Como Kim Jong Un está virando um 'camarada
do inferno' para a China
Turistas chineses se
protegem contra a brisa forte do outono em um prédio de 12 andares, competindo
pelo melhor lugar para fotografar o ponto onde seu país encontra a Rússia e a
Coreia do Norte.
As três bandeiras
nacionais se sobrepõem em um mapa na parede. Fangchuan, no extremo nordeste da
China, é um lugar único por esse motivo.
"Sinto muito
orgulho de estar aqui... com a Rússia à minha esquerda e a Coreia do Norte à
minha direita", declara uma mulher que está em viagem com seus colegas de
trabalho. "Não há fronteiras entre as pessoas."
Isso talvez seja
otimismo demais. Assim como esta faixa do território chinês, o governo de
Pequim também está "preso" entre ambos os vizinhos politicamente.
Nas últimas semanas,
aliança entre Vladimir Putin e Kim Jong Un despertou novos temores
internacionais, com relatos de que a Coreia do Norte mobilizaria milhares de
tropas para apoiar a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Na quinta-feira
(31/10), Pyongyang disparou um míssil intercontinental proibido, no voo mais
longo registrado até agora — depois de semanas de declarações mais agressivas
contra Seul.
“A China busca um
relacionamento com um nível razoável e alto de controle sobre a Coreia do
Norte”, diz Christopher Green, analista do International Crisis Group. “E o
relacionamento da Coreia do Norte com a Rússia ameaça minar isso.”
Se o líder chinês Xi
Jinping não for capaz de moldar a aliança Putin-Kim para atender aos seus
interesses, a China pode acabar presa no meio de um imbróglio internacional, em
um momento em que o Ocidente está cada vez mais brabo e ansioso.
Moscou e Pyongyang
negam que soldados norte-coreanos estejam combatendo na Ucrânia, o que seria
visto como um passo importante dentro da guerra. Mas os Estados Unidos dizem
ter evidências do envolvimento norte-coreano, após receberem alegações da
inteligência sul-coreana e ucraniana.
Os primeiros relatos
surgiram pouco antes de Xi se encontrar com seu Putin na cúpula do Brics no
início de outubro que acabou ofuscando todo o evento. A Rússia queria que a
reunião — que contou com presença do Brasil — fosse uma mensagem de repúdio ao
Ocidente.
Os aliados da China
parecem cada vez mais estarem fora do seu controle. Pequim, o parceiro mais
importante da tríade, busca ser o líder estável de uma nova ordem mundial — uma
que não seja liderada pelos EUA. Mas está sendo difícil conseguir essa ordem, quando
um aliado começou uma guerra na Europa e outro é acusado de ajudar na invasão.
“A China está
descontente com a maneira como as coisas estão indo”, diz Green, “mas eles
estão tentando manter seu descontentamento relativamente em silêncio”.
O tema é sensível para
Pequim, a julgar pela resposta à nossa presença na cidade fronteiriça, onde
turistas são bem-vindos, mas jornalistas não.
Estávamos em áreas
públicas o tempo todo, e ainda assim a nossa equipe foi parada, questionada
repetidamente e nossas filmagens foram deletadas.
O nosso hotel exigiu
ficar com meu passaporte para "minha segurança e a segurança dos
outros". A polícia visitou nossos quartos de hotel e também bloqueou a
estrada para o porto de Hunchun, o que nos daria uma visão mais próxima do
comércio atual entre a Rússia e a China.
<><> Visão
clara
Na plataforma de
observação em Fangchuan, fica claro que a maioria dos turistas veio para ver a
Coreia do Norte.
"Eu vi uma pessoa
andando de bicicleta", diz uma garota espiando por um telescópio. Sua
amiga corre para ver: "Oh! É um país tão misterioso."
Perto dali fica o rio
Tumen que separa os três países. O rio também é a porta de entrada da China
para o Mar do Japão, onde o país tem disputas territoriais com Tóquio.
A fronteira chinesa de
1,4 km tem algumas das poucas plataformas com uma visão clara da Coreia do
Norte. A fronteira da Coreia do Sul com o Norte é uma barreira quase
impenetrável, a Zona Desmilitarizada fortemente minada e fortificada.
Alguém me oferece um
par de binóculos. Algumas pessoas estão andando de bicicleta pela vila em
bicicletas velhas, mas há poucos outros sinais de vida. Um dos maiores
edifícios é uma escola com uma placa pedindo às crianças que "aprendam bem
para Chosun", outro nome para a Coreia do Norte.
"A Coreia do
Norte sempre foi nossa vizinha. Não é estranho para nós”, diz um homem de
meia-idade. “Poder ver como eles vivem me faz perceber como a China é próspera
e forte.”
O regime de Kim Jong
Un certamente teria dificuldades para sobreviver sem seu maior apoiador, a
China, que responde por mais de 90% do comércio exterior, incluindo alimentos e
combustíveis.
Nem sempre foi assim.
No início da década de 1960, foram os chineses que fugiram da fome pelo rio
Tumen. Alguns foram para estudar na Coreia do Norte porque acreditavam que seu
sistema educacional na época era melhor.
A economia
norte-coreana entrou em colapso após a queda da União Soviética em 1991 — que
tinha sido sua principal fonte de ajuda econômica, com petróleo barato —,
provocando grave escassez de alimentos e, eventualmente, fome.
Refugiados
norte-coreanos começaram a atravessar o rio congelante, correndo o risco de
serem mortos a tiros para escapar da fome, pobreza e repressão. Agora, há mais
de 30 mil deles na Coreia do Sul e um número desconhecido na China.
"Desde o colapso
da União Soviética, a Coreia do Norte não teve outra escolha a não ser manter
boas relações com a China, que tem sido sua única apoiadora", diz Green.
Mas agora, ele
acrescenta, a Rússia “está oferecendo uma alternativa e os norte-coreanos estão
buscando explorar isso”.
Mao Zedong, o primeiro
líder da República Popular da China, comparou o relacionamento entre Pequim e
Pyongyang à proximidade entre “lábios e dentes”: “se os lábios se forem, os
dentes ficarão frios.”
<><>
'Camarada do inferno'
Agora, Pequim se vê
sofrendo com a falta de gratidão, já que os lábios de Kim estão "beijando
em outro lugar", de acordo com o sociólogo Aidan Foster-Carter, que estuda
a Coreia do Norte há várias décadas.
"A Coreia do
Norte tem sido consistentemente a 'camarada do inferno' para a Rússia e a
China. Eles pegam o máximo de dinheiro que podem e [depois] fazem o que
querem."
Analistas notaram que
Kim tem bajulado Putin consistentemente em vez de Xi no último ano. Embora Kim
não se encontre com Xi desde 2019, ele se reuniu com Putin duas vezes no último
ano ou mais. A invasão da Ucrânia pela Rússia aproximou os dois líderes sancionados
mais do que nunca. Putin busca mais apoio para sua guerra e Kim quer reforçar
seu regime com alianças e atenção.
Da fronteira chinesa,
é fácil ver o relacionamento crescente entre os dois lados.
O apito de um trem
interrompe a conversa dos turistas, e uma locomotiva a vapor puxando uma longa
fila de vagões de carga atravessa lentamente a ponte ferroviária da Rússia para
a Coreia do Norte. Ele para em frente a uma placa coreana voltada para a China
que diz: “Rumo a uma nova vitória!”
Os EUA estimam que Kim
vendeu mais de um milhão de projéteis de artilharia e foguetes Grad para Moscou
para uso na Ucrânia, o que a Coreia do Norte nega.
Mas não há dúvida de
que Kim e Putin intensificaram sua cooperação após assinar um pacto de
segurança em junho para ajudar um ao outro em caso de "agressão"
contra qualquer um dos países.
"Observamos uma
linguagem muito rígida e formal com Xi Jinping na ocasião do que é, na verdade,
um evento historicamente importante — o 75º aniversário das relações da
República Popular da China", diz Foster-Carter.
"Mas no
aniversário de Putin, Kim o chama de 'meu camarada mais próximo'. Se você é Xi
Jinping, o que você pensaria ouvindo isso?"
<><> As
opções de Pequim
É difícil saber o que
Xi pensa, porque a China não mostrou que pretende interferir na aliança
Rússia-Coreia do Norte.
Os EUA percebem a
inquietação de Pequim e, pela primeira vez, os dois rivais podem ter objetivos
semelhantes.
Na semana passada,
autoridades do Departamento de Estado levantaram a questão das tropas
norte-coreanas na Rússia com diplomatas chineses.
Pequim tem opções — no
passado, eles cortaram o fornecimento de petróleo e carvão para a Coreia do
Norte e cumpriram as sanções lideradas pelos EUA para conter o programa nuclear
de Pyongyang.
A China já está
lutando contra as acusações dos EUA de que está vendendo componentes para a
Rússia que ajudam na invasão da Ucrânia. O comércio de Pequim com Moscou também
está florescendo, mesmo enquanto tenta lidar com tarifas ocidentais.
Xi manteve a Rússia
perto porque precisa da ajuda de Putin para desafiar a ordem mundial liderada
pelos EUA. Mas ele não parou de tentar reparar os laços com a Europa, o Reino
Unido e até mesmo os EUA. A China também tem mantido conversas com o Japão e a
Coreia do Sul para aliviar as tensões históricas.
Mas a retórica cada
vez mais agressiva de Kim contra Seul fez a Coreia do Sul debater novamente se
deveria ter seu próprio arsenal nuclear. Tropas norte-coreanas em um campo de
batalha ucraniano só atrapalhariam ainda mais os planos de Pequim.
A possibilidade já fez
o presidente sul-coreano Yoon Suk Yeol discutir "contramedidas
concretas" e falar sobre o fortalecimento da cooperação de segurança com a
Ucrânia e a Otan.
Uma Coreia do Sul com
armas nucleares ou uma "Otan do Leste Asiático" não são ideais em uma
região onde a China quer maior influência. Um Kim encorajado também poderia
atrair uma demonstração mais forte de apoio dos EUA - na forma de navios de guerra
ou mesmo armas - para seus aliados, Seul e Tóquio.
"Por muito tempo,
a China teve uma política de três nãos no Nordeste da Ásia - um desses nãos foi
um não à Coreia do Norte nuclear. Obviamente, isso foi um fracasso", diz
Green.
Agora, Pequim teme que
a aliança com a Rússia possa desestabilizar a Coreia do Norte.
"Isso poderia até
beneficiar Vladimir Putin de uma forma que não beneficiaria Xi Jinping."
Especialistas dizem
que Pequim está tão preocupada quanto o Ocidente sobre qual tecnologia militar
Putin pode vender a Kim em troca de tropas.
"Satélites, com
certeza", diz Foster-Carter. "Mas Putin é perverso - não louco. A
Rússia sabe, assim como a China sabe, que a Coreia do Norte é um instável. Dar
[a Kim] mais tecnologia para armas nucleares não é uma coisa boa para ninguém."
Especialistas
acreditam que é improvável que Xi faça algo drástico porque a China precisa de
uma Coreia do Norte estável – se ele cortar a ajuda, provavelmente terá uma
crise de refugiados na fronteira.
Mas Kim também pode
ser forçado a tomar uma decisão.
Embora a Rússia esteja
pagando por bombas e tropas, diz Foster-Carter, é a China que "realmente
manteve a Coreia do Norte funcionando todo esse tempo, muitas vezes com os
dentes cerrados. Só me pergunto em que ponto Pequim se voltará contra Pyongyang?".
A aposta de Kim também
pode ter um impacto profundo mais perto de casa - os 25 milhões de
norte-coreanos que estão isolados do mundo exterior e completamente dependentes
do regime para sua sobrevivência.
Do outro lado do rio
Tumen, em Fangchuan, um soldado norte-coreano nos observa, enquanto nós o
observamos.
O vapor sobe das
barracas de lanches que vendem macarrão e polvo grelhado em palitos do lado
chinês. E ele provavelmente consegue ouvir os turistas rindo tirando fotos com
as câmeras e telefones mais recentes, que ele está proibido de ter.
O rio raso é um abismo
que nem os turistas nem o soldado podem cruzar.
Fonte: BBC News Mundo
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