Acampados da área mais violenta da Amazônia
terão terra demarcada após dez anos de ameaças
O
Instituto Brasileiro de Colonização e Reforma Agrária (Incra) concluiu o
processo de arrecadação de parte das terras da gleba Novo Natal, em Lábrea
(AM), para atender às famílias moradoras do acampamento Marielle
Franco.
A
conclusão do processo pode pôr fim a quase uma década de violências. Ao longo
desses anos, os acampados tiveram casas incendiadas, sofreram agressões,
torturas e ameaças. Em janeiro de 2025, um morador do acampamento foi
encontrado morto, com um tiro no queixo. O caso está em investigação.
“É um
alívio para nós, né?”, diz Paulo Sérgio Araújo, liderança do grupo de
acampados, sobre a decisão do Incra. Preso há um ano, ele é acusado de
organização criminosa. Araújo alega inocência e define a região como “terra sem
lei”.
A
arrecadação de 28,4 mil hectares da gleba Novo Natal – processo que define as
terras como pertencentes à União – foi publicada no Diário Oficial em 24 de
fevereiro deste ano.
De
acordo com informações da superintendência do Incra no Amazonas, a criação do
assentamento deve ser realizada nos próximos meses e atenderá 150 das 200
famílias que aguardam a regularização do território.
Entre
as atividades realizadas pelos ocupantes da área está a colheita da castanha. A
prática permite a preservação ambiental, já que as castanheiras, árvores
típicas da Amazônia, crescem em harmonia com outras espécies.
Além da
colheita, alguns ocupantes fazem roçados. A agricultora Joana, que prefere não
ter a identidade revelada, vive no acampamento há cerca de nove anos, plantando
arroz, macaxeira, hortaliças e criando galinhas.
“A
gente ficava sob tortura psicológica”, diz a agricultora, com relação à pressão
sofrida pela comunidade durante o período de conflito. Ela relata a presença de
drones sobrevoando a área, além dos incêndios das casas e ameaças de despejo.
Joana
acredita que a arrecadação da terra e o assentamento das famílias poderá
diminuir as investidas dos fazendeiros. “A gente vai ficar mais confiante”,
diz.
Um dos
fazendeiros apontados pelos moradores como mandante das ameaças é o pecuarista
Sidnei Sanches Zamora, dono de terras no Acre e Amazonas. Entre elas, está a
propriedade chamada fazenda Palotina, parcialmente sobreposta à área
requisitada pelos acampados.
Em
novembro de 2024, o filho dele, Sidney Sanches Zamora Filho, também pecuarista,
teve prisão preventiva decretada pela 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da
Subseção Judiciária do Amazonas (AM), no âmbito de uma investigação sobre uma
organização criminosa especializadas em grilagem de terras públicas.
Procurado
pelo Brasil de Fato, o pecuarista informa que recebeu com consternação e
surpresa a ordem de prisão, “sobretudo porque sequer fui ouvido”. “Sempre fiz
denúncias contra os invasores e cooperei com as autoridades ambientais e
policiais”, completa.
Em resposta enviada por e-mail, Zamora Filho
informa que sua equipe jurídica “conseguiu reverter essa injustiça e cancelou a
ordem de prisão preventiva, ao comprovar que eu não cometi nenhum crime de
ordem violenta”.
Com
relação à propriedade das terras, o pecuarista afirma que o Incra reconheceu a
titularidade da Fazenda Palotina. Um dos documentos enviados por ele
ao Brasil de Fato, datado de 2019, é assinado por João Miguel Souza Aguiar
Maia de Sousa, coronel nomeado para o cargo de ouvidor agrário nacional durante
o governo de Jair Bolsonaro.
Durante
a gestão, o ouvidor ficou conhecido por enviar um memorando às
superintendências regionais do Incra recomendando que os órgãos não recebessem
“entidades que não possuam personalidade jurídica”, além de “invasores de
terras”. Na prática, a determinação impedia que o instituto dialogasse com o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
De
acordo com Denis da Silva Pereira, superintendente do Incra no Amazonas, o
atestado de propriedade de uma parte das terras, mencionado por Zamora Filho,
foi cancelado.
“Nós
estamos respondendo pela parte que nos cabe, que é cumprir a missão do Incra de
arrecadar as terras devolutas”, afirma o superintendente, que conduziu o
processo de arrecadação. “E a gleba Novo Natal é terra devoluta. A Amazônia,
para ser plenamente desenvolvida, necessita ter seu território regularizado,
democratizado e produzindo conforme os princípios da sustentabilidade”, diz.
Área é
a mais violenta da Amazônia
O
acampamento Marielle Franco fica em uma área de fronteira entre Lábrea e Boca
do Acre (AM), municípios líderes de casos de violência no campo, de acordo com
dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Eles
estão localizados na Amacro,
região que abrange parte dos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, e definida
como uma fronteira de expansão agrícola durante o
governo de Jair Bolsonaro (PL).
“Enquanto
a gente tá testemunhando um decréscimo da violência na Amazônia Legal, lá é o
local que cresce, que tá aumentando”, afirma Afonso Chagas, agente da CPT.
“Em
2023, a Amacro concentrou 10% [179] de todos os conflitos por terra registrados
no país, e 26% de todos os assassinatos ocorridos em contexto de conflitos no
campo”, destaca o relatório de conflitos no campo de 2023 da pastoral.
Dos 31
assassinatos relacionados a conflitos rurais naquele ano no país, oito foram na
Amacro, sendo cinco causados por grileiros, de acordo com a CPT. Em 2021, dos
60 registros de conflitos agrários no estado do Acre, 51 estavam na região da
Amacro.
“Infelizmente,
naquela área, a agressão física, a violência física, os assassinatos, têm sido
uma especialidade dos latifundiários, dos grandes grileiros de terra”, diz
Chagas, sobre a concentração de casos em Lábrea e Boca do Acre. Ele avalia que
a dificuldade de acesso à região é um dos fatores que impulsiona a violência.
Com
mais de 6 milhões de hectares, o equivalente ao tamanho do Sri Lanka, Lábrea é
o décimo maior município do Brasil em extensão territorial. Embora o
acampamento Marielle Franco fique no território de Lábrea, as denúncias contra
Araújo foram registradas pela polícia de Boca do Acre, cuja área urbana fica
mais perto do acampamento, a cerca de 100 quilômetros. Do centro urbano de
Lábrea até a área comunidade, são mais de mil quilômetros.
“Como a
região é de difícil presença do estado, ou seja, tudo está distante, é faixa de
fronteira, as jurisdições não estão suficientemente demarcadas, a impunidade é
uma espécie de cobertura e legitimidade para essas práticas e violência”,
afirma o agente da pastoral.
Outro
atrativo para grileiros na área é a abundância de terras públicas não
destinadas – aquelas que pertencem ao governo estadual ou federal, mas ainda
não foram transformadas em assentamentos, Unidades de Conservação (UCs) ou
outros territórios protegidos, como Terras Indígenas (TIs) e Territórios
Quilombolas (TQ). Sem a devida demarcação, essas áreas ficam em estado de insegurança
jurídica e são atrativas para os invasores.
“É o
epicentro de toda essa violência e justamente corresponde ao outro dado, que é
onde há o maior número de glebas públicas federais não arrecadadas, não
destinadas e ilicitamente apropriadas por grandes grileiros”, explica Chagas.
De
acordo com a CPT, o primeiro conflito na gleba Novo Natal, na área da fazenda
Palotina, foi registrado em 2008.
Preso
após denunciar tortura
Paulo
Sérgio Araújo foi preso após procurar a Polícia Civil de Boca do Acre para denunciar
um caso de violência registrado na comunidade Marielle Franco em fevereiro de
2024, quando quatro moradores da área foram vítimas de agressões e tortura.
Eles
estavam na mata, filmando a extração ilegal de madeira praticada por invasores
da área, quando foram abordados por homens usando coletes à prova de balas. De
acordo com o depoimento de uma das vítimas à Polícia Civil, os agressores “(…)
batiam de ‘facão, de chute, de tapa’, nas costas, na bunda, etc”.
Em
outro trecho do depoimento, as vítimas informam que os agressores disseram que
não iriam matá-los “para que estes contassem para a comunidade, com o intuito
de gerar medo”.
Um
vídeo feito por moradores do acampamento mostra uma das vítimas, um homem
ensanguentado e trêmulo, sendo conduzido por outros até um carro. Dali, ele
seria levado para atendimento médico. “O crime de tortura nunca foi apurado”,
lamenta Araújo.
Ao
procurar a polícia para fazer a denúncia do caso, Araújo soube da investigação
que corria contra ele, e acabou sendo preso.
“Eles
mandaram me prender. Eles não têm base, eles não têm prova”, diz. De acordo com
o depoimento das vítimas, a tortura foi filmada e transmitida para o mandante,
com uso de um roteador Starlink, que permite acesso à internet em áreas
remotas.
Em
agosto de 2024, a casa de Araújo foi incendiada. Poucos dias depois,
outra casa no acampamento também sofreu com incêndio. “Acabou tudo, matou até o
cachorro que tava dentro”, lembra Araújo.
Atualmente,
o líder da comunidade está na casa da sua família, em Rio Branco (AC), onde
cumpre pena em regime aberto e aguarda as próximas decisões da justiça. Ele só
poderá retornar ao acampamento se tiver sua prisão revertida.
¨
‘Conflito agrário só é solucionado quando o trabalhador
conquista direito à terra’, diz ouvidora nacional do MDA
A
ouvidora agrária nacional do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
Claudia Dadico, participou nesta quinta-feira (20) da 22ª Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, no assentamento
Filhos de Sepé, em Viamão (RS). Ao Brasil de Fato, a coordenadora
da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo (CNEVC) comentou
sobre a importância da celebração organizada pelo Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST).
“O
enorme significado da festa se dá não apenas pelo fato, já grandioso, de o MST
ser o maior produtor de arroz orgânico da
América Latina,
mas sobretudo porque após a grande enchente que se abateu sobre
esse estado [em 2024], ficou claro que o modo de produção capitalista é um modo
que precisa ser urgentemente substituído pelo modo de produção orgânico, que
respeita a natureza”, pontuou Dadico.
A
festa, realizada anualmente pelo MST do Rio Grande do Sul, marca o início da
colheita do arroz orgânico no estado. Em 2024, a celebração foi suspensa,
porque a semeadura do grão, que geralmente começa em setembro, precisou ser
adiada em razão de duas enchentes históricas na região metropolitana de Porto
Alegre no ano anterior.
Questionada
sobre medidas de enfrentamento aos conflitos agrários, a coordenadora
reconheceu que “o número de conflitos ainda é muito alto, porque as disputas
territoriais ainda são muito acirradas, com vários componentes como a grilagem
de terras e o conflito armado”. No entanto, ela reforçou que “há um
enfrentamento articulado com vários ministérios que já obteve alguns
resultados, como a diminuição das mortes em 2023 e 2024. E continuamos
trabalhando porque entendemos que o conflito armado só é solucionado quando o
trabalhador conquista o direito à terra”.
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Deputadas de nove partidos pedem responsabilização de
senador Plínio Valério por declaração sobre ‘enforcar’ Marina Silva
Deputadas
de nove legendas ingressaram, nesta quinta-feira (20), com uma representação no
Conselho de Ética do Senado contra o senador Plínio Valério (PSDB-AM) por ter
dado uma declaração sobre a possibilidade de agredir a ministra do Meio Ambiente, Marina
Silva.
Durante participação em evento em Manaus (AM) no último dia 13, ao se referir a
uma audiência da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs na qual a
mandatária foi ouvida por parlamentares, Valério disse “imagine o que é tolerar
Marina Silva por seis horas e dez minutos sem enforcá-la”. A declaração gerou
diversas reações críticas à conduta do tucano, tendo como ápice agora a
denúncia apresentada ao Senado.
Na
denúncia apresentada ao Conselho de Ética, as parlamentares afirmam que o
conteúdo da fala do senador extrapola os limites da imunidade parlamentar,
direito previsto na Constituição Federal para membros do Poder Legislativo. As
signatárias argumentam que a iniciativa de Valério tem “um evidente caráter de
violência de gênero”. “A fala não apenas minimiza e desqualifica a presença da
ministra no cenário político como também reforça um discurso de incitação à
violência contra a mulher, um crime tipificado na legislação brasileira e que
tem sido amplamente combatido, sobretudo no contexto da política nacional”, diz
o texto.
As
deputadas ressaltam ainda que “o uso do termo ‘enforcá-la’ direcionado a uma
mulher em um contexto de discordância política carrega uma carga simbólica
extremamente grave, pois remete à supressão da voz feminina pelo uso da
força, à tentativa de desqualificar e intimidar uma liderança política pelo
simples fato de ser mulher”. O grupo pede que o caso seja avaliado pelo
Conselho de Ética e que o órgão dê “uma resposta institucional firme e
imediata”, tomando as “providências cabíveis frente ao evidente descumprimento
do Código de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal”.
A
denúncia é assinada pelas seguintes deputadas: Benedita da Silva (PT-RJ), Duda
Salabert (PDT-MG), enfermeira Ana Paula (Podemos-CE), Gisela Simona (União
Brasil-MT), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Laura Carneiro (PSD-RJ), Maria Arraes
(Solidariedade-PE), Tabata Amaral (PSB-SP) e Talíria Petroni (Psol-RJ). O
deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE) também endossou o texto, em apoio à
iniciativa.
Senado
Após as
reações à declaração de Valério, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre
(União-AP), disse que o tucano “foi muito infeliz nessa colocação”. “O senador
Plínio Valério não poderia, em um evento, falar que acompanhou uma audiência
pública de uma ministra de Estado por seis horas e que não sabia – em uma fala
irônica ou despretensiosa, não quero julgar – onde [ele] estava [que] não
enforcou a ministra”, continuou Alcolumbre.
Várias
senadoras também criticaram o tucano. Atual procuradora da Mulher no Senado,
Zenaide Maia (PSD-RN) disse repudiar o episódio e chegou a sugerir que Valério se desculpasse
publicamente.
Zenaide afirmou que o parlamentar cometeu um “explícito ato de violência de
gênero contra uma mulher”. “As credenciais da ministra Marina, autoridade
mundial em sustentabilidade, defesa dos recursos naturais e mudanças
climáticas, nem precisariam ser elencadas, porque toda violência contra toda
mulher tem que ser evitada, combatida e, sim, punida. Toda a minha
solidariedade à ministra Marina Silva. Se o senador agrediu uma ministra,
agrediu também a todas nós parlamentares e a todas as brasileiras. Todas nós
somos Marina”, disse a senadora, em nota.
Após os
apelos, Valério disse que a declaração teria sido “uma brincadeira”. “Se você
perguntar ‘você faria de novo?’, não. ‘Mas está arrependido?’ Não, porque eu
não ofendi. Eu passei seis horas e dez minutos tratando-a com decência, como
merece toda mulher”, disse.
Na
quarta (19), após a declaração do senador ganhar ampla repercussão nas redes
sociais, Marina Silva disse que “com a vida dos outros não se brinca”. “Só os
psicopatas são capazes de fazer isso”, emendou a ministra.
Sociedade
civil
O
Observatório do Clima, entidade composta por 133 organizações que atuam na área
ambiental, divulgou nota em que condena a atitude do parlamentar e presta
solidariedade à ministra. “Marina realiza trabalho competente no ministério,
que em dois anos já resultou numa redução de 46% do desmatamento em relação a
2022. É mulher. É negra. É da Amazônia. Isso tudo a torna alvo preferencial de
ataques misóginos e racistas, vindos especialmente de homens que defendem o que
há de mais arcaico e degradante ao meio ambiente, à economia e às relações
sociais do país. Os ataques do senador demonstram a truculência e o desespero
de um parlamentar irrelevante, que não merece o mandato que tem”, diz o
documento.
Fonte: Brasil de Fato

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