígido da RDA reside no
escopo e na flexibilidade. Na RDA, tudo era planejado nos mínimos detalhes, sem
espaço para tomada de decisões locais ou inovação.
Uma economia planejada
em nível estatal pode ter sucesso se baseada em políticas realistas, com
planejamento centralizado limitado, prioridades focadas e autonomia para os
tomadores de decisão. Os subsídios econômicos devem ser raros, os subsídios
sociais razoáveis, e os preços devem manter seu papel regulador de mercado sem
interferência central. Com estatísticas honestas e participação dos
trabalhadores no processo de planejamento, ela poderia oferecer uma alternativa
viável à economia orientada pelo lucro de hoje.
Atualmente, os
interesses do capital prevalecem, cada vez mais, pois o sistema sociopolítico
atual se assemelha mais a um “sistema caótico.” Não há mais uma força
significativa representando as opiniões majoritárias, tornando essencial o
consenso entre os partidos. Contudo, essa habilidade se perdeu, o que é
prejudicial para a Alemanha, pois impede políticas justas e voltadas para o
futuro.
Olhando para trás,
para aqueles anos de turbulência, é claro que a transição do socialismo para o
capitalismo foi muito mais complexa e dolorosa do que muitos previram. Para
aqueles de nós que lutaram para salvar indústrias como a EKO Stahl, a batalha
foi tanto emocional quanto econômica. Não estávamos apenas tentando salvar uma
empresa; estávamos lutando pela dignidade e pelo futuro de toda uma região, de
todo um país. O descontentamento atual no Leste destaca a necessidade de que
decisões econômicas considerem os custos humanos e de que o planejamento —
tanto no governo quanto nos negócios — respeite aqueles que são afetados.
Fonte: Jornal GGN
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