sábado, 3 de junho de 2023

STF exclui áreas de comunidades tradicionais em concessões de áreas protegidas

Supremo Tribunal Federal decide, por unanimidade, que as áreas de unidades de conservação que sobrepõem territórios tradicionalmente ocupados por povos e comunidades tradicionais (PCTs) sejam excluídas de processos de concessão para a iniciativa privada. Os ministros e ministras também decidiram pela obrigatoriedade de consulta a todos os PCTs quando as concessões estiverem em áreas próximas às comunidades. O julgamento da Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 7.008 contra lei estadual 16.260/2016 de São Paulo, que autoriza a Fazenda Pública a conceder à iniciativa privada a exploração do turismo e de extração comercial de madeira e de subprodutos florestais em Unidades de Conservação (UCs) estaduais, ocorreu virtualmente na última semana.  

A lei aprovada em 2016 traz impactos aos territórios de povos e comunidades tradicionais (PCTs), especialmente aos sobrepostos por UCs estaduais e, consequentemente, aos seus modos de vida. A ausência de consulta prévia, livre, informada e de boa fé, direito previsto aos povos e comunidades tradicionais pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, foi a principal questão levantada à época da elaboração da lei e estruturou a argumentação sobre a inconstitucionalidade da lei pelas organizações comunitárias neste processo. 

Apesar da importância da ADI 7.008 para os povos e comunidades tradicionais, o Ministério Público Federal entrou com a ação sem considerar todos os segmentos afetados, apenas fazendo breves considerações aos territórios ocupados por populações indígenas. É importante destacar que sete das 25 unidades de conservação listadas para concessões no anexo da lei estão parciais ou totalmente sobrepostas a 18 territórios tradicionais de indígenas, quilombolas, caboclos e caiçaras. Assim, o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR), junto à Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira SP e PR (EAACONE), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Centro e Trabalho Indigenista (CTI), a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba (FCT) e ainda diversas associações comunitárias, ingressou na ação na qualidade de Amicus Curiae e fez recomendações ao Supremo Tribunal Federal (STF) considerando a violação de direitos fundamentais de povos indígenas e comunidades tradicionais. 

Os ministros e ministras acompanharam o voto do relator Luís Roberto Barroso pela procedência parcial do pedido, que questionava a constitucionalidade da lei por não ter havido consulta prévia às comunidades em sua elaboração. Na sessão virtual, que se encerrou no último dia 19 de maio, o plenário deu à lei, por unanimidade, interpretação conforme a Constituição para impedir que as concessões se sobreponham a territórios tradicionalmente ocupados por povos indígenas, comunidades quilombolas, caboclas, caiçaras e outras comunidades tradicionais. Os ministros e ministras do STF também decidiram pela obrigatoriedade da consulta a todos os PCTs quando as concessões estiverem em áreas próximas às comunidades em processos de concessão próximos a seus territórios. Essa é a primeira vez que o STF inclui outras comunidades tradicionais e não apenas indígenas e quilombolas, o que fortalece muito o reconhecimento dessas comunidades como sujeitos de direito na Convenção 169 da OIT, o que ainda é alvo de disputa, mesmo no atual governo.  

Ainda que a lei tenha sido declarada válida, o Tribunal reconhece o direito de povos e comunidades tradicionais em decisão histórica e abre precedentes para que os territórios tradicionais estejam protegidos de concessões de qualquer natureza, independentemente do status da regularização fundiária, não só no estado de São Paulo, mas em todo território nacional. Segundo Fernando Prioste, advogado popular que atua no Instituto Socioambiental, “ainda que a decisão se refira especificamente à aplicação da Lei Estadual 16.260/2016 em São Paulo, a interpretação que o STF conferiu sobre os limites para a concessão de unidades de conservação à iniciativa privada, assim como a obrigação de consulta, pode se aplicar no país todo”. Ele disse ainda que “a aplicação desse entendimento não é automática fora do estado de São Paulo, pois dependerá das particularidades de cada caso concreto, mas o entendimento unânime do STF poderá ser utilizado pelas comunidades de todo o país para barrar iniciativas de concessão que estejam sobrepostas a seus territórios, e obrigar a União, os estados e os municípios a consultar as comunidades indígenas e tradicionais que estiverem nas proximidades das áreas a serem concedidas.” 

·         O Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira 

Em 2016, surpreendidos pelo projeto de lei que deu origem à Lei de Concessões, as principais lideranças do Vale do Ribeira se uniram para fazer enfrentamento à sua aprovação. Foram realizadas diversas reuniões intercomunitárias, audiência pública apoiada pela Defensoria Pública do Estado, além de incidências na Assembleia Legislativa de SP e de representação à Procuradoria Geral da República (PGR). Todos esses esforços, no entanto, se mostraram insuficientes e a lei foi aprovada. No mesmo ano, as comunidades criaram o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira, um espaço de articulação entre os segmentos Guarani Mbyá, quilombola, caiçara e caboclo da região. 

Desde a criação do fórum, as relações entre os PCTs do Vale do Ribeira se estreitaram e cada vez mais comunidades se juntam a esse espaço de articulação afim de se fortalecerem na defesa de seus territórios. O FPCTVR busca garantir a autonomia e os modos de vida dos diferentes segmentos, promover parcerias com instituições comprometidas com os interesses e direitos destas coletividades e se apresenta como território potente de resistência contra os avanços do capitalismo predatório, colonialista e patriarcal.  

“As relações de confiança estabelecidas no Fórum foram fundamentais para a construção desse processo e para a atuação enquanto Amicus Curiae na ADI 7.008”, explica Adriana Lima, ponto focal caiçara no FPCTVR e representante do segmento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Ela reforça que, apesar do avanço, é importante se manter organizado e continuar a resistência frente às pressões nos territórios. 

·         O caso do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira  

Uma das unidades de conservação que está em processo de concessão à iniciativa privada é o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), que sobrepõe os territórios da comunidade quilombola de Bombas e das comunidades caboclas de Ribeirão dos Camargos e Sítio Novo. Apesar do forte impacto aos territórios e modos de vida tradicionais, a Fundação Florestal, órgão ligado à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente responsável pela gestão do parque, não realizou consulta às comunidades afetadas e nem estudo de impacto ambiental antes do início do processo. Segundo Rafaela dos Santos, advogada popular que atua na EAACONE, integrante do FPCTVR, a decisão trouxe alguns impactos aos procedimentos de concessões que já estavam em andamento e reforça, sobretudo, que além de um direito das comunidades, a consulta prévia é um dever do Estado.

Apesar da decisão ser expressa quanto à exclusão de áreas sobrepostas a territórios tradicionais dos processos de concessão independentemente do status de regularização fundiária, ela já tem gerado insegurança a comunidades cujos territórios ainda não foram demarcados. Rafaela destaca que nesses casos há conflitos de interesses que podem prejudicar inclusive o processo de demarcação dos territórios tradicionais e o reconhecimento de áreas de uso das comunidades. Segundo a advogada, em reunião realizada com a comunidade cabocla de Ribeirão dos Camargos no último dia 23 de maio, a Fundação Florestal afirmou que a Casa de Pedra é patrimônio da humanidade e não pertence ao território da comunidade. A Casa de Pedra é um dos locais de interesse para a concessão como atrativo turístico que está dentro do território tradicional caboclo e será objeto de disputa entre a comunidade e a Fundação Florestal. Assim, uma das formas que o Estado pode adotar para tentar violar a lei, é excluir das áreas dos territórios esses atrativos turísticos de seu interesse. Esta seria mais uma expressão do racismo ambiental do Estado, que alega que a comunidade não poderia ter em seu território o patrimônio, sendo que pretende cedê-lo para a iniciativa privada.

 

Ø  O Brasil precisa olhar para a conservação ambiental no Cerrado

 

A notícia do recorde de desmatamento no Cerrado no primeiro quadrimestre deste ano pode parecer apenas mais um capítulo da emergência ambiental que vivemos, aqui e no restante do planeta. A dimensão da destruição, no entanto, é alarmante: 2.206 km², o equivalente a aproximadamente duas vezes o tamanho de Belém (PA). 

Cerrado é responsável pela água de quase 70% das bacias hidrográficas do Brasil. Estamos falando da savana mais rica do planeta, que ocupa 23% do país, abriga 5% da biodiversidade de todo o mundo e possui mais espécies de plantas com flores do que a própria Amazônia. 

Nesse sentido, tão importante quanto os esforços empreendidos para combater o desmatamento na Amazônia, uma ação efetiva para a conservação e a recuperação do Cerrado é fundamental e urgente. Esses dois biomas estão no centro dos esforços necessários para o cumprimento das metas globais de conservação e restauração de ecossistemas, acordadas por quase 200 países na Conferência da Biodiversidade da ONU (COP-15), em dezembro de 2022. 

A Plangea Web, plataforma gratuita desenvolvida pelo Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), pode auxiliar empresas, governos e o terceiro setor na tomada de decisões sobre ações de conservação e restauração. Aplicando, de forma inédita, programação linear inteira ao uso integrado da terra, a plataforma identifica os locais mais importantes para o alcance das metas, considerando redução do risco de extinção das espécies, integridade de ecossistemas, vulnerabilidade de ecorregiões, potencial de sequestro de carbono e custos de oportunidade e de implementação da restauração. 

A plataforma permite visualizar, por exemplo, que o Cerrado e a Amazônia abrigam 11,3% das áreas prioritárias para conservação no mundo, vislumbrando as metas globais da COP 15 para restaurar (Meta 2) e conservar (Meta 3) 30% dos ecossistemas até 2030. 

Com base nessas metas, as ações de conservação realizadas em áreas prioritárias podem reduzir em 65% as ameaças à biodiversidade, o que representa um ganho de 31% comparado a iniciativas desenvolvidas fora das áreas prioritárias. O potencial de dióxido de carbono armazenado chega a 1.600  gigatoneladas, mais que o dobro da quantidade de carbono que seria armazenada em áreas não prioritárias. 

Considerando o avanço da fronteira agrícola como uma das maiores ameaças aos ecossistemas, é necessário atingir um equilíbrio entre produção agrícola e conservação, identificando as áreas com maior aptidão para cada atividade. Nesse sentido, a plataforma do IIS também analisa critérios de minimização de custos, como o custo de oportunidade da terra, que pode variar de US$ 3.201 a US$ 291 por hectare a ser conservado. Isso representa uma economia de até 92% na renda que os proprietários rurais deixariam de abrir mão para garantir a conservação da natureza ao não usar a terra para a produção agropecuária. 

No caso do Cerrado, é possível visualizar que, dentre os 341 municípios que compõem o bioma com alertas de desmatamento desde 2018, 273 estão em áreas globalmente prioritárias para conservação. Os municípios com as maiores taxas de desmatamento neste ano – São Desidério (BA), Alto Parnaíba (MA), Rio Sono (TO), Niquelândia (GO) e Balsas (MA) – aparecem no mapa de áreas prioritárias, indicando uma grande perda não apenas em vegetação natural, mas também em biodiversidade. Já na Amazônia, os alertas de desmatamentos em 288 municípios – do total de 324 – foram em áreas de particular interesse para biodiversidade e mitigação das mudanças climáticas. 

As ameaças à biodiversidade e as alterações climáticas são apenas alguns dos impactos resultantes desse desafio. Afinal, o desmatamento do Cerrado e da Amazônia também extingue as culturas dos povos e comunidades tradicionais da região e a economia local. Portanto, combater o desmatamento e a degradação florestal é um passo estratégico na tomada de decisão de governos no caminho de um desenvolvimento sustentável. 

Contudo, temos que ir além do controle do desmatamento. Muitas áreas agrícolas podem ser melhor utilizadas com técnicas e manejo mais eficientes. Dessa forma, áreas poupadas – principalmente aquelas hoje ocupadas com pastagens degradadas – poderiam ser restauradas, gerando valiosos benefícios para a conservação da biodiversidade e a mitigação das mudanças climáticas. 

O planejamento estratégico do uso da terra deve ser trabalhado em diferentes escalas, pensando em integrar metas de acordos globais com estratégias subnacionais e aprimorando a aplicabilidade e os resultados das intervenções. Afinal, o território é um espaço coletivo que deve gerar benefícios e favorecer a todos, incluindo as pessoas e o restante da natureza. 

 

Fonte: Le Monde

 

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