terça-feira, 27 de junho de 2023

Separar o lixo orgânico pode prevenir leptospirose e salvar vidas

Pode-se dizer que produzir menos lixo ajuda a estender a vida humana no planeta, pois, entre outras coisas, preserva recursos naturais dos quais dependemos para sobreviver. O lixo orgânico, em particular, é responsável pela produção de metano, um dos mais importantes gases causadores do efeito estufa. Mas é possível que a separação do lixo orgânico possa salvar vidas de uma forma mais imediata: com a prevenção de casos de leptospirose

Está longe de ser novidade que resíduos de alimentos no lixo atraem animais como ratos, e que a urina desses animais pode causar leptospirose em humanos. De acordo com o fotojornalista Fabio Teixeira, autor da série fotográfica “Sobrevivendo Entre Sombra e Luz”, trabalhadores anônimos que atuam nos arredores das comunidades da cidade do Rio de Janeiro são vítimas de racismo, violência policial, e ainda sofrem com doenças causadas pelo lixo. “Essas pessoas desempregadas fazem a reciclagem do lixo para encontrar cobre, ferro, alumínio, e brinquedos para conserto e doação. Segundo informações dos recicladores, dois óbitos foram causados por contaminação com leptospirose, uma em novembro e outra em dezembro de 2022.” 

Essa observação de Teixeira é sustentada por pesquisas da área de saúde pública, apesar dos números provavelmente serem subnotificados. A comunidade de trabalhadores da indústria da reciclagem e coleta de lixo é descrita como em constante risco no artigo “Percepção De Qualidade De Vida De Catadores De Materiais Recicláveis”, publicado em 2017, pela revista de enfermagem da Universidade Federal de Pernambuco. As autoras explicam que por “exigir contato permanente com agentes nocivos à saúde, sendo uma das atividades profissionais mais arriscadas”, a “atividade que manipula lixo” é “insalubre em grau máximo”. 

Tais afirmações podem soar óbvias, mas a questão do lixo tem o potencial de afetar toda a população urbana, e não apenas profissionais que manejam resíduos. A Radioagência Nacional, divulgou um alerta em março deste ano sobre o aumento de “casos e de mortes” por leptospirose. Chuvas fortes e enchentes exacerbam o problema ao expor maior contingente da população, tendo como consequência 24 casos e 3 mortes registrados pela Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro nos primeiros dois meses de 2023. 

As propostas para mitigar esse perigo até agora têm sido evitar que crianças brinquem em lugares com água acumulada e tirar o lixo no máximo uma hora antes do caminhão passar. Mas essas soluções não protegem a população como um todo, pois o lixo ainda é levado para algum lugar onde pessoas transitam e se expõem aos riscos, e o potencial recorrente de enchentes em áreas urbanas impossibilita evitar água acumulada. Consumo e descarte consciente de resíduos é a ferramenta mais eficaz nas mãos de indivíduos, e requer uma reconfiguração simples da dinâmica do lar. 

·         “Não jogue sua consciência no lixo” 

consumo consciente começa na compra do produto. Melhor do que reciclar é produzir menos lixo. Para isso, basta dar preferência para produtos sem embalagem, como legumes e frutas de feira. Se houver embalagem, opte pela embalagem compostável, como papel, ou a embalagem reutilizável, como jarras de vidro. Ao descartar plástico, tetrapak e tecido, garanta que eles estejam limpos, sem sobras ou cheiros de comida. É importante que esse lixo esteja sem resíduos ou odores de matéria orgânica, pois eles servem como comida e atraem roedores. 

Separar todos os restos de comida do lixo previne a emissão de metano na atmosfera e evita que ratos sejam atraídos pelo lixo. A questão é o que fazer com essa comida. A compostagem é a melhor maneira de transformar resíduos orgânicos em terra adubada sem produzir metano ou atrair roedores. Mas nem todos têm como compostar em casa. Hortas comunitárias como o AMaravista na região oceânica de Niterói recebe e coleta matéria orgânica de moradores da vizinhança para usar na compostagem, e orienta como fazer a separação desses materiais – evitar colocar carne, por exemplo, e separar cascas de cítricos em seus próprios recipientes. A reconfiguração da cultura de consumo e descarte de resíduos do lar requer pouco tempo e espaço, mas requer interesse e consciência. 

Considerar que alguém manuseará o lixo e pensar no bem-estar dessas pessoas é de imensa importância, além de lembrar que o lixo existirá por décadas depois que nós o jogamos fora. É benéfico para todos que esse lixo possa ser separado, reusado ou reciclado de forma sustentável e saudável, sem poluir a terra ou os oceanos, e sem causar mortes. 

O trabalho de coleta e separação de lixo é imprescindível para a sustentabilidade de práticas de consumo, para a proteção ambiental e para a preservação de recursos naturais como águas despoluídas e terrenos férteis. 

Lidando com o fracasso de políticas públicas 

Quais ações e programas deveriam ser desenvolvidos pelo Estado para garantir o bem-estar da população? A leptospirose é uma doença causada por um fracasso de serviços de saneamento básico, pelo adensamento de municípios a favor do mercado imobiliário, e pelos níveis desumanos de desigualdade social. “A destinação inadequada dos resíduos sólidos está envolvida na determinação do aparecimento de doenças infecciosas” (2017), e a adequação significa não só um destino apropriado, mas também equipamentos adequados e condições dignas de vida para trabalhadores. 

Uma análise interseccional entre direitos trabalhistas, acesso à saúde e educação, saneamento básico, sustentabilidade e ambientalismo permite o desenvolvimento de uma solução holística para esse problema. De acordo com a pesquisa da Revista de enfermagem da UFPE, “a degradação do meio ambiente natural e a geração de resíduos causam comprometimentos da saúde física, transtornos psicológicos e psiquiátricos, e desintegração social.” O bem-estar da população depende de ações que consideram os âmbitos físico, psíquico e social. Portanto, as soluções como esperar para tirar o lixo ou evitar entrar em contato com água acumulada não abordam o problema de saúde pública da leptospirose em sua totalidade. Essa totalidade inclui o consumo familiar até seu método de descarte, diversos fracassos de políticas públicas, práticas comunitárias sustentáveis e uma perspectiva ambientalista. 

·         A história da leptospirose 

A leptospirose foi trazida para as américas com os roedores presentes em navios europeus durante a colonização, e é possível que tenha causado um massacre de populações indígenas. O Artigo “Nova hipótese para a causa da epidemia entre os nativos americanos, Nova Inglaterra, 1616–1619” propõe que se deve considerar “costumes que podem ter sido fundamentais para a quase aniquilação dos nativos americanos, o que facilitou a colonização bem-sucedida” de certas áreas dos Estados Unidos. E que esses “costumes locais continuamente expuseram essa população à infecção hiperendêmica por leptospira”. 

Um jornal acadêmico de Doenças Tropicais Negligenciadas (PLOS Neglected Tropical Diseases), dedicado a “doenças infecciosas que promovem a pobreza”, publicou um artigo sobre a “Carga Global da Leptospirose” em 2015. Nele, os pesquisadores estimam que a leptospirose é um problema sério para países tropicais com poucos recursos, incluindo países na África, “devido aos problemas de diagnóstico e falta de dados”. Dados da Tanzânia e da Amazônia revelam que febre é um sintoma comum e a malária é superdiagnosticada como causa. Isso leva a números substanciais de “estimativa da carga de doença”da leptospirose sendo mal alocados para outras doenças infecciosas, como a malária. 

De acordo com dados publicados pela Sinan dia 3 de março de 2023, houve um aumento de casos de leptospirose no país em 2022, ou uma subnotificação mais drástica do que o usual durante a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021. Poucos dias antes, dia primeiro de março, a Radioagência Nacional reportou 3 mortes em 2023 que não constam nos números da Sinan. É evidente que a magnitude do impacto da leptospirose no Brasil não está sendo precisamente quantificada. 

Por conta do adensamento populacional nas regiões do Rio de Janeiro e de São Paulo, seus números se sobressaem, ao lado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Apesar do Rio apresentar uma “taxa de prevalência inferior à taxa nacional” a cada 100 mil habitantes, surtos de leptospirose na cidade coincidem com as tempestades de verão desde os anos 60, e “áreas com ocorrência de inundações apresentam mais casos”. Essas áreas tendem a ser, como esperado, de baixas condições sanitárias, com comunidades de baixa renda

Em 2020, Mário Martins e Mary Spink publicaram um artigo chamado “A leptospirose humana como doença duplamente negligenciada no Brasil”, onde a seguinte afirmação é feita: “Nossa análise mostra [a] arbitrariedade dos critérios de atribuição de prioridades de saúde e a invisibilidade do perfil populacional da leptospirose humana nos dados oficiais. […] Concluímos que [isso] é relacionado ao fato de que a leptospirose humana afeta uma população que o Estado não tem interesse em manter viva.” 

A leptospirose matou mais brasileiros do que a dengue todos os anos entre 2000 e 2016 – 3 vezes mais – mas recebeu nove vezes menos investimento médico. Há mais casos de dengue, portanto o questionamento está longe de significar uma crítica ao financiamento de tratamento e prevenção dela, mas acadêmicos estão há anos apontando a severa negligência com a qual a leptospirose é abordada institucionalmente, e o paralelo com a dengue destaca isso. 

Quantificar a magnitude da perda de saúde” devido à leptospirose é difícil, mas não há dúvida que casos são subnotificados, mal diagnosticados, e recursos não são suficientemente alocados para pesquisa e prevenção. Desde a chegada da doença em “navios negreiros”, uma população racializada e empobrecida é forçada a viver em condições insalubres, sem recursos apropriados e acesso a políticas públicas decentes. Isso no mínimo deveria nos incentivar a tomar iniciativas em nossas casas e comunidades para ajudar a prevenir casos e mortes causadas pela doença. Seres humanos e o meio ambiente só tem a ganhar com a conscientização da população e de instituições públicas das causas e soluções do problema do lixo como risco à saúde humana. 

 

Fonte: Por Mirna Wabi-Sabi em Le Monde

 

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