A crescente revolta na Espanha contra
autoridades por enchentes
O rei Felipe 6º da
Espanha enfrentou manifestantes furiosos neste domingo (3/11) durante uma
visita a Paiporta, uma cidade na região de Valência, após enchentes de grande
escala que atingiram a região esta semana.
Em um vídeo, gritos de
"assassino" podem ser ouvidos, enquanto outros perguntam por que o
rei não apareceu antes na cidade.
Lama e objetos foram
jogados. As imagens mostram vários objetos voando, enquanto o rei caminha no
meio da multidão.
Um político local
criticou a visita do rei, dizendo à BBC que foi "uma decisão muito
ruim".
Acredita-se que o rei
e a rainha já deixaram a cidade e suspenderam uma visita planejada a Chiva,
outra área atingida por inundações.
O primeiro-ministro
espanhol, Pedro Sánchez, foi evacuado da área.
Em uma declaração à
emissora espanhola La Sexta, autoridades dizem que o primeiro-ministro espanhol
foi "xingado e atacado" enquanto algumas pessoas "jogavam lama e
outros objetos nele". Segundo as autoridades, Sánchez está bem.
Autoridades dizem que
pelo menos 210 pessoas morreram nas inundações na Comunidade Valenciana, na
região de Castilla La Mancha e na Andaluzia. Mais mortes foram confirmadas
neste domingo.
Neste domingo, um
alerta meteorológico foi emitido para partes do sul de Valência pela agência
meteorológica nacional da Espanha (AEMET).
Uma moradora de
Paiporta disse à agência de notícias Reuters que a cidade foi
"abandonada" pelas autoridades espanholas após as devastadoras
enchentes.
"Eles não nos
avisaram", disse Julia Chisert. Ela disse que queria falar diretamente ao
rei Felipe para pedir que ele restaure a ordem.
"Queremos que
você nos defenda", diz ela. "Só pedimos ajuda, não pedimos mais
nada."
• Raiva contra autoridades
A raiva é um tema
recorrente em Valência e na área ao redor, onde a maioria das mais de 210
mortes ocorreram.
No sábado (3/11),
Pedro Francisco, de 16 anos, estava esperando em uma fila com seus pais por quatro
horas, tentando oferecer seu trabalho como voluntário.
Os organizadores
acreditam que 15 mil pessoas apareceram em um mutirão de solidariedade para a
primeira limpeza coordenada, preenchendo o que muitos sentem ser um vácuo
deixado pelas autoridades.
Pedro diz que o avô de
sua amiga morreu nas enchentes, mas até agora ela não conseguiu resgatar o
corpo.
“Sinto raiva”, diz
Pedro. “Esta foi uma tragédia evitável. Tudo o que o governo regional precisava
fazer era nos dar os alertas de inundação com antecedência.”
Chuvas fortes
começaram na segunda-feira (28/10), causando grandes inundações, destruindo
pontes, isolando comunidades e deixando-as sem água, comida ou eletricidade.
Outra espanhola,
Amparo Esteve, falou com a BBC em uma ponte de pedestres cruzando o rio Turia
em Valência.
Ela estava se
preparando para caminhar até Paiporta, pois as estradas permanecem fechadas e
ela queria ajudar seus vizinhos.
"Meus vizinhos me
disseram para correr o mais rápido que eu pudesse. As águas estavam me
seguindo, muito, muito rápido. Fiquei em casa por três dias sem luz, sem água,
sem telefone, nada", conta Amparo.
"Não pude ligar
para minha mãe para dizer que estava bem. Não tínhamos comida ou água para
beber."
Ela também expressou
raiva com as autoridades. "Ninguém está nos ajudando."
Amparo agora está com
seus avós porque está com muito medo de voltar por causa de pessoas que estão
saqueando lojas e casas.
O governo valenciano
disse que os saques estão aumentando a insegurança na região e alertou que os
culpados serão presos.
Emilia, de 74 anos e
dona de uma loja, também disse que se sentiu abandonada ao lidar com a
destruição em Picanya, um subúrbio de Valência.
"Nós nos sentimos
abandonados, há muitas pessoas que precisam de ajuda", ela disse à agência
de notícias Reuters, acrescentando que as pessoas estão jogando fora muitos, se
não todos, seus itens domésticos. "Não podemos nem lavar nossas roupas e
nem tomar banho."
Na televisão, o
primeiro-ministro anunciou um aumento nas forças de segurança para ajudar nos
trabalhos de socorro.
Sánchez disse que está
mobilizando mais 5 mil soldados para ajudar nas buscas e na limpeza, além dos
2,5 mil já mobilizados — a maior operação das forças armadas na Espanha em
tempos de paz.
Um novo destacamento
de 5 mil policiais e guardas civis também ocorrerá.
O governo disse que
4,8 mil resgates foram feitos e 30 mil pessoas foram ajudadas.
Mas autoridades também
foram criticadas por seus sistemas de alerta antes da enchente.
"Estou ciente de
que a resposta não é suficiente, há problemas e escassez severa... cidades
enterradas pela lama, pessoas desesperadas procurando por seus parentes...
temos que melhorar", disse Sanchez.
• 4 razões por que tempestade foi tão
letal na Espanha
A Espanha continua em
estado de choque por conta da tragédia causada pelas chuvas torrenciais e
inundações que deixaram centenas de mortos na província de Valência.
Enquanto o exército
espanhol é acionado em conjunto com os serviços de emergência locais para
atender as populações afetadas, as autoridades admitem que o número atual de
205 mortos, sendo 202 em Valência, aumentará. Isso ocorre à medida que é
possível acessar as ruas e estradas, que foram bloqueadas pela lama e por
carros arrastados pela inundação mortal.
Segundo José Ángel
Núñez, chefe de Climatologia da Agência Meteorológica do Estado (Aemet) de
Valência, em declarações citadas pela publicação Cadena SER, “a catástrofe
humanitária vai ocorrer e será a mais grave na Espanha, provavelmente desde
1962”. Na época, enchentes causaram mil mortes na região de Vallés, na
Catalunha.
Jorge Olcina,
climatologista da Universidade de Alicante, disse à BBC Mundo que “essas coisas
não deveriam acontecer em um país desenvolvido que tem os meios que a Espanha
tem”.
Três dias depois das
chuvas, muitos dentro e fora da Espanha se perguntam o que causou uma
catástrofe de tamanha magnitude em um país não habituado a enfrentar desastres
naturais com um custo tão elevado em vidas humanas.
Existem várias causas.
1. Chuvas excepcionais
Embora as chuvas torrenciais
e as tempestades sejam comuns nas regiões mediterrânicas da Espanha nos meses
de setembro e outubro, as que caíram nas zonas mais afetadas quebraram
recordes.
Na província de
Valência caíram até 500 litros de água por metro quadrado e, em algumas
regiões, choveu mais do que normalmente é registrado durante todo o ano.
Como explica José
María Bodoque, pesquisador especializado em avaliação de risco de inundação, da
Universidade de Castilla-La Mancha, ao The Conversation, “as chuvas saturaram
rapidamente os solos, gerando inundações repentinas em rios, canais e avenidas
que, em poucas horas, ficaram inundados e cobertos pela água, o que limitou o
tempo de resposta.
Vídeos postados nas
redes sociais por moradores de alguns dos municípios afetados mostraram como
uma tromba d’água e lama se espalhava pelas ruas e calçadas, mesmo em áreas
onde não chovia.
Foi apenas o começo de
um pesadelo cuja extensão naquela época não era possível imaginar.
2. Falta de previsão
Apesar de a Agência
Meteorológica Estadual ter elevado o nível de alerta ao máximo na manhã de
terça-feira, 29, devido à Depressão Isolada em Altos Níveis (Dana) que levou as
chuvas, e alertado para "um nível de risco muito elevado para o população",
as autoridades não adotaram medidas excepcionais.
Carlos Mazón,
presidente do governo regional da Comunidade Valenciana, declarou por volta das
13h daquele dia: “a tempestade avança neste momento em direção à Serranía de
Cuenca. Pelo que se prevê, a sua intensidade deve diminuir por volta das 18h na
Comunidade Valenciana”.
Em vez disso, poucas
horas depois, devastou grande parte da província de Valência.
Quando a Proteção
Civil (órgão relativo à Defesa Civil) enviou uma mensagem de alerta para os
celulares dos moradores, a água já havia invadido vários pontos e muitos
agarraram-se às árvores ou refugiaram-se nos telhados para se salvar de uma
tempestade imparável.
À medida que os corpos
são encontrados, fica claro que muitos morreram afogados nos carros em que
viajavam, ou mesmo tentando tirá-los da garagem para evitar que a água que se
acumulava nos porões os danificasse.
“As pessoas
continuaram levando uma vida normal e havia muita gente exposta, circulando
pelas ruas e rodovias, ou em casas baixas, quando deveriam ter se abrigado ou
mesmo deixado algumas áreas”, diz o climatologista Olcina. Ele acredita que
“nessas situações devem ser emitidas ordens de evacuação e serem envolvidas
forças de segurança para que cheguem à população.
Embora cresça a
polêmica na Espanha sobre ter sido o governo regional ou nacional o responsável
pela não tomada de medidas a tempo, Olcina acredita que a catástrofe
"demonstrou que o modelo de Estado autônomo adotado na Espanha não dispõe
de mecanismos bem alinhados para lidar com uma emergência desta
magnitude."
“Numa situação como
esta, não há espaço para disputas políticas ou distinções entre local e
nacional. É necessária uma iniciativa rápida”.
3. Planejamento urbano
desorganizado
A experiência
traumática da Dana de 2024 pôs mais uma vez em evidência o problema histórico
da ocupação desordenada do território da costa mediterrânica espanhola. Essa é
uma das zonas mais densamente povoadas e turísticas do país, onde há décadas
são feitas construções em áreas propensas a inundações.
Na Comunidade
Valenciana existem muitos cursos de água sazonais, geralmente secos, mas
expostos a possíveis inundações ocasionais. Neles foram construídos os bairros
onde hoje vivem milhares de pessoas.
Foi o que aconteceu na
rambla de Poyo, em Chiva, uma das cidades devastadas pela água.
Episódios como o
transbordamento do rio Júcar, em Valência, em 1957, ou as cheias em Alicante,
em 1982, que causaram dezenas de mortes, já tinham evidenciado um problema,
cujas consequências se revelaram agora ainda mais devastadoras.
O especialista José
María Bodoque diz ao The Conversation que “em relação a esses acontecimentos, o
principal fator amplificador de perdas de vidas humanas, vítimas e danos
econômicos é a urbanização dos espaços fluviais de canais e avenidas.
Explicação que também tem sido dada na maioria dos centros urbanos afetados
pela Dana".
4. O impacto das
mudanças climáticas
As tempestades
isoladas com precipitações elevadas, e as fortes chuvas num curto espaço de
tempo que elas trazem consigo, são um fenômeno comum no final do verão, de
acordo com o Levante espanhol.
Tradicionalmente
conhecido como “gota fria”, o fenômeno ocorre quando uma massa de ar polar
isolada começa a circular em altitudes muito elevadas e colide com o ar mais
quente e úmido, típico do Mediterrâneo no final do verão, desencadeando muitas
vezes tempestades que despejam grandes quantidades de água em pouco tempo.
Os moradores locais
estão habituados a elas, mas não a eventos tão destrutivos como os desta
semana.
Os especialistas
reforçam que as mudanças climáticas estão provavelmente contribuindo para o
aumento de sua frequência e intensidade.
Segundo o
climatologista Olcina, “com as águas do Mediterrâneo cada vez mais quentes,
nuvens cada vez mais poderosas estão se formando e produzindo mais
precipitações”.
Outros especialistas
se manifestaram no mesmo sentido. E um relatório preliminar da organização
acadêmica World Weather Attribution, especializado em medir o impacto das
mudanças climáticas em eventos extremos, apontou que as chuvas que atingiram a
Espanha foram 12% mais intensas e dobrou as chances de elas ocorrerem.
Fonte: BBC News Mundo
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