quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Fernando Nogueira da Costa: ‘Superação do marxismo e sua crítica à (mal)dita financeirização’

A expressão “superação do marxismo”, em sentido dialético, conforme a tradição filosófica hegeliana também utilizada Marx, não implica em abandono completo da teoria marxista, mas sim em uma Aufhebung. Este termo hegeliano significa “superação” ou “elevação”. Essa superação envolve três aspectos: preservação de conceitos válidos, negação e elevação (aprimoramento) de conceitos antigos.

Na dialética, superar algo implica manter aspectos ainda relevantes e verdadeiros. No caso do marxismo, conceitos como a lei geral de acumulação de capital, a alienação do trabalho e as contradições internas do capitalismo continuam a ter valor analítico. Esses conceitos ajudam a compreender as estruturas fundamentais de exploração e desigualdade no capitalismo contemporâneo.

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A superação também envolve a crítica e a rejeição de conceitos tornados obsoletos ou sem capacidade de captar plenamente as complexidades do capitalismo atual. Por exemplo, a ideia de o colapso do sistema ser inevitável ou a ênfase excessiva em uma visão determinista da história devem ser reconsideradas à luz de novas dinâmicas sociais, tecnológicas, econômicas e financeiras no sistema capitalista.

O terceiro aspecto da superação dialética é a elevação, quando novos conceitos e abordagens são desenvolvidos para lidar com as realidades do capitalismo contemporâneo. Isso inclui a incorporação de teorias e inovações não disponíveis na época de Marx, como as teorias econômicas modernas. Um pós-marxismo necessita ser plural (ou não sectário) incorporando o Pós-keynesianismo, Economia Comportamental, Teoria dos Sistemas Complexos, entre outras, adicionando novos elementos para explicar comportamentos dos agentes econômicos e crises no capitalismo atual.

Por exemplo, necessita fazer análise (e não apenas “denúncia”) de fenômenos como a globalização, a (mal)dita financeirização da economia e a era digital. Exigem novos conceitos e análises, indo além das ideias conservadoras do marxismo.

Questões ambientais e tecnológicas são imprescindíveis de serem tratadas. O impacto das mudanças climáticas, as inovações tecnológicas e a automação do trabalho são aspectos exigentes de uma abordagem capaz de integrar as ideias marxistas de crítica ao capitalismo com novos insights e ferramentas analíticas.

Dentro do método marxista – concreto-abstrato-concreto pensado –, pensar o concreto atual significa analisar o capitalismo contemporâneo não apenas com as categorias abstratas da análise marxista clássica, mas usando uma combinação de conceitos novos e adaptados. Inclui considerar a complexidade das interações sociais e econômicas modernas, a pluralidade de agentes com comportamentos heterogêneos e os problemas contemporâneos, como a desigualdade exacerbada pela tecnologia, as redes de produção globais e a centralidade da lógica financeira.

dialética é um processo em constante movimento e transformação: tese-antítese-síntese. É um processo de diálogo e debates entre posições contrárias.

Portanto, a “superação do marxismo” envolve manter seu núcleo crítico e analítico, enquanto se avança com ideias adequadas para responder às novas condições históricas e materiais. Essa abordagem dialética permite a crítica marxista evoluir positivamente e incorporar novas perspectivas, sem perder sua essência de análise crítica do capitalismo.

A superação dialética do marxismo, ou seja, o pós-marxismo, significa não apenas manter o que é válido e essencial na teoria marxista, mas também criticá-la e expandi-la para compreender melhor o capitalismo contemporâneo. Envolve pensar com novos conceitos e métodos de modo a complementar e ampliar a capacidade de análise crítica das realidades atuais, mantendo a relevância e a aplicabilidade do pensamento marxista em um mundo em transformação.

Por exemplo, a crítica obtusa à financeirização falha quando não reconhece a complexidade e a interdependência do sistema financeiro em relação ao sistema econômico produtivo e mercantil. Uma análise mais aprofundada e fundamentada deveria levar em consideração as funções principais desempenhadas pelo sistema financeiro, essenciais para a economia moderna.

Ele é fundamental na criação da infraestrutura dos sistemas de pagamento, capazes de escriturar a circulação de dinheiro digital e o suporte ao comércio e às transações globais. As inovações em tecnologia financeira, como pagamentos digitais e soluções de blockchain, facilitam a velocidade em tempo real das transações, conectando mercados e facilitando o consumo e a produção.

O sistema financeiro oferece ativos diversificados para o acúmulo de riqueza e o planejamento de longo prazo, essenciais para a segurança econômica individual em idades avançadas. Os fundos de pensão, entre outros investidores institucionais, investem em uma ampla carteira de ativos financeiros, inclusive globais, garantindo uma fonte de renda futura para trabalhadores aposentados. Reflete a interconexão entre a economia produtiva e os mercados financeiros para a alocação de recursos ser rentável, segura e líquida.

acesso ao crédito para a alavancagem financeira permite as empresas aumentarem sua escala de operações e, por conseguinte, criarem mais empregos e gerarem mais renda. A capacidade de conceder capital emprestado para expandir a produção e inovar é uma função essencial do sistema financeiro, proporcionando o crescimento econômico, o desenvolvimento tecnológico e maior rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio.

O mercado financeiro serve como um mecanismo de coordenação para a economia globalizada. A precificação de ativos, como ações e títulos de dívida, reflete expectativas sobre o desempenho futuro de empresas e setores, guiando as decisões de investimento e a alocação de recursos. O valor de mercado das participações acionárias, por exemplo, atua como um sinalizador ou coordenador de investimentos e decisões estratégicas, comparando aos valores intrínsecos das empresas e ajudando a ajustar estratégias corporativas e políticas econômicas.

Os mercados de capitais, destacadamente o de ações, proporcionam um meio para a alocação experimental (tentativa-e-erro) de recursos, canalizando poupanças, inclusive os dos trabalhadores qualificados, para os setores mais promissores da economia. Essa função é vital para a inovação e a sustentação de empreendimentos capazes de gerar retornos e contribuir para o crescimento.

Outro papel fundamental do sistema financeiro é a gestão de riscos por meio de instrumentos como derivativos e seguros. Ajudam empresas e indivíduos a protegerem-se contra flutuações de mercado, volatilidade cambial, taxas de juros e outros riscos possíveis de prejudicar suas operações ou as finanças pessoais.

Embora essas funções sejam essenciais, a crítica à financeirização se concentra apenas nos excessos e nas distorções como a especulação na fase altista por “comportamentos de manada” ou profecia autorrealizável. A busca por ganhos de capital imediatos leva à especulação desenfreada, descolando os preços dos ativos de seus fundamentos microeconômicos, setoriais e macroeconômicos.

concentração de riqueza, gerada pelas taxas de juro compostas acima da taxa de crescimento da renda, gerada na produção de bens e (principalmente) serviços, exacerba a desigualdade. Evidentemente, beneficia mais os trabalhadores (e capitalistas) idosos já com recursos financeiros acumulados maiores.

Na fase altista, a (mal)dita financeirização gera uma desconexão entre o crescimento do ganho de capital e o desempenho das empresas distribuidoras de dividendos, levando à bolha de ativos – e sequência boom-crash. Na fase baixista, as empresas não-financeiras fazem desalavancagem financeira e acumulam reservas, nos mercados financeiros, para usá-las em investimentos produtivos na futura retomada do crescimento sustentado em longo prazo.

Fazem isso quando o valor de construir ou fabricar ativos novos fica inferior ao valor de ativos existentes. Nesse caso, ao invés de comprar ativos usados, como plantas industriais de concorrentes com capacidade produtiva ociosa, constrói novas. Este ensinamento de Marx é ainda válido: transferências de propriedades privadas não geram valor adicionado, inclusive renda para trabalhadores empregados.

Portanto, uma análise da financeirização com conhecimento de causa deve reconhecer tanto suas contribuições indispensáveis quanto seus riscos e limitações. Entender como o sistema financeiro opera de forma intrínseca ao sistema econômico produtivo e mercantil é fundamental para críticas serem bem-informadas e construtivas. Avaliar suas funções principais e o impacto das inovações financeiras em toda a economia permitirá um entendimento mais transcendente, diante as críticas superficiais à (mal)dita financeirização, por promover uma visão mais holística da economia contemporânea com o uso da Teoria de Sistemas Complexos pós-marxista.

 

¨      A devastação da transição forçada ao capitalismo. Por Jenny Farrell e Karl Döring

A unificação da Alemanha em 1990 trouxe esperança, mas essa esperança rapidamente se transformou em caos para muitos na antiga República Democrática Alemã (RDA). Como alguém que vivenciou de perto as mudanças profundas que se seguiram, experimentei em primeira mão a transição de uma economia planejada para um sistema orientado ao mercado. Meus esforços para salvar o Eisenhüttenkombinat Ost (EKO, Complexo de Ferro e Aço) e meu tempo na Treuhandanstalt (Autoridade de Confiança), agência responsável por privatizar empresas estatais da Alemanha Oriental, encapsulam a turbulência emocional e econômica daquela época.

Os processos de privatização após a anexação da RDA pela República Federal formam o núcleo da minha experiência de gestão no “novo mundo” do capitalismo — com todas as suas possibilidades e impossibilidades. Dentro de nossa equipe de liderança e do conselho de trabalhadores, estabelecido no início de 1990, havia uma forte determinação em preservar o local de Eisenhüttenstadt.

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Afinal, não se tratava apenas de uma usina siderúrgica, mas de um complexo metalúrgico com produção de minério, operações de alto-forno, a própria siderúrgica, além de áreas de processamento e refinamento de aço. A planta era moderna e nova. Quando o fim da RDA chegou, havia 12.000 pessoas trabalhando no EKO. Toda a cidade de Eisenhüttenstadt, junto com a economia local — incluindo padarias, laticínios e salões —dependia da usina siderúrgica, assim como a região circundante. Era óbvio: “Se a usina morrer, a cidade também morre.”

Meu papel como representante da Alemanha Oriental na Treuhand foi marcado por conflitos, pois muitas vezes fui visto como um “criador de problemas” por meus colegas da Alemanha Ocidental. A Treuhandanstalt tinha dois órgãos de governo: o conselho de supervisão, que supervisionava as operações, e o conselho executivo, que gerenciava os assuntos diários. O primeiro foi inicialmente presidido por Detlev Rohwedder, um pragmático, que reconheceu a importância de incluir os “Ossis” (alemães orientais) na tomada de decisões. Ele apoiou minha nomeação para o conselho de supervisão em 1990. Esta posição, embora não remunerada, me deu uma visão direta das decisões sérias que moldavam o futuro do Oriente.

Contudo, meu tempo nesse papel foi breve. Quando Rohwedder passou a presidir o conselho executivo, foi substituído por Jens Odenwald, um alemão ocidental cuja atitude em relação aos alemães orientais era tudo menos inclusiva. Odenwald claramente nos via como obstáculos, e não como parceiros. Um a um, meus colegas e eu fomos excluídos dos processos de decisão. Reuniões e comitês foram reorganizados, e nossos nomes foram removidos da lista de participantes.

Não houve confrontos, mas uma marginalização lenta e insidiosa. Fui instruído pelo próprio Odenwald a “focar no EKO” e não me preocupar com as operações mais amplas da Treuhand — uma dispensa velada. Embora formalmente nomeados pelo governo da RDA, as autoridades da Alemanha Ocidental ignoraram nosso status legal, sem dar explicações para nossa exclusão. A Treuhand mostrou pouco respeito pela experiência dos alemães orientais, refletindo uma atitude geral de desrespeito. Rohwedder, que era mais conciliador e menos contundente, disse: “Sr. Döring, desista, você não tem chance — este é o clima atual.”

O descontentamento político atual no Leste da Alemanha, visto em movimentos populistas como o AfD, tem raízes nos anos pós-unificação. A forma como os alemães orientais foram tratados após 1990, particularmente em termos econômicos, deixou muitos com sentimentos profundos de humilhação e ressentimento.

Vi de perto a devastação do desemprego em massa; em Eisenhüttenstadt, ele superou 20% nos anos 1990, com pouca esperança de recuperação. Muitos trabalhadores receberam pacotes de indenização semelhantes aos do Ocidente, mas para pessoas que passaram suas vidas inteiras trabalhando em tempo integral, serem instruídas a aceitar uma compensação e se aposentar aos 55 anos foi desmoralizante. Estruturas sociais inteiras, desde comunidades no local de trabalho até clubes esportivos locais, desmoronaram. A desilusão se estendeu à próxima geração, que cresceu vendo seus pais lutarem com o desemprego e a insegurança econômica.

Os políticos do Ocidente, então e agora, falham em compreender a magnitude dessa devastação. Eles veem o desemprego como um problema administrável, sem perceber que, na RDA, a falta de emprego era inimaginável. Da noite para o dia, milhões de pessoas se encontraram nas ruas, suas conexões coletivas desapareceram — o clube esportivo da empresa e outros lugares se foram. O colapso repentino das estruturas econômicas e sociais da RDA deixou cicatrizes profundas que permanecem visíveis até hoje.

A diferença-chave entre um sistema de planejamento funcional e o sistema rígido da RDA reside no escopo e na flexibilidade. Na RDA, tudo era planejado nos mínimos detalhes, sem espaço para tomada de decisões locais ou inovação.

Uma economia planejada em nível estatal pode ter sucesso se baseada em políticas realistas, com planejamento centralizado limitado, prioridades focadas e autonomia para os tomadores de decisão. Os subsídios econômicos devem ser raros, os subsídios sociais razoáveis, e os preços devem manter seu papel regulador de mercado sem interferência central. Com estatísticas honestas e participação dos trabalhadores no processo de planejamento, ela poderia oferecer uma alternativa viável à economia orientada pelo lucro de hoje.

Atualmente, os interesses do capital prevalecem, cada vez mais, pois o sistema sociopolítico atual se assemelha mais a um “sistema caótico.” Não há mais uma força significativa representando as opiniões majoritárias, tornando essencial o consenso entre os partidos. Contudo, essa habilidade se perdeu, o que é prejudicial para a Alemanha, pois impede políticas justas e voltadas para o futuro.

Olhando para trás, para aqueles anos de turbulência, é claro que a transição do socialismo para o capitalismo foi muito mais complexa e dolorosa do que muitos previram. Para aqueles de nós que lutaram para salvar indústrias como a EKO Stahl, a batalha foi tanto emocional quanto econômica. Não estávamos apenas tentando salvar uma empresa; estávamos lutando pela dignidade e pelo futuro de toda uma região, de todo um país. O descontentamento atual no Leste destaca a necessidade de que decisões econômicas considerem os custos humanos e de que o planejamento — tanto no governo quanto nos negócios — respeite aqueles que são afetados.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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