Roberto
Amaral: O golpismo, em marcha
A Realpolitik – o “realismo”
governante do mundo e de nossas vidas –, desdenha do sonho para impor-se como a
arte do possível. Assim a humanidade se organizou e chega aos nossos dias.
Regida pelos ditos espíritos pragmáticos, entre os quais se encontram os
vencedores, a política se faz servidora do império das circunstâncias, um arco
conceitual que caminha da Terra ao infinito. Os tempos atuais parecem haver
defenestrado a utopia. O visionário, o antecipador é expulso de cena. Quase
sempre o “realismo” obriga o líder a adequar-se às condições objetivas, ou, nas
palavras de Truffaut, render-se às dificuldades, aos contratempos aos empecilhos
para, impedido de vencer, pelo menos não perder, o que já seria um “ganho”.
Sonhando em escalar o topo, o líder pode, vencido pelas
circunstâncias, conformar-se no repouso do sopé. São correções de rota,
revisão de objetivos e, fundamentalmente, composição de interesses visando à
tomada ou conservação do poder, quase sempre em novos modos e novas medidas.
Assim, a Nova República, na regência de José Sarney, compõe-se com o regime
decaído e enseja a preeminência militar na reconstrução civil.
A história registra tipos e formas as mais variadas
de vitória: a mais citada, certamente é a “vitória de Pirro” na Batalha
de Ásculo, em 279 a.C., contra os romanos, quando o rei comandante, chamado a
comemorar o feito (que custara prejuízos irreparáveis em suas fileiras), teria
dito a seus generais: “Mais uma vitória como esta, e estarei perdido”. Ficou
como símbolo do vencer que equivale à perda. Lembro-me da vitória eleitoral das
forças progressistas em 2014.
Truffaut nos convida à reflexão sobre o sonho (o projeto) submetido às
limitações de sua viabilidade: as dificuldades impostas pela realidade
objetiva.
No campo das esquerdas – considerado seu espectro
mais largo – o peso da realidade muitas vezes se abate de forma a mais
radical, impondo mesmo a renúncia ao sonho. Não se trata, tão-só, de rever
caminhos e construir veredas alternativas, mas de renunciar ao projeto como
fim, abraçando os meios, ocupando as margens do processo histórico,
transformando em metas o que antes não passava de estação de trânsito. Não é
ainda o lado mais doloroso, pois há mesmo, e os fatos são contemporâneos,
aquelas experiências de progresso social que logo sucumbem, como a pedra do
suplício de Sísifo que despencava ladeira abaixo quando chegava ao cume.
No Brasil, o processo social parece dar dois passos
atrás sempre que é dado um passo à frente: o golpe militar de 24 de
agosto fechando no governo Vargas; vinte e um anos de ditadura após o governo
de João Goulart, o golpe parlamentar de 2016 e a ascensão do bolsonarismo como
resposta à experiência dos governos petistas.
Os tempos áridos desestimulam a semeadura. O líder não mais se apega sonho à
realização do sonho, porque o projeto de um bom governo foi reduzido pelas
circunstâncias à pura e simples conquista do poder para a montagem (muitas
vezes a qualquer preço) de qualquer governo, e o desafio passa a ser manter-se
nele (também a qualquer preço), inseguro como o ginete que enfrenta a
resistência da montaria.
As raras emergências de governo populares e mesmo de centro-esquerda, são
decepadas por golpes de Estado, seja militares (Vargas e Jango), seja
parlamentares (Dilma Rousseff). Ou, como atual governo, se veem acossados por
uma conjunção aparentemente irresistível dos mais torpes interesses de classe,
que une no projeto de golpe de Estado permanente o que de mais atrasado o
latifúndio, o escravismo e o racismo, irmãos siameses, puderam produzir. O ano
de 2016 deve ser visto como uma antecipação de 2023.
Nesse quadro, o socialismo se apresenta como
quimera, o revolucionário torna-se reformista, mesmo um governo de
centro-esquerda timidamente mudancista é enfrentado como um risco, e todos
terminam, pelas mais diversas portas, admitindo que, nas circunstâncias, as
únicas mudanças possíveis são aquelas que não alcançam o âmago do poder, porque
a ordem regente é concebida para que o sistema permaneça imune a abalos,
nada obstante as concessões à democracia representativa, sob vigilância legal,
judicial, econômica e militar da classe dominante. Nesse quadro, a esquerda não
pode ter vez; a centro-esquerda reformista, no governo, não pode governar. A
emergência das massas é ameaça, como é ameaça a simples sobrevivência das
populações nativas, quando a disciplina constitucional da demarcação das terras
indígenas é apresentada pelo latifúndio como ameaça à propriedade privada (e
derruída por mera lei ordinária, fabricada por um Congresso reacionário).
Explica-se: como a experiência demonstra, os
detentores dos meios de produção não têm por que abandonar seus recursos de
poder simplesmente porque seu candidato preferencial deixou de ser eleito. Seu
domínio é tal, principalmente sobre os fundamentos da pauta político-econômica,
que a classe dominante nunca perde no voto: quem perde, aqui e ali, são seus
candidatos dal cuore.
Em 2022 impedimos a reeleição do capitão – um,
grande feito que vale comemorar, até pelas dificuldades enfrentadas. Mas não
derrotamos o ideário protofascista; ele está vivo e atuante, na sociedade e na
política, dando as cartas no Congresso, isto é, legislando de forma unilateral,
e co-governando por meio da Câmara dos Deputados, a mais atrasada de quantas o
país conheceu, desde a frustrada constituinte de 1823. Trata-se de uma Casa
hegemonizada pela associação do atraso político com o mais abjeto fisiologismo,
chefiada por um capo (cria do famigerado Eduardo Cunha) que,
em nome da corporação, não se peja em chantagear o governo. Essa é sua história
desde a posse de Lula, e assim deverá ser no curso dos próximos anos. Não era
necessário, mas o grande recado foi dado na votação da Medida Provisória que
reestrutura os ministérios, aprovada na undécima hora, após o Executivo,
acuado, liberar R$ 1 bilhão e setecentos mil em verbas públicas para
parlamentares. A Câmara deu o recado e apresentou seu preço, o governo curvou-se
à chantagem, pagou, e o jagunço das Alagoas entregou o prêmio, como é de regra
entre certos agrupamentos de comportamento antissocial. E, para que mude o
humor da Câmara, são anunciadas “novas pactuações”.
Em entrevista coletiva, mesmo após o pagamento do “resgate”, o chefe da Câmara
reclama da “falta de pragmatismo” do governo assacado.
O 28 de outubro, repito, não enterrou o projeto da
extrema-direita nativa. O fracasso da intentona de 8 de janeiro não encerra a
história. O processo de golpe permanente continua de pé, e conserva intacto o
apoio das forças que deram segurança à aventura protofascista. Repetindo
história conhecida, a inviabilização do governo Lula é o ponto de partida
da guerra em curso. Defender o mandato do presidente e o projeto de
campanha consagrada pelas urnas é, pois, a tarefa de todos os democratas. A
alternativa já conhecemos, e ela deixou triste memória. O caminho já foi
percorrido pelos que souberam fazer a hora: a construção de uma nova maioria
política, o que reclama nova estratégia do governo, dos partidos do campo
popular e do movimento social.
***
Comentário ouvido no cafezinho da Câmara
– Se Lula não tivesse, na última semana, atravessado
a rua para pisar numa casca de banana, mobilizando contra si,
desnecessariamente, os jornalões e seu eleitorado de classe-média, poderia hoje
estar comandando uma frente ampla contra Don Lira, que, com a sua chantagem
desmedida ameaça ministérios que embelezam a imagem do governo, a saber, Meio
Ambiente e Povos Originários. Mas se o curial é fazer do limão uma limonada, às
vezes a politica faz da limonada um limão.
Contrafação
– O ex-PSB, que saiu do último pleito com dez
deputados a menos, e ocupa no atual governo a vice-presidência da República e
dois ministérios, liberou a bancada, na última terça-feira, para que três de
seus nobres deputados votassem tranquilamente ao lado dos grileiros, contra os
indígenas e o governo. Em relação à vizinha Venezuela, contudo, tem de sua
atual chegia a sinalização para embarcar sem pejo no assédio dos meios de
comunicação, esplendidamente humanistas, mas que não condenaram o sequestro de
bens venezuelanos pela Grã-Bretanha no auge da pandemia, e não se mostram
preocupados com a suspensão das sanções imperialistas contra Caracas, com a
mediação do processo de paz, com a resolução da crise migratória e com o
respeito à soberania daquele país. É constrangedor.
Ø O golpe falhou porque o mané e o pica-fumo ficaram esperando pelos
generais. Por Moisés Mendes
O golpe que derrubaria Lula teve manezinhos, manezões,
terroristas, patriotas e até oficiais. Mas não teve a presença ostensiva de um
general. E não existem golpes sem um general.
No depoimento à CPI do Golpe da Câmara Legislativa
do Distrito Federal, o general Augusto Heleno disse como funciona um golpe e
admitiu que aquele do 8 de janeiro não tinha como funcionar.
Faltou o líder, o chefe, a voz de comando, disse
Heleno. E o general acrescentou às categorias listadas lá no início desse texto
a figura do pica-fumo, numa alusão aos soldados e outros subalternos sem
relevância no quartel que picavam o fumo para o cigarro dos superiores.
O pica-fumo é o soldadinho sem condições de aspirar
nada além de cumprir ordens e bajular os oficiais.
Pois o pica-fumo de Heleno equivale ao cabo e ao
soldado, com ou sem jipe, do golpe imaginado por Eduardo Bolsonaro contra o
Supremo.
O pica-fumo surge na CPI quando alguém perguntou
como ele via as articulações sobre o golpe nas conversas vazadas entre o
coronel Mauro Cid e o ex-major Ailton Barros.
Heleno disse:
“Isso é conversa de pica-fumo, típico de pica-fumo.
O cara vai ali, fala um troço, não sei o que e morre ali”.
Não morreu ali porque Ailton Barros, que está preso
por suspeita de envolvimento na fraude da vacina de Bolsonaro, acreditou que
participaria de um golpe, e depois da posse de Lula.
Ele acreditou, o ministro do TCU Augusto Nardes
acreditou. Também acreditaram que haveria um golpe Anderson Torres, mais o
autor até agora misterioso da minuta do golpe e o coronel Elcio Franco.
Os mais de 1.400 que invadiram Brasília acreditavam
no golpe, assim como os acampados em outros quartéis e os que bloquearam
estradas. A Polícia Rodoviária Federal acreditou no golpe.
Heleno disse, logo depois de ouvir na CPI a
reprodução de um telefonema de Nardes a um amigo, em que o ministro alerta
sobre “um movimento muito forte nas casernas”, que aquela fala fazia parte de
“narrativas fantasiosas”.
Eram exageros diante das manifestações normais dos
acampados. “Movimentos pacíficos e ordeiros” ou uma “atitude política em locais
sadios”, foi o que disse o general.
Mas a turma dos pica-fumos queria fazer mais do que
oferecer fumo picado aos generais e acabou reunindo fanfarrões que acreditavam
no blefe de Bolsonaro.
E então tudo só foi morrer naquele dia 8 de janeiro.
Porque os líderes encobertos ficaram empurrando um para o outro, e faltou o
grande chefe.
Bolsonaro estava nos Estados Unidos, Heleno disse
que estava em casa e não sabia de nada, outros generais até agora não disseram
onde se encontravam, e assim o golpe falhou.
Porque faltou um general, o chefe militar. Um só
general, pelo menos. Até a Bolívia, na hora do motim da Polícia Nacional, em
2019, teve um general, um covarde chamado Williams Kaliman, que deu o golpe e
fugiu.
Os manés, os patriotas, os terroristas e os
pica-fumos não tiveram o suporte de um general. Um pica-fumo não existe sem
comando. E eles passaram dias ouvindo recados de que agora vai, não desistam
que no fim dará certo.
Mas na hora do ataque, nada de general. Até o mais
idiota dos manezinhos presos em Brasília sabe que o chefe do golpe não seria
Bolsonaro.
Bolsonaro foi o incitador. Mas o chefe, o verdadeiro
líder, o cara “com objetivos”, como disse Heleno na CPI, deveria ser um
militar. Ele sabe que deveria.
Mas esse militar, entre os tantos que estiveram ao
lado de Bolsonaro até o fim do governo, não apareceu. E os invasores de
Brasília acabaram presos.
Mauro Cid está preso, Anderson Torres esteve preso e
todos os que depredaram o Planalto, o Supremo e o Congresso viraram réus.
Bolsonaro não poderia ter sido o chefe porque é
covarde demais. E os generais sabiam que aquilo não iria dar certo e que nenhum
deles tinha nem mesmo vigor físico para encarar um golpe.
Mas nem tudo morreu ali. O incitador do golpe, os
que foram cúmplices da incitação, os grandes empresários que financiaram o
gabinete do ódio, os que formaram grupos de tios do zap, todos os que tiveram
protagonismo no golpe estão livres e impunes.
E os manés, os terroristas, os patriotas, os
pica-fumos estão condenados a enfrentar inquéritos, processos e desgraças por
muitos anos.
Porque faltou um chefe que pudesse executar, com
método, o golpe incitado por Bolsonaro.
Faltou o chefe, como também faltou alguém com poder,
com farda, que pudesse ter alertado: isso não vai dar certo.
O pica-fumo sabe que a coisa não morreu totalmente
ali. Os generais que não apareceram também sabem.
Fonte: Brasil 247

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