sexta-feira, 21 de março de 2025

Acampados da área mais violenta da Amazônia terão terra demarcada após dez anos de ameaças

O Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluiu o processo de arrecadação de parte das terras da gleba Novo Natal, em Lábrea (AM), para atender às famílias moradoras do acampamento Marielle Franco.

A conclusão do processo pode pôr fim a quase uma década de violências. Ao longo desses anos, os acampados tiveram casas incendiadas, sofreram agressões, torturas e ameaças. Em janeiro de 2025, um morador do acampamento foi encontrado morto, com um tiro no queixo. O caso está em investigação.

“É um alívio para nós, né?”, diz Paulo Sérgio Araújo, liderança do grupo de acampados, sobre a decisão do Incra. Preso há um ano, ele é acusado de organização criminosa. Araújo alega inocência e define a região como “terra sem lei”.

A arrecadação de 28,4 mil hectares da gleba Novo Natal – processo que define as terras como pertencentes à União – foi publicada no Diário Oficial em 24 de fevereiro deste ano.

De acordo com informações da superintendência do Incra no Amazonas, a criação do assentamento deve ser realizada nos próximos meses e atenderá 150 das 200 famílias que aguardam a regularização do território.

Entre as atividades realizadas pelos ocupantes da área está a colheita da castanha. A prática permite a preservação ambiental, já que as castanheiras, árvores típicas da Amazônia, crescem em harmonia com outras espécies.

Além da colheita, alguns ocupantes fazem roçados. A agricultora Joana, que prefere não ter a identidade revelada, vive no acampamento há cerca de nove anos, plantando arroz, macaxeira, hortaliças e criando galinhas.

“A gente ficava sob tortura psicológica”, diz a agricultora, com relação à pressão sofrida pela comunidade durante o período de conflito. Ela relata a presença de drones sobrevoando a área, além dos incêndios das casas e ameaças de despejo.

Joana acredita que a arrecadação da terra e o assentamento das famílias poderá diminuir as investidas dos fazendeiros. “A gente vai ficar mais confiante”, diz.

Um dos fazendeiros apontados pelos moradores como mandante das ameaças é o pecuarista Sidnei Sanches Zamora, dono de terras no Acre e Amazonas. Entre elas, está a propriedade chamada fazenda Palotina, parcialmente sobreposta à área requisitada pelos acampados.

Em novembro de 2024, o filho dele, Sidney Sanches Zamora Filho, também pecuarista, teve prisão preventiva decretada pela 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Subseção Judiciária do Amazonas (AM), no âmbito de uma investigação sobre uma organização criminosa especializadas em grilagem de terras públicas.

Procurado pelo Brasil de Fato, o pecuarista informa que recebeu com consternação e surpresa a ordem de prisão, “sobretudo porque sequer fui ouvido”. “Sempre fiz denúncias contra os invasores e cooperei com as autoridades ambientais e policiais”, completa.

Em resposta enviada por e-mail, Zamora Filho informa que sua equipe jurídica “conseguiu reverter essa injustiça e cancelou a ordem de prisão preventiva, ao comprovar que eu não cometi nenhum crime de ordem violenta”.

Com relação à propriedade das terras, o pecuarista afirma que o Incra reconheceu a titularidade da Fazenda Palotina. Um dos documentos enviados por ele ao Brasil de Fato, datado de 2019, é assinado por João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa, coronel nomeado para o cargo de ouvidor agrário nacional durante o governo de Jair Bolsonaro.

Durante a gestão, o ouvidor ficou conhecido por enviar um memorando às superintendências regionais do Incra recomendando que os órgãos não recebessem “entidades que não possuam personalidade jurídica”, além de “invasores de terras”. Na prática, a determinação impedia que o instituto dialogasse com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

De acordo com Denis da Silva Pereira, superintendente do Incra no Amazonas, o atestado de propriedade de uma parte das terras, mencionado por Zamora Filho, foi cancelado.

“Nós estamos respondendo pela parte que nos cabe, que é cumprir a missão do Incra de arrecadar as terras devolutas”, afirma o superintendente, que conduziu o processo de arrecadação. “E a gleba Novo Natal é terra devoluta. A Amazônia, para ser plenamente desenvolvida, necessita ter seu território regularizado, democratizado e produzindo conforme os princípios da sustentabilidade”, diz.

Área é a mais violenta da Amazônia

O acampamento Marielle Franco fica em uma área de fronteira entre Lábrea e Boca do Acre (AM), municípios líderes de casos de violência no campo, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Eles estão localizados na Amacro, região que abrange parte dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, e definida como uma fronteira de expansão agrícola durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

“Enquanto a gente tá testemunhando um decréscimo da violência na Amazônia Legal, lá é o local que cresce, que tá aumentando”, afirma Afonso Chagas, agente da CPT.

“Em 2023, a Amacro concentrou 10% [179] de todos os conflitos por terra registrados no país, e 26% de todos os assassinatos ocorridos em contexto de conflitos no campo”, destaca o relatório de conflitos no campo de 2023 da pastoral.

Dos 31 assassinatos relacionados a conflitos rurais naquele ano no país, oito foram na Amacro, sendo cinco causados por grileiros, de acordo com a CPT. Em 2021, dos 60 registros de conflitos agrários no estado do Acre, 51 estavam na região da Amacro.

“Infelizmente, naquela área, a agressão física, a violência física, os assassinatos, têm sido uma especialidade dos latifundiários, dos grandes grileiros de terra”, diz Chagas, sobre a concentração de casos em Lábrea e Boca do Acre. Ele avalia que a dificuldade de acesso à região é um dos fatores que impulsiona a violência.

Com mais de 6 milhões de hectares, o equivalente ao tamanho do Sri Lanka, Lábrea é o décimo maior município do Brasil em extensão territorial. Embora o acampamento Marielle Franco fique no território de Lábrea, as denúncias contra Araújo foram registradas pela polícia de Boca do Acre, cuja área urbana fica mais perto do acampamento, a cerca de 100 quilômetros. Do centro urbano de Lábrea até a área comunidade, são mais de mil quilômetros.

“Como a região é de difícil presença do estado, ou seja, tudo está distante, é faixa de fronteira, as jurisdições não estão suficientemente demarcadas, a impunidade é uma espécie de cobertura e legitimidade para essas práticas e violência”, afirma o agente da pastoral.

Outro atrativo para grileiros na área é a abundância de terras públicas não destinadas – aquelas que pertencem ao governo estadual ou federal, mas ainda não foram transformadas em assentamentos, Unidades de Conservação (UCs) ou outros territórios protegidos, como Terras Indígenas (TIs) e Territórios Quilombolas (TQ). Sem a devida demarcação, essas áreas ficam em estado de insegurança jurídica e são atrativas para os invasores.

“É o epicentro de toda essa violência e justamente corresponde ao outro dado, que é onde há o maior número de glebas públicas federais não arrecadadas, não destinadas e ilicitamente apropriadas por grandes grileiros”, explica Chagas.

De acordo com a CPT, o primeiro conflito na gleba Novo Natal, na área da fazenda Palotina, foi registrado em 2008.

Preso após denunciar tortura

Paulo Sérgio Araújo foi preso após procurar a Polícia Civil de Boca do Acre para denunciar um caso de violência registrado na comunidade Marielle Franco em fevereiro de 2024, quando quatro moradores da área foram vítimas de agressões e tortura.

Eles estavam na mata, filmando a extração ilegal de madeira praticada por invasores da área, quando foram abordados por homens usando coletes à prova de balas. De acordo com o depoimento de uma das vítimas à Polícia Civil, os agressores “(…) batiam de ‘facão, de chute, de tapa’, nas costas, na bunda, etc”.

Em outro trecho do depoimento, as vítimas informam que os agressores disseram que não iriam matá-los “para que estes contassem para a comunidade, com o intuito de gerar medo”.

Um vídeo feito por moradores do acampamento mostra uma das vítimas, um homem ensanguentado e trêmulo, sendo conduzido por outros até um carro. Dali, ele seria levado para atendimento médico. “O crime de tortura nunca foi apurado”, lamenta Araújo.

Ao procurar a polícia para fazer a denúncia do caso, Araújo soube da investigação que corria contra ele, e acabou sendo preso.

“Eles mandaram me prender. Eles não têm base, eles não têm prova”, diz. De acordo com o depoimento das vítimas, a tortura foi filmada e transmitida para o mandante, com uso de um roteador Starlink, que permite acesso à internet em áreas remotas.

Em agosto de 2024, a casa de Araújo foi incendiada. Poucos dias depois, outra casa no acampamento também sofreu com incêndio. “Acabou tudo, matou até o cachorro que tava dentro”, lembra Araújo.

Atualmente, o líder da comunidade está na casa da sua família, em Rio Branco (AC), onde cumpre pena em regime aberto e aguarda as próximas decisões da justiça. Ele só poderá retornar ao acampamento se tiver sua prisão revertida.

¨      ‘Conflito agrário só é solucionado quando o trabalhador conquista direito à terra’, diz ouvidora nacional do MDA

A ouvidora agrária nacional do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Claudia Dadico, participou nesta quinta-feira (20) da 22ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão (RS). Ao Brasil de Fato, a coordenadora da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo (CNEVC) comentou sobre a importância da celebração organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

“O enorme significado da festa se dá não apenas pelo fato, já grandioso, de o MST ser o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, mas sobretudo porque após a grande enchente que se abateu sobre esse estado [em 2024], ficou claro que o modo de produção capitalista é um modo que precisa ser urgentemente substituído pelo modo de produção orgânico, que respeita a natureza”, pontuou Dadico.

A festa, realizada anualmente pelo MST do Rio Grande do Sul, marca o início da colheita do arroz orgânico no estado. Em 2024, a celebração foi suspensa, porque a semeadura do grão, que geralmente começa em setembro, precisou ser adiada em razão de duas enchentes históricas na região metropolitana de Porto Alegre no ano anterior.

Questionada sobre medidas de enfrentamento aos conflitos agrários, a coordenadora reconheceu que “o número de conflitos ainda é muito alto, porque as disputas territoriais ainda são muito acirradas, com vários componentes como a grilagem de terras e o conflito armado”. No entanto, ela reforçou que “há um enfrentamento articulado com vários ministérios que já obteve alguns resultados, como a diminuição das mortes em 2023 e 2024. E continuamos trabalhando porque entendemos que o conflito armado só é solucionado quando o trabalhador conquista o direito à terra”.

¨      Deputadas de nove partidos pedem responsabilização de senador Plínio Valério por declaração sobre ‘enforcar’ Marina Silva

Deputadas de nove legendas ingressaram, nesta quinta-feira (20), com uma representação no Conselho de Ética do Senado contra o senador Plínio Valério (PSDB-AM) por ter dado uma declaração sobre a possibilidade de agredir a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Durante participação em evento em Manaus (AM) no último dia 13, ao se referir a uma audiência da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs na qual a mandatária foi ouvida por parlamentares, Valério disse “imagine o que é tolerar Marina Silva por seis horas e dez minutos sem enforcá-la”. A declaração gerou diversas reações críticas à conduta do tucano, tendo como ápice agora a denúncia apresentada ao Senado.

Na denúncia apresentada ao Conselho de Ética, as parlamentares afirmam que o conteúdo da fala do senador extrapola os limites da imunidade parlamentar, direito previsto na Constituição Federal para membros do Poder Legislativo. As signatárias argumentam que a iniciativa de Valério tem “um evidente caráter de violência de gênero”. “A fala não apenas minimiza e desqualifica a presença da ministra no cenário político como também reforça um discurso de incitação à violência contra a mulher, um crime tipificado na legislação brasileira e que tem sido amplamente combatido, sobretudo no contexto da política nacional”, diz o texto.

As deputadas ressaltam ainda que “o uso do termo ‘enforcá-la’ direcionado a uma mulher em um contexto de discordância política carrega uma carga simbólica extremamente grave, pois remete à supressão da voz feminina pelo uso da força, à tentativa de desqualificar e intimidar uma liderança política pelo simples fato de ser mulher”. O grupo pede que o caso seja avaliado pelo Conselho de Ética e que o órgão dê “uma resposta institucional firme e imediata”, tomando as “providências cabíveis frente ao evidente descumprimento do Código de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal”.

A denúncia é assinada pelas seguintes deputadas: Benedita da Silva (PT-RJ), Duda Salabert (PDT-MG), enfermeira Ana Paula (Podemos-CE), Gisela Simona (União Brasil-MT), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Laura Carneiro (PSD-RJ), Maria Arraes (Solidariedade-PE), Tabata Amaral (PSB-SP) e Talíria Petroni (Psol-RJ). O deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE) também endossou o texto, em apoio à iniciativa.

Senado

Após as reações à declaração de Valério, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), disse que o tucano “foi muito infeliz nessa colocação”. “O senador Plínio Valério não poderia, em um evento, falar que acompanhou uma audiência pública de uma ministra de Estado por seis horas e que não sabia – em uma fala irônica ou despretensiosa, não quero julgar – onde [ele] estava [que] não enforcou a ministra”, continuou Alcolumbre.

Várias senadoras também criticaram o tucano. Atual procuradora da Mulher no Senado, Zenaide Maia (PSD-RN) disse repudiar o episódio e chegou a sugerir que Valério se desculpasse publicamente. Zenaide afirmou que o parlamentar cometeu um “explícito ato de violência de gênero contra uma mulher”. “As credenciais da ministra Marina, autoridade mundial em sustentabilidade, defesa dos recursos naturais e mudanças climáticas, nem precisariam ser elencadas, porque toda violência contra toda mulher tem que ser evitada, combatida e, sim, punida. Toda a minha solidariedade à ministra Marina Silva. Se o senador agrediu uma ministra, agrediu também a todas nós parlamentares e a todas as brasileiras. Todas nós somos Marina”, disse a senadora, em nota.

Após os apelos, Valério disse que a declaração teria sido “uma brincadeira”. “Se você perguntar ‘você faria de novo?’, não. ‘Mas está arrependido?’ Não, porque eu não ofendi. Eu passei seis horas e dez minutos tratando-a com decência, como merece toda mulher”, disse.

Na quarta (19), após a declaração do senador ganhar ampla repercussão nas redes sociais, Marina Silva disse que “com a vida dos outros não se brinca”. “Só os psicopatas são capazes de fazer isso”, emendou a ministra.

Sociedade civil

O Observatório do Clima, entidade composta por 133 organizações que atuam na área ambiental, divulgou nota em que condena a atitude do parlamentar e presta solidariedade à ministra. “Marina realiza trabalho competente no ministério, que em dois anos já resultou numa redução de 46% do desmatamento em relação a 2022. É mulher. É negra. É da Amazônia. Isso tudo a torna alvo preferencial de ataques misóginos e racistas, vindos especialmente de homens que defendem o que há de mais arcaico e degradante ao meio ambiente, à economia e às relações sociais do país. Os ataques do senador demonstram a truculência e o desespero de um parlamentar irrelevante, que não merece o mandato que tem”, diz o documento.

 

Fonte: Brasil de Fato

 

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