terça-feira, 5 de novembro de 2024

A crescente revolta na Espanha contra autoridades por enchentes

O rei Felipe 6º da Espanha enfrentou manifestantes furiosos neste domingo (3/11) durante uma visita a Paiporta, uma cidade na região de Valência, após enchentes de grande escala que atingiram a região esta semana.

Em um vídeo, gritos de "assassino" podem ser ouvidos, enquanto outros perguntam por que o rei não apareceu antes na cidade.

Lama e objetos foram jogados. As imagens mostram vários objetos voando, enquanto o rei caminha no meio da multidão.

Um político local criticou a visita do rei, dizendo à BBC que foi "uma decisão muito ruim".

Acredita-se que o rei e a rainha já deixaram a cidade e suspenderam uma visita planejada a Chiva, outra área atingida por inundações.

O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, foi evacuado da área.

Em uma declaração à emissora espanhola La Sexta, autoridades dizem que o primeiro-ministro espanhol foi "xingado e atacado" enquanto algumas pessoas "jogavam lama e outros objetos nele". Segundo as autoridades, Sánchez está bem.

Autoridades dizem que pelo menos 210 pessoas morreram nas inundações na Comunidade Valenciana, na região de Castilla La Mancha e na Andaluzia. Mais mortes foram confirmadas neste domingo.

Neste domingo, um alerta meteorológico foi emitido para partes do sul de Valência pela agência meteorológica nacional da Espanha (AEMET).

Uma moradora de Paiporta disse à agência de notícias Reuters que a cidade foi "abandonada" pelas autoridades espanholas após as devastadoras enchentes.

"Eles não nos avisaram", disse Julia Chisert. Ela disse que queria falar diretamente ao rei Felipe para pedir que ele restaure a ordem.

"Queremos que você nos defenda", diz ela. "Só pedimos ajuda, não pedimos mais nada."

•        Raiva contra autoridades

A raiva é um tema recorrente em Valência e na área ao redor, onde a maioria das mais de 210 mortes ocorreram.

No sábado (3/11), Pedro Francisco, de 16 anos, estava esperando em uma fila com seus pais por quatro horas, tentando oferecer seu trabalho como voluntário.

Os organizadores acreditam que 15 mil pessoas apareceram em um mutirão de solidariedade para a primeira limpeza coordenada, preenchendo o que muitos sentem ser um vácuo deixado pelas autoridades.

Pedro diz que o avô de sua amiga morreu nas enchentes, mas até agora ela não conseguiu resgatar o corpo.

“Sinto raiva”, diz Pedro. “Esta foi uma tragédia evitável. Tudo o que o governo regional precisava fazer era nos dar os alertas de inundação com antecedência.”

Chuvas fortes começaram na segunda-feira (28/10), causando grandes inundações, destruindo pontes, isolando comunidades e deixando-as sem água, comida ou eletricidade.

Outra espanhola, Amparo Esteve, falou com a BBC em uma ponte de pedestres cruzando o rio Turia em Valência.

Ela estava se preparando para caminhar até Paiporta, pois as estradas permanecem fechadas e ela queria ajudar seus vizinhos.

"Meus vizinhos me disseram para correr o mais rápido que eu pudesse. As águas estavam me seguindo, muito, muito rápido. Fiquei em casa por três dias sem luz, sem água, sem telefone, nada", conta Amparo.

"Não pude ligar para minha mãe para dizer que estava bem. Não tínhamos comida ou água para beber."

Ela também expressou raiva com as autoridades. "Ninguém está nos ajudando."

Amparo agora está com seus avós porque está com muito medo de voltar por causa de pessoas que estão saqueando lojas e casas.

O governo valenciano disse que os saques estão aumentando a insegurança na região e alertou que os culpados serão presos.

Emilia, de 74 anos e dona de uma loja, também disse que se sentiu abandonada ao lidar com a destruição em Picanya, um subúrbio de Valência.

"Nós nos sentimos abandonados, há muitas pessoas que precisam de ajuda", ela disse à agência de notícias Reuters, acrescentando que as pessoas estão jogando fora muitos, se não todos, seus itens domésticos. "Não podemos nem lavar nossas roupas e nem tomar banho."

Na televisão, o primeiro-ministro anunciou um aumento nas forças de segurança para ajudar nos trabalhos de socorro.

Sánchez disse que está mobilizando mais 5 mil soldados para ajudar nas buscas e na limpeza, além dos 2,5 mil já mobilizados — a maior operação das forças armadas na Espanha em tempos de paz.

Um novo destacamento de 5 mil policiais e guardas civis também ocorrerá.

O governo disse que 4,8 mil resgates foram feitos e 30 mil pessoas foram ajudadas.

Mas autoridades também foram criticadas por seus sistemas de alerta antes da enchente.

"Estou ciente de que a resposta não é suficiente, há problemas e escassez severa... cidades enterradas pela lama, pessoas desesperadas procurando por seus parentes... temos que melhorar", disse Sanchez.

 

•        4 razões por que tempestade foi tão letal na Espanha

A Espanha continua em estado de choque por conta da tragédia causada pelas chuvas torrenciais e inundações que deixaram centenas de mortos na província de Valência.

Enquanto o exército espanhol é acionado em conjunto com os serviços de emergência locais para atender as populações afetadas, as autoridades admitem que o número atual de 205 mortos, sendo 202 em Valência, aumentará. Isso ocorre à medida que é possível acessar as ruas e estradas, que foram bloqueadas pela lama e por carros arrastados pela inundação mortal.

Segundo José Ángel Núñez, chefe de Climatologia da Agência Meteorológica do Estado (Aemet) de Valência, em declarações citadas pela publicação Cadena SER, “a catástrofe humanitária vai ocorrer e será a mais grave na Espanha, provavelmente desde 1962”. Na época, enchentes causaram mil mortes na região de Vallés, na Catalunha.

Jorge Olcina, climatologista da Universidade de Alicante, disse à BBC Mundo que “essas coisas não deveriam acontecer em um país desenvolvido que tem os meios que a Espanha tem”.

Três dias depois das chuvas, muitos dentro e fora da Espanha se perguntam o que causou uma catástrofe de tamanha magnitude em um país não habituado a enfrentar desastres naturais com um custo tão elevado em vidas humanas.

Existem várias causas.

1. Chuvas excepcionais

Embora as chuvas torrenciais e as tempestades sejam comuns nas regiões mediterrânicas da Espanha nos meses de setembro e outubro, as que caíram nas zonas mais afetadas quebraram recordes.

Na província de Valência caíram até 500 litros de água por metro quadrado e, em algumas regiões, choveu mais do que normalmente é registrado durante todo o ano.

Como explica José María Bodoque, pesquisador especializado em avaliação de risco de inundação, da Universidade de Castilla-La Mancha, ao The Conversation, “as chuvas saturaram rapidamente os solos, gerando inundações repentinas em rios, canais e avenidas que, em poucas horas, ficaram inundados e cobertos pela água, o que limitou o tempo de resposta.

Vídeos postados nas redes sociais por moradores de alguns dos municípios afetados mostraram como uma tromba d’água e lama se espalhava pelas ruas e calçadas, mesmo em áreas onde não chovia.

Foi apenas o começo de um pesadelo cuja extensão naquela época não era possível imaginar.

2. Falta de previsão

Apesar de a Agência Meteorológica Estadual ter elevado o nível de alerta ao máximo na manhã de terça-feira, 29, devido à Depressão Isolada em Altos Níveis (Dana) que levou as chuvas, e alertado para "um nível de risco muito elevado para o população", as autoridades não adotaram medidas excepcionais.

Carlos Mazón, presidente do governo regional da Comunidade Valenciana, declarou por volta das 13h daquele dia: “a tempestade avança neste momento em direção à Serranía de Cuenca. Pelo que se prevê, a sua intensidade deve diminuir por volta das 18h na Comunidade Valenciana”.

Em vez disso, poucas horas depois, devastou grande parte da província de Valência.

Quando a Proteção Civil (órgão relativo à Defesa Civil) enviou uma mensagem de alerta para os celulares dos moradores, a água já havia invadido vários pontos e muitos agarraram-se às árvores ou refugiaram-se nos telhados para se salvar de uma tempestade imparável.

À medida que os corpos são encontrados, fica claro que muitos morreram afogados nos carros em que viajavam, ou mesmo tentando tirá-los da garagem para evitar que a água que se acumulava nos porões os danificasse.

“As pessoas continuaram levando uma vida normal e havia muita gente exposta, circulando pelas ruas e rodovias, ou em casas baixas, quando deveriam ter se abrigado ou mesmo deixado algumas áreas”, diz o climatologista Olcina. Ele acredita que “nessas situações devem ser emitidas ordens de evacuação e serem envolvidas forças de segurança para que cheguem à população.

Embora cresça a polêmica na Espanha sobre ter sido o governo regional ou nacional o responsável pela não tomada de medidas a tempo, Olcina acredita que a catástrofe "demonstrou que o modelo de Estado autônomo adotado na Espanha não dispõe de mecanismos bem alinhados para lidar com uma emergência desta magnitude."

“Numa situação como esta, não há espaço para disputas políticas ou distinções entre local e nacional. É necessária uma iniciativa rápida”.

3. Planejamento urbano desorganizado

A experiência traumática da Dana de 2024 pôs mais uma vez em evidência o problema histórico da ocupação desordenada do território da costa mediterrânica espanhola. Essa é uma das zonas mais densamente povoadas e turísticas do país, onde há décadas são feitas construções em áreas propensas a inundações.

Na Comunidade Valenciana existem muitos cursos de água sazonais, geralmente secos, mas expostos a possíveis inundações ocasionais. Neles foram construídos os bairros onde hoje vivem milhares de pessoas.

Foi o que aconteceu na rambla de Poyo, em Chiva, uma das cidades devastadas pela água.

Episódios como o transbordamento do rio Júcar, em Valência, em 1957, ou as cheias em Alicante, em 1982, que causaram dezenas de mortes, já tinham evidenciado um problema, cujas consequências se revelaram agora ainda mais devastadoras.

O especialista José María Bodoque diz ao The Conversation que “em relação a esses acontecimentos, o principal fator amplificador de perdas de vidas humanas, vítimas e danos econômicos é a urbanização dos espaços fluviais de canais e avenidas. Explicação que também tem sido dada na maioria dos centros urbanos afetados pela Dana".

4. O impacto das mudanças climáticas

As tempestades isoladas com precipitações elevadas, e as fortes chuvas num curto espaço de tempo que elas trazem consigo, são um fenômeno comum no final do verão, de acordo com o Levante espanhol.

Tradicionalmente conhecido como “gota fria”, o fenômeno ocorre quando uma massa de ar polar isolada começa a circular em altitudes muito elevadas e colide com o ar mais quente e úmido, típico do Mediterrâneo no final do verão, desencadeando muitas vezes tempestades que despejam grandes quantidades de água em pouco tempo.

Os moradores locais estão habituados a elas, mas não a eventos tão destrutivos como os desta semana.

Os especialistas reforçam que as mudanças climáticas estão provavelmente contribuindo para o aumento de sua frequência e intensidade.

Segundo o climatologista Olcina, “com as águas do Mediterrâneo cada vez mais quentes, nuvens cada vez mais poderosas estão se formando e produzindo mais precipitações”.

Outros especialistas se manifestaram no mesmo sentido. E um relatório preliminar da organização acadêmica World Weather Attribution, especializado em medir o impacto das mudanças climáticas em eventos extremos, apontou que as chuvas que atingiram a Espanha foram 12% mais intensas e dobrou as chances de elas ocorrerem.

 

Fonte: BBC News Mundo

 

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