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que talento é mais valorizado na vida profissional do que trabalho árduo
Em quase todos os setores, o sucesso é uma
combinação de talento e coragem. Mas, se você ouvir as pessoas mais famosas
descrevendo sua jornada de vida, elas logo começarão a exaltar seu trabalho
árduo, estranhamente reduzindo a importância das suas capacidades inatas.
O inventor Thomas Edison (1847-1931) talvez seja o
mais citado. Ele afirmava que "o gênio é 1% de inspiração e 99% de
transpiração". Mas existem diversas variações deste ponto de vista.
Um exemplo é o conselho da escritora americana
Octavia Butler (1947-2006) aos novos autores: "esqueça o talento. Se você
tiver, ótimo. Use-o. Se não tiver, não importa. Como o hábito é mais confiável
que a inspiração, o aprendizado contínuo é mais confiável do que o talento."
O jogador de futebol português Cristiano Ronaldo
também enfatiza sangue, suor e lágrimas quando o assunto é o seu treinamento.
Questionado sobre os segredos do seu sucesso no campo, ele respondeu que
"o talento sem o trabalho não é nada".
Estas narrativas podem ser benéficas para figuras
reconhecidas que desejam parecer humildes e com os pés no chão. Mas recentes
pesquisas psicológicas demonstram que enfatizar excessivamente a importância do
trabalho duro pode ser contraproducente em muitas situações profissionais. O
motivo é um fenômeno conhecido como "viés da natureza".
Estes estudos indicam que as pessoas têm mais
respeito por quem possui um dom inato do que por aqueles que precisaram lutar
para atingir os seus objetivos.
Acredita-se que o viés da natureza opere abaixo do
nível da consciência e suas consequências podem ser profundamente injustas. No
setor de recursos humanos, por exemplo, os entrevistadores podem preferir um
candidato menos qualificado se acreditarem que suas conquistas surgiram do talento
natural, em comparação com um candidato mais bem sucedido, que demonstre
esforço e determinação.
Felizmente, os cientistas responsáveis pelas
pesquisas têm alguns conselhos sobre como evitar "punições" pelo
nosso trabalho duro.
·
Gênio natural
Na psicologia do consumidor, a expressão "viés
da natureza" costuma descrever nossa preferência por produtos naturais em
lugar de sintéticos.
O escritor Malcolm Gladwell parece ter sido o
primeiro a aplicar este conceito às capacidades humanas, em uma palestra para a Associação Norte-Americana de Psicologia (APA, na sigla em
inglês), em 2002.
Ele disse que "em algum nível fundamental, nós
acreditamos que, quanto mais perto algo estiver do seu estado original, quanto
menos alterado ou adulterado for, mais desejável será".
Gladwell propôs que, segundo esta lógica, alguém que
precisasse trabalhar muito para atingir o sucesso, em essência, teria agido
contra a sua "natureza" e suas conquistas seriam menos respeitadas.
Ele baseou este argumento, em grande parte, em suas
observações e não em evidências experimentais. Mas a professora Chia-Jung Tsay,
da Faculdade de Administração do University College de Londres, no Reino Unido,
colocou a ideia à prova em uma série de estudos.
Tsay realizou seu
primeiro experimento quando estava na Universidade Harvard, nos
Estados Unidos. Ela examinou as percepções das pessoas sobre o talento musical.
Todos os participantes eram músicos treinados que
assistiram a dois vídeos de 20 segundos de uma apresentação dos Três Movimentos
de Petrouchka, de Stravinsky. Os dois trechos foram executados pela pianista
taiwanesa Gwhyneth Chen, mas os participantes foram levados a acreditar que as
gravações eram de dois pianistas diferentes.
Com cada faixa, os participantes receberam um
pequeno texto biográfico enfatizando o talento natural do pianista, ou o
trabalho e a dedicação que o ajudaram a desenvolver a sua arte. E, depois de
ouvirem as gravações, eles precisavam avaliar a capacidade do músico e suas
possibilidades de sucesso futuro e de seguir carreira como músico profissional.
Teoricamente, os participantes deveriam ter
fornecido aos dois trechos a mesma avaliação – afinal, eles estavam ouvindo
partes diferentes da mesma apresentação. Mas Tsay descobriu que as informações
biográficas exerceram notável influência sobre os julgamentos.
Os participantes forneceram avaliações
significativamente mais positivas depois de lerem sobre a genialidade inata do
pianista e deram notas mais baixas quando leram sobre a dedicação do artista à
sua prática diária.
Surpreendentemente, estes julgamentos contradisseram
diretamente as convicções abertamente expressas pelos artistas sobre a
construção do sucesso musical. Quando eles foram questionados diretamente sobre
qual fator era mais importante para o bom desempenho na música, a maioria
escolheu o esforço e não o talento.
Com este resultado, Tsay suspeita que o viés da natureza
possa ser causado pelo processamento inconsciente do cérebro. "Podemos não
ter consciência da desconexão", segundo ela.
·
Nascido para o sucesso
Para descobrir se o viés da natureza pode ser
aplicado a outros domínios além da música, Tsay idealizou um experimento
similar para examinar as opiniões das pessoas em
relação ao sucesso empresarial.
Cada participante recebeu um perfil de um empresário
em ascensão e uma apresentação em áudio de um minuto sobre o seu plano
comercial. As informações foram idênticas em todos os casos, exceto por algumas
sentenças descrevendo como eles chegaram ao seu sucesso atual.
Para metade dos participantes, as informações
biográficas apresentavam a pessoa como um lutador, que trabalhou muito; e, para
a outra metade, o perfil ilustrava uma pessoa com talento inato. E, depois de
ler o perfil, os participantes avaliaram os empresários e suas propostas
comerciais em diversas escalas.
Tsay encontrou o mesmo tipo de julgamento que ela
havia visto nas avaliações da capacidade musical. Em média, os participantes
tinham mais respeito pelas conquistas naturais e avaliaram melhor o plano
comercial daquele empresário.
E a experiência dos participantes pouco reduziu o
preconceito. Na verdade, o viés era mais forte entre as pessoas com maior
experiência empresarial, como entre aquelas que já haviam fundado ou investido
em empresas.
Esta influência na tomada de decisões pode ter um
custo significativo.
Questionados a comparar diretamente diversos
candidatos, os participantes do estudo de Tsay estavam dispostos a investir em
empresários com avaliações mais baixas em testes de inteligência (em 30 pontos
de QI), menos anos de experiência em liderança e capital acumulado US$ 31 mil
(cerca de R$ 157 mil) menor – simplesmente porque foram informados que eles
atingiram o sucesso com seu talento natural.
O viés da natureza surge muito cedo. Trabalhando com
colegas da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong, na China, Tsay
concluiu que crianças
com até cinco anos de idade demonstram maior respeito pelas pessoas com
capacidades naturais.
Neste estudo, os participantes ouviram a história de
duas pessoas que descreveram a facilidade com que eles faziam amigos. Eles
instintivamente preferiram a pessoa que era naturalmente popular, em comparação
com aquela que havia trabalhado muito para estabelecer suas habilidades
sociais.
"O viés da natureza é muito generalizado em
todos os setores, idades e culturas", afirma a professora.
·
Preocupe-se com a sua mentalidade
As pesquisas de Tsay sobre o viés da natureza
coincidem com uma grande
quantidade de estudos psicológicos sobre como
as nossas crenças pessoais moldam a nossa educação e desenvolvimento
profissional.
Segundo estes estudos, pessoas com "mentalidade
fixa" acreditam que suas capacidades próprias são imutáveis. Já as pessoas
com "mentalidade
de crescimento" tendem a observar suas capacidades como sendo
maleáveis.
De forma geral, pessoas com mentalidade de
crescimento são mais resilientes em relação aos fracassos e mais dispostas a
perseverar rumo aos seus objetivos, o que faz com que elas atinjam melhores
resultados.
Considerando estas pesquisas, muitas escolas e
empresas começaram a participar de iniciativas para desenvolver a mentalidade
de crescimento entre estudantes e funcionários.
"A maior parte das pesquisas existentes sobre a
mentalidade examina o que eu penso, como aquilo forma a minha reação a
diferentes situações e qual é o meu desempenho resultante", afirma Aneeta
Rattan, professora de ciência das organizações da London Business School.
"O que eu adoro no trabalho de Chia-Jung Tsay é
que ela realmente muda essa perspectiva e examina como estamos avaliando as
outras pessoas", segundo ela.
Rattan suspeita que os líderes podem elogiar a
mentalidade do crescimento, mas ainda exibir preferências inconscientes por
pessoas que parecem ter talentos inatos. Ela espera que os gerentes agora
possam tentar levar este ponto em consideração na hora de tomar decisões.
"Precisamos nos perceber e perceber os demais
quando caímos nesse viés", segundo ela.
·
Perspectivas equilibradas
Individualmente, a existência do viés da natureza
pode influenciar a forma como nos apresentamos aos demais, para que nossas
conquistas não sejam indevidamente menosprezadas.
Na convenção anual da Sociedade de Psicologia Social
e da Personalidade dos Estados Unidos em 2023, Clarissa Cortland – colega de
Tsay – apresentou os resultados de uma pesquisa que examinou o comportamento de
seis mil estudantes universitários que trabalhavam como líderes empresariais.
Questionados a descrever sua trajetória
profissional, cerca de 80% dos participantes concentraram-se nos seus esforços
e disciplina, não na sua capacidade natural. Este índice foi ainda maior quando
eles precisaram imaginar a descrição da sua trajetória para outras pessoas.
"Existe uma mudança instintiva para ‘descrever
um lutador’ quando os motivos da autoapresentação são altos", afirma
Cortland.
Uma das razões pode ser porque a maioria das pessoas
quer evitar parecer arrogante e acredita que concentrar-se no trabalho árduo e
não no talento natural pode fazer com que elas pareçam ter mais os pés no chão.
A arrogância é um atributo indesejável. E, durante
uma entrevista de emprego, por exemplo, ela pode indicar que você talvez venha
a ser desagradável com o resto da equipe e ter dificuldades para respeitar
ordens.
Seguindo esta linha, as pesquisas da professora
Christina Brown, da Universidade Arcadia, na Pensilvânia (Estados Unidos),
demonstraram que certos
fatores de contexto podem reduzir o viés.
Embora se possa dar preferência para os gênios
naturais em cargos que precisam de uma estrela isolada que brilhe, Brown
concluiu que as pessoas costumam preferir lutadores para tarefas que exigem
cooperação.
Atualmente, a maior parte das carreiras irá precisar
de um certo nível de trabalho em equipe – e, se enfatizarmos unicamente nossa
capacidade inata, corremos o risco de parecer uma diva com dificuldade para
colaborar com os demais.
Por isso, a solução mais inteligente pode ser um
quadro mais sutil dos nossos sucessos, sem nos concentrarmos exclusivamente em
nenhum dos dois elementos.
Em uma entrevista de emprego, por exemplo, podemos
nos concentrar em discutir as áreas que exigiram maior dedicação e também
relacionar as capacidades inatas que nos ajudaram a seguir adiante.
"É possível que tenhamos apenas enfatizado
todas as horas de esforço e formação", afirma Tsay. "Mas ainda
existem coisas que provavelmente vêm mais facilmente para nós e está certo
mencioná-las para equilibrar a narrativa."
O gênio pode ser o resultado de 1% de inspiração
mais 99% de transpiração, como sugeriu Edison, ou uma soma de 50:50. De qualquer
forma, você pode reconhecer como as duas características levaram você ao
sucesso. Só então, você irá ganhar o respeito que merece.
Fonte: BBC Worklife

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