domingo, 4 de junho de 2023

Roberto Amaral: O golpismo, em marcha

Realpolitik – o “realismo” governante do mundo e de nossas vidas –, desdenha do sonho para impor-se como a arte do possível. Assim a humanidade se organizou e chega aos nossos dias. Regida pelos ditos espíritos pragmáticos, entre os quais se encontram os vencedores, a política se faz servidora do império das circunstâncias, um arco conceitual que caminha da Terra ao infinito. Os tempos atuais parecem haver defenestrado a utopia. O visionário, o antecipador é expulso de cena. Quase sempre o “realismo” obriga o líder a adequar-se às condições objetivas, ou, nas palavras de Truffaut, render-se às dificuldades, aos contratempos aos empecilhos para, impedido de vencer, pelo menos não perder, o que já seria um “ganho”.   Sonhando em escalar o topo, o líder pode, vencido  pelas circunstâncias, conformar-se no repouso  do sopé. São correções de rota, revisão de objetivos e, fundamentalmente, composição de interesses visando à tomada ou conservação do poder, quase sempre em novos modos e novas medidas. Assim, a Nova República, na regência de José Sarney, compõe-se com o regime decaído e enseja a preeminência militar na reconstrução civil.

A história registra tipos e formas as mais variadas de vitória:  a mais citada, certamente é a “vitória de Pirro” na Batalha de Ásculo, em 279 a.C., contra os romanos, quando o rei comandante, chamado a comemorar o feito (que custara prejuízos irreparáveis em suas fileiras), teria dito a seus generais: “Mais uma vitória como esta, e estarei perdido”. Ficou como símbolo do vencer que equivale à perda. Lembro-me da vitória eleitoral das forças progressistas em 2014.
Truffaut nos convida à reflexão sobre o sonho (o projeto) submetido às limitações de sua viabilidade: as dificuldades impostas pela realidade objetiva.

No campo das esquerdas – considerado seu espectro  mais largo – o peso da realidade muitas vezes se abate de forma a mais radical, impondo mesmo a renúncia ao sonho. Não se trata, tão-só, de rever caminhos e construir veredas alternativas, mas de renunciar ao projeto como fim, abraçando os meios,  ocupando as margens do processo histórico, transformando em metas o que antes não passava de estação de trânsito. Não é ainda o lado mais doloroso, pois há mesmo, e os fatos são contemporâneos, aquelas experiências de progresso social que logo sucumbem, como a pedra do suplício de Sísifo que despencava ladeira abaixo quando chegava ao cume.

No Brasil, o processo social parece dar dois passos atrás sempre que é dado  um passo à frente: o golpe militar de 24 de agosto fechando no governo Vargas; vinte e um anos de ditadura após o governo de João Goulart, o golpe parlamentar de 2016 e a ascensão do bolsonarismo como resposta à experiência dos governos petistas.
Os tempos áridos desestimulam a semeadura. O líder não mais se apega sonho à realização do sonho, porque o projeto de um bom governo foi reduzido pelas circunstâncias à pura e simples conquista do poder para a montagem (muitas vezes a qualquer preço) de qualquer governo, e o desafio passa a ser manter-se nele (também a qualquer preço), inseguro como o ginete que enfrenta a resistência da montaria.
As raras emergências de governo populares e mesmo de centro-esquerda,  são decepadas por golpes de Estado, seja militares (Vargas e Jango), seja parlamentares (Dilma Rousseff). Ou, como atual governo, se veem acossados por uma conjunção aparentemente irresistível dos mais torpes interesses de classe, que une no projeto de golpe de Estado permanente o que de mais atrasado o latifúndio, o escravismo e o racismo, irmãos siameses, puderam produzir. O ano de 2016 deve ser visto como uma antecipação de 2023.

Nesse quadro, o socialismo se apresenta  como  quimera, o revolucionário torna-se reformista, mesmo um governo de centro-esquerda timidamente mudancista é enfrentado como um risco, e todos terminam, pelas mais diversas portas, admitindo que, nas circunstâncias, as únicas mudanças possíveis são aquelas que não alcançam o âmago do poder, porque a ordem regente é  concebida para que o sistema permaneça imune a abalos, nada obstante as concessões à democracia representativa, sob vigilância legal, judicial, econômica e militar da classe dominante. Nesse quadro, a esquerda não pode ter vez; a centro-esquerda reformista, no governo, não pode governar. A emergência das massas é ameaça, como é ameaça a simples sobrevivência das populações nativas, quando a disciplina constitucional da demarcação das terras indígenas é apresentada pelo latifúndio como ameaça à propriedade privada (e derruída por mera lei ordinária, fabricada por um Congresso reacionário).

Explica-se: como a experiência demonstra, os detentores dos meios de produção não têm por que abandonar seus recursos de poder simplesmente porque seu candidato preferencial deixou de ser eleito. Seu domínio é tal, principalmente sobre os fundamentos da pauta político-econômica, que a classe dominante nunca perde no voto: quem perde, aqui e ali, são seus candidatos dal cuore.

Em 2022 impedimos a reeleição do capitão – um, grande feito que vale comemorar, até pelas dificuldades enfrentadas. Mas não derrotamos o ideário protofascista; ele está vivo e atuante, na sociedade e na política, dando as cartas no Congresso, isto é, legislando de forma unilateral, e co-governando por meio da Câmara dos Deputados, a mais atrasada de quantas o país conheceu, desde a frustrada constituinte de 1823. Trata-se de uma Casa hegemonizada pela associação do atraso político com o mais abjeto fisiologismo, chefiada por um capo (cria do famigerado Eduardo Cunha) que, em nome da corporação, não se peja em chantagear o governo. Essa é sua história desde a posse de Lula, e assim deverá ser no curso dos próximos anos. Não era necessário, mas o grande recado foi dado na votação da Medida Provisória que reestrutura os ministérios, aprovada na undécima hora, após o Executivo, acuado, liberar R$ 1 bilhão e setecentos mil  em verbas públicas para parlamentares. A Câmara deu o recado e apresentou seu preço, o governo curvou-se à chantagem, pagou, e o jagunço das Alagoas entregou o prêmio, como é de regra entre certos agrupamentos de comportamento antissocial. E, para que mude o humor da Câmara, são anunciadas “novas pactuações”.
Em entrevista coletiva, mesmo após o pagamento do “resgate”, o chefe da Câmara reclama da “falta de pragmatismo” do governo assacado.

O 28 de outubro, repito, não enterrou o projeto da extrema-direita nativa. O fracasso da intentona de 8 de janeiro não encerra a história. O processo de golpe permanente continua de pé, e conserva intacto o apoio das forças que deram segurança à aventura protofascista. Repetindo história  conhecida, a inviabilização do governo Lula é o ponto de partida da guerra em curso. Defender o mandato do presidente  e  o projeto de campanha consagrada pelas urnas é, pois, a tarefa de todos os democratas. A alternativa já conhecemos, e ela deixou triste memória. O caminho já foi percorrido pelos que souberam fazer a hora: a construção de uma nova maioria política, o que reclama nova estratégia do governo, dos partidos do campo popular e do movimento social.

***

Comentário ouvido no cafezinho da Câmara 

– Se Lula não tivesse, na última semana, atravessado a rua para pisar numa casca de banana, mobilizando contra si, desnecessariamente, os jornalões e seu eleitorado de classe-média, poderia hoje estar comandando uma frente ampla contra Don Lira, que, com a sua chantagem desmedida ameaça ministérios que embelezam a imagem do governo, a saber, Meio Ambiente e Povos Originários. Mas se o curial é fazer do limão uma limonada, às vezes a politica faz da limonada um limão.

Contrafação

– O ex-PSB, que saiu do último pleito com dez deputados a menos, e ocupa no atual governo a vice-presidência da República e dois ministérios, liberou a bancada, na última terça-feira, para que três de seus nobres deputados votassem tranquilamente ao lado dos grileiros, contra os indígenas e o governo. Em relação à vizinha Venezuela, contudo, tem de sua atual chegia  a sinalização para embarcar sem pejo no assédio dos meios de comunicação, esplendidamente humanistas, mas que não condenaram o sequestro de bens venezuelanos pela Grã-Bretanha no auge da pandemia, e não se mostram preocupados com a suspensão das sanções imperialistas contra Caracas, com a mediação do processo de paz, com a resolução da crise migratória e com o respeito à soberania daquele país. É constrangedor.

 

Ø  O golpe falhou porque o mané e o pica-fumo ficaram esperando pelos generais. Por Moisés Mendes

 

O golpe que derrubaria Lula teve manezinhos, manezões, terroristas, patriotas e até oficiais. Mas não teve a presença ostensiva de um general. E não existem golpes sem um general.

No depoimento à CPI do Golpe da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o general Augusto Heleno disse como funciona um golpe e admitiu que aquele do 8 de janeiro não tinha como funcionar.

Faltou o líder, o chefe, a voz de comando, disse Heleno. E o general acrescentou às categorias listadas lá no início desse texto a figura do pica-fumo, numa alusão aos soldados e outros subalternos sem relevância no quartel que picavam o fumo para o cigarro dos superiores.

O pica-fumo é o soldadinho sem condições de aspirar nada além de cumprir ordens e bajular os oficiais.

Pois o pica-fumo de Heleno equivale ao cabo e ao soldado, com ou sem jipe, do golpe imaginado por Eduardo Bolsonaro contra o Supremo.

O pica-fumo surge na CPI quando alguém perguntou como ele via as articulações sobre o golpe nas conversas vazadas entre o coronel Mauro Cid e o ex-major Ailton Barros.

Heleno disse:

“Isso é conversa de pica-fumo, típico de pica-fumo. O cara vai ali, fala um troço, não sei o que e morre ali”.

Não morreu ali porque Ailton Barros, que está preso por suspeita de envolvimento na fraude da vacina de Bolsonaro, acreditou que participaria de um golpe, e depois da posse de Lula.

Ele acreditou, o ministro do TCU Augusto Nardes acreditou. Também acreditaram que haveria um golpe Anderson Torres, mais o autor até agora misterioso da minuta do golpe e o coronel Elcio Franco.

Os mais de 1.400 que invadiram Brasília acreditavam no golpe, assim como os acampados em outros quartéis e os que bloquearam estradas. A Polícia Rodoviária Federal acreditou no golpe.

Heleno disse, logo depois de ouvir na CPI a reprodução de um telefonema de Nardes a um amigo, em que o ministro alerta sobre “um movimento muito forte nas casernas”, que aquela fala fazia parte de “narrativas fantasiosas”.

Eram exageros diante das manifestações normais dos acampados. “Movimentos pacíficos e ordeiros” ou uma “atitude política em locais sadios”, foi o que disse o general.

Mas a turma dos pica-fumos queria fazer mais do que oferecer fumo picado aos generais e acabou reunindo fanfarrões que acreditavam no blefe de Bolsonaro.

E então tudo só foi morrer naquele dia 8 de janeiro. Porque os líderes encobertos ficaram empurrando um para o outro, e faltou o grande chefe.

Bolsonaro estava nos Estados Unidos, Heleno disse que estava em casa e não sabia de nada, outros generais até agora não disseram onde se encontravam, e assim o golpe falhou.

Porque faltou um general, o chefe militar. Um só general, pelo menos. Até a Bolívia, na hora do motim da Polícia Nacional, em 2019, teve um general, um covarde chamado Williams Kaliman, que deu o golpe e fugiu.

Os manés, os patriotas, os terroristas e os pica-fumos não tiveram o suporte de um general. Um pica-fumo não existe sem comando. E eles passaram dias ouvindo recados de que agora vai, não desistam que no fim dará certo.

Mas na hora do ataque, nada de general. Até o mais idiota dos manezinhos presos em Brasília sabe que o chefe do golpe não seria Bolsonaro.

Bolsonaro foi o incitador. Mas o chefe, o verdadeiro líder, o cara “com objetivos”, como disse Heleno na CPI, deveria ser um militar. Ele sabe que deveria.

Mas esse militar, entre os tantos que estiveram ao lado de Bolsonaro até o fim do governo, não apareceu. E os invasores de Brasília acabaram presos.

Mauro Cid está preso, Anderson Torres esteve preso e todos os que depredaram o Planalto, o Supremo e o Congresso viraram réus.

Bolsonaro não poderia ter sido o chefe porque é covarde demais. E os generais sabiam que aquilo não iria dar certo e que nenhum deles tinha nem mesmo vigor físico para encarar um golpe.

Mas nem tudo morreu ali. O incitador do golpe, os que foram cúmplices da incitação, os grandes empresários que financiaram o gabinete do ódio, os que formaram grupos de tios do zap, todos os que tiveram protagonismo no golpe estão livres e impunes.

E os manés, os terroristas, os patriotas, os pica-fumos estão condenados a enfrentar inquéritos, processos e desgraças por muitos anos.

Porque faltou um chefe que pudesse executar, com método, o golpe incitado por Bolsonaro.

Faltou o chefe, como também faltou alguém com poder, com farda, que pudesse ter alertado: isso não vai dar certo.

O pica-fumo sabe que a coisa não morreu totalmente ali. Os generais que não apareceram também sabem.

 

Fonte: Brasil 247

 

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