STF
exclui áreas de comunidades tradicionais em concessões de áreas protegidas
Supremo Tribunal Federal decide, por unanimidade,
que as áreas de unidades de conservação que sobrepõem territórios
tradicionalmente ocupados por povos e comunidades tradicionais (PCTs) sejam
excluídas de processos de concessão para a iniciativa privada. Os ministros e
ministras também decidiram pela obrigatoriedade de consulta a todos os PCTs
quando as concessões estiverem em áreas próximas às comunidades. O julgamento
da Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 7.008 contra lei estadual
16.260/2016 de São Paulo, que autoriza a Fazenda Pública a conceder à
iniciativa privada a exploração do turismo e de extração comercial de madeira e
de subprodutos florestais em Unidades de Conservação (UCs) estaduais, ocorreu
virtualmente na última semana.
A lei aprovada em 2016 traz impactos aos territórios
de povos e comunidades tradicionais (PCTs), especialmente aos sobrepostos por
UCs estaduais e, consequentemente, aos seus modos de vida. A ausência de
consulta prévia, livre, informada e de boa fé, direito previsto aos povos e
comunidades tradicionais pela Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, foi a principal questão
levantada à época da elaboração da lei e estruturou a argumentação sobre a
inconstitucionalidade da lei pelas organizações comunitárias neste
processo.
Apesar da importância da ADI 7.008 para os povos e comunidades
tradicionais, o Ministério Público Federal entrou com a ação sem considerar
todos os segmentos afetados, apenas fazendo breves considerações aos
territórios ocupados por populações indígenas. É importante destacar
que sete das 25 unidades de conservação listadas para concessões no anexo
da lei estão parciais ou totalmente sobrepostas
a 18 territórios tradicionais de indígenas, quilombolas, caboclos e caiçaras. Assim, o Fórum dos Povos e Comunidades
Tradicionais do Vale do Ribeira (FPCTVR), junto à Equipe de Articulação e
Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira SP e PR (EAACONE), o
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Centro e Trabalho Indigenista (CTI),
a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra,
Paraty e Ubatuba (FCT) e ainda diversas associações comunitárias, ingressou na
ação na qualidade de Amicus Curiae e fez recomendações ao
Supremo Tribunal Federal (STF) considerando a violação de direitos fundamentais
de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Os ministros e ministras acompanharam o voto do
relator Luís Roberto Barroso pela procedência parcial do pedido, que
questionava a constitucionalidade da lei por não ter havido consulta prévia às
comunidades em sua elaboração. Na sessão virtual, que se encerrou no último dia
19 de maio, o plenário deu à lei, por unanimidade, interpretação conforme a
Constituição para impedir que as concessões se sobreponham a territórios
tradicionalmente ocupados por povos indígenas, comunidades
quilombolas, caboclas, caiçaras e outras comunidades
tradicionais. Os ministros e ministras do STF também decidiram pela
obrigatoriedade da consulta a todos os PCTs quando as concessões estiverem em
áreas próximas às comunidades em processos de concessão próximos a seus
territórios. Essa é a primeira vez que o STF inclui outras comunidades
tradicionais e não apenas indígenas e quilombolas, o que fortalece muito o
reconhecimento dessas comunidades como sujeitos de direito na Convenção 169 da
OIT, o que ainda é alvo de disputa, mesmo no atual governo.
Ainda que a lei tenha sido declarada válida, o
Tribunal reconhece o direito de povos e comunidades tradicionais em decisão
histórica e abre precedentes para que os territórios tradicionais estejam
protegidos de concessões de qualquer natureza, independentemente do status da
regularização fundiária, não só no estado de São Paulo, mas em todo território
nacional. Segundo Fernando Prioste, advogado popular que atua no Instituto
Socioambiental, “ainda que a decisão se refira especificamente à aplicação da
Lei Estadual 16.260/2016 em São Paulo, a interpretação que o STF conferiu sobre
os limites para a concessão de unidades de conservação à iniciativa privada,
assim como a obrigação de consulta, pode se aplicar no país todo”. Ele disse
ainda que “a aplicação desse entendimento não é automática fora do estado de
São Paulo, pois dependerá das particularidades de cada caso concreto, mas o
entendimento unânime do STF poderá ser utilizado pelas comunidades de todo o
país para barrar iniciativas de concessão que estejam sobrepostas a seus
territórios, e obrigar a União, os estados e os municípios a consultar as
comunidades indígenas e tradicionais que estiverem nas proximidades das áreas a
serem concedidas.”
·
O Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do
Ribeira
Em 2016, surpreendidos pelo projeto de lei que deu
origem à Lei de Concessões, as principais lideranças do Vale do Ribeira se
uniram para fazer enfrentamento à sua aprovação. Foram realizadas diversas
reuniões intercomunitárias, audiência pública apoiada pela Defensoria Pública
do Estado, além de incidências na Assembleia Legislativa de SP e de
representação à Procuradoria Geral da República (PGR). Todos esses esforços, no
entanto, se mostraram insuficientes e a lei foi aprovada. No mesmo ano, as
comunidades criaram o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do
Ribeira, um espaço de articulação entre os segmentos Guarani Mbyá, quilombola,
caiçara e caboclo da região.
Desde a criação do fórum, as relações entre os PCTs
do Vale do Ribeira se estreitaram e cada vez mais comunidades se juntam a esse
espaço de articulação afim de se fortalecerem na defesa de seus territórios. O
FPCTVR busca garantir a autonomia e os modos de vida dos diferentes segmentos,
promover parcerias com instituições comprometidas com os interesses e direitos
destas coletividades e se apresenta como território potente de resistência
contra os avanços do capitalismo predatório, colonialista e
patriarcal.
“As relações de confiança estabelecidas no Fórum
foram fundamentais para a construção desse processo e para a atuação
enquanto Amicus Curiae na ADI 7.008”, explica Adriana Lima,
ponto focal caiçara no FPCTVR e representante do segmento no Conselho Nacional
dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Ela reforça que, apesar do
avanço, é importante se manter organizado e continuar a resistência frente às
pressões nos territórios.
·
O caso do Parque Estadual Turístico do Alto
Ribeira
Uma das unidades de conservação que está em processo
de concessão à iniciativa privada é o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira
(Petar), que sobrepõe os territórios da comunidade quilombola de Bombas e das
comunidades caboclas de Ribeirão dos Camargos e Sítio Novo. Apesar do forte
impacto aos territórios e modos de vida tradicionais, a Fundação Florestal,
órgão ligado à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente responsável pela
gestão do parque, não realizou consulta às comunidades afetadas e nem estudo de
impacto ambiental antes do início do processo. Segundo Rafaela dos Santos,
advogada popular que atua na EAACONE, integrante do FPCTVR, a decisão trouxe
alguns impactos aos procedimentos de concessões que já estavam em andamento e
reforça, sobretudo, que além de um direito das comunidades, a consulta prévia é
um dever do Estado.
Apesar da decisão ser expressa quanto à exclusão de
áreas sobrepostas a territórios tradicionais dos processos de concessão
independentemente do status de regularização
fundiária, ela já tem gerado insegurança a comunidades cujos
territórios ainda não foram demarcados. Rafaela destaca que nesses casos há
conflitos de interesses que podem prejudicar inclusive o processo de demarcação
dos territórios tradicionais e o reconhecimento de áreas de uso das
comunidades. Segundo a advogada, em reunião realizada com a comunidade cabocla
de Ribeirão dos Camargos no último dia 23 de maio, a Fundação Florestal afirmou
que a Casa de Pedra é patrimônio da humanidade e não pertence ao território da
comunidade. A Casa de Pedra é um dos locais de interesse para a concessão como atrativo
turístico que está dentro do território tradicional caboclo e será objeto de
disputa entre a comunidade e a Fundação Florestal. Assim, uma das formas que o
Estado pode adotar para tentar violar a lei, é excluir das áreas dos
territórios esses atrativos turísticos de seu interesse. Esta seria mais uma
expressão do racismo ambiental do Estado, que alega que a comunidade não
poderia ter em seu território o patrimônio, sendo que pretende cedê-lo para a
iniciativa privada.
Ø O Brasil precisa olhar para a conservação ambiental no Cerrado
A notícia do recorde de desmatamento
no Cerrado no primeiro quadrimestre deste ano pode
parecer apenas mais um capítulo da emergência ambiental que vivemos, aqui e no
restante do planeta. A dimensão da destruição, no entanto, é alarmante: 2.206
km², o equivalente a aproximadamente duas vezes o tamanho de Belém (PA).
O Cerrado é responsável pela água de quase 70% das bacias hidrográficas do
Brasil. Estamos falando da savana mais rica do planeta, que ocupa 23% do país,
abriga 5% da biodiversidade de todo o mundo e possui mais espécies de plantas
com flores do que a própria Amazônia.
Nesse sentido, tão importante quanto os esforços
empreendidos para combater o desmatamento na Amazônia, uma ação efetiva para a
conservação e a recuperação do Cerrado é fundamental e urgente. Esses dois
biomas estão no centro dos esforços necessários para o cumprimento das metas
globais de conservação e restauração de ecossistemas, acordadas por quase 200
países na Conferência
da Biodiversidade da ONU (COP-15), em dezembro de
2022.
A Plangea Web, plataforma gratuita desenvolvida
pelo Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), pode auxiliar empresas,
governos e o terceiro setor na tomada de decisões sobre ações de conservação e
restauração. Aplicando, de forma inédita, programação linear inteira ao uso
integrado da terra, a plataforma identifica os locais mais importantes para o
alcance das metas, considerando redução do risco de extinção das espécies,
integridade de ecossistemas, vulnerabilidade de ecorregiões, potencial de
sequestro de carbono e custos de oportunidade e de implementação da
restauração.
A plataforma permite visualizar, por exemplo, que o
Cerrado e a Amazônia abrigam 11,3% das áreas prioritárias para conservação no
mundo, vislumbrando as metas globais da COP 15 para restaurar (Meta 2) e
conservar (Meta 3) 30% dos ecossistemas até 2030.
Com base nessas metas, as ações de conservação
realizadas em áreas prioritárias podem reduzir em 65% as ameaças à
biodiversidade, o que representa um ganho de 31% comparado a iniciativas
desenvolvidas fora das áreas prioritárias. O potencial de dióxido de carbono
armazenado chega a 1.600 gigatoneladas, mais que o dobro da quantidade de
carbono que seria armazenada em áreas não prioritárias.
Considerando o avanço da fronteira agrícola como uma
das maiores ameaças aos ecossistemas, é necessário atingir um equilíbrio entre
produção agrícola e conservação, identificando as áreas com maior aptidão para
cada atividade. Nesse sentido, a plataforma do IIS também analisa critérios de
minimização de custos, como o custo de oportunidade da terra, que pode variar
de US$ 3.201 a US$ 291 por hectare a ser conservado. Isso representa uma
economia de até 92% na renda que os proprietários rurais deixariam de abrir mão
para garantir a conservação da natureza ao não usar a terra para a produção
agropecuária.
No caso do Cerrado, é possível visualizar que,
dentre os 341 municípios que compõem o bioma com alertas de desmatamento desde
2018, 273 estão em áreas globalmente prioritárias para conservação. Os
municípios com as maiores taxas de desmatamento neste ano – São Desidério
(BA), Alto Parnaíba (MA), Rio Sono (TO), Niquelândia (GO) e Balsas (MA) –
aparecem no mapa de áreas prioritárias, indicando uma grande perda não apenas
em vegetação natural, mas também em biodiversidade. Já na Amazônia, os alertas
de desmatamentos em 288 municípios – do total de 324 – foram em áreas
de particular interesse para biodiversidade e mitigação das mudanças
climáticas.
As ameaças à biodiversidade e as alterações
climáticas são apenas alguns dos impactos resultantes desse desafio. Afinal, o
desmatamento do Cerrado e da Amazônia também extingue as
culturas dos povos e comunidades tradicionais da
região e a economia local. Portanto, combater o desmatamento e a degradação
florestal é um passo estratégico na tomada de decisão de governos no caminho de
um desenvolvimento sustentável.
Contudo, temos que ir além do controle do
desmatamento. Muitas áreas agrícolas podem ser melhor utilizadas com técnicas e
manejo mais eficientes. Dessa forma, áreas poupadas – principalmente
aquelas hoje ocupadas com pastagens degradadas – poderiam ser restauradas,
gerando valiosos benefícios para a conservação da biodiversidade e a mitigação
das mudanças climáticas.
O planejamento estratégico do uso da terra deve ser
trabalhado em diferentes escalas, pensando em integrar metas de acordos globais
com estratégias subnacionais e aprimorando a aplicabilidade e os resultados das
intervenções. Afinal, o território é um espaço coletivo que deve gerar
benefícios e favorecer a todos, incluindo as pessoas e o restante da
natureza.
Fonte: Le Monde

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