Político
ocupa terra indígena dos Kayabi há 30 anos
O vice-prefeito de Sinop, uma cidade cercada por
gado, soja e milho no norte de Mato Grosso, anda irritado com o prefeito do
município. Dalton Benoni Martini (PTB), 65, foi eleito em 2020 para ser o
número dois da prefeitura, depois de exercer por quatro vezes o mandato de
vereador. Prefeito e vice-prefeito brigaram e, agora, são inimigos políticos.
“Tenho paixão por essa cidade. A gente ia fazer uma
administração a quatro mãos. Estamos rompidos”, diz Martini, um bolsonarista
que tentou se eleger deputado federal em 2022, sem êxito.
A briga com o prefeito, porém, está longe de ser o
principal embate travado por Martini, gaúcho que vive em Sinop desde 1978 e que
ganhou dinheiro com o agronegócio – especialmente com pecuária e plantação de
soja e milho – e com a exploração de madeira.
O empresário ocupou terras produtivas a pouco mais
de 200 km de Sinop, no início da década de 1990, e desde então se dedica a
negar a existência dos indígenas kawaiwetes –os Kayabis, como são conhecidos–
da Terra Indígena (TI) Batelão, onde estão as fazendas de Martini.
“Nunca teve indígena lá”, afirma o vice-prefeito,
que se apossou de 10 mil hectares do território tradicional para criar gado,
plantar soja e milho e explorar madeira numa área da Amazônia que já foi
preservada um dia. “Índio não quer mais terra. Quer viver como branco.”
As palavras de Martini fazem parte de uma ampla
estratégia – política, judicial e econômica – para apagar a história dos
kayabis. Dessa estratégia dependem dezenas de fazendeiros que, como o
vice-prefeito de Sinop, lucram com a exploração do território tradicional dos
indígenas. O que o político diz não encontra eco na realidade.
A TI Batelão, com 117 mil hectares, é considerada o
berço dos kayabis. Já na década de 1940, o governo de Mato Grosso passou a
vender ilegalmente pedaços de terra a quem quisesse explorar a área.
Na década de 1960, em razão de sucessivas invasões e
conflitos, principalmente com seringueiros, uma parcela expressiva dos kayabis
foi levada pelos irmãos sertanistas Villas-Bôas ao Território Indígena do
Xingu, sem consenso e sem aceitação por boa parte das famílias.
Alguns resistiram e permaneceram em terras próximas do
Batelão, usadas pelos indígenas para caça, pesca e coleta de material para
confecção de arco, flecha e peneira. Muitos fizeram o movimento de volta, do
Xingu a essas áreas, que foram demarcadas como uma terra indígena.
Nas décadas seguintes, produtores rurais como
Martini passaram a ocupar e a desmatar o Batelão, para pastagem, gado,
monocultura e exploração de madeira. São mais de 20, segundo o vice-prefeito.
Quando conversou com Martini, em seu escritório em
Sinop, a Folha o questionou se o que ele fez foi grilagem, ou seja, se avançou
sobre áreas que não eram suas para, com base em uma ocupação e em documentos
ilegais, garantir a propriedade dos terrenos. Martini nega.
“Não é grilagem porque essas áreas foram vendidas
pelo governo de Mato Grosso, nas décadas de 50 e 60. As minhas, o governo doou
para uns belgas”, afirma.
“Cheguei, ocupei e coloquei gado”, diz Martini.
“Comprei do seu Anísio”, completa, sem detalhar quem seria o antigo ocupante da
terra.
Depois, o produtor rural entrou na Justiça como uma
ação de usucapião, com o propósito de comprovar que “estava lá” e que comprou a
área há 30 anos. “Os belgas foram localizados no processo. Eu não tinha o
título, agora tenho a escritura definitiva.”
Enquanto grandes fazendeiros avançavam cada vez mais
pelo território, a ponto de já não existirem mais aldeias e indígenas na terra
Batelão, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) passou a elaborar
estudos para a demarcação da área.
Em 2007, o Ministério da Justiça analisou a proposta
apresentada pela Funai, considerou que o território era “tradicionalmente
ocupado pelo grupo indígena kayabi” e declarou a posse permanente da terra
indígena pelos kayabis, uma etapa que antecede a demarcação definitiva, cuja
homologação fica a cargo do presidente da República.
No ano seguinte, o ministério recuou do ato, em
atendimento a uma decisão judicial. Os fazendeiros que ocupam o Batelão
ingressaram na Justiça para barrar a demarcação.
Em 2016, uma decisão da Justiça Federal em Mato
Grosso reconheceu a terra indígena como sendo dos kayabis. Novos recursos foram
apresentados ao TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, que apontou o
direito de os fazendeiros fazerem novas perícias. O impasse jurídico permanece.
“Os kayabis requerem essa área, como memória, mas a perícia
está inconclusiva até agora”, afirma o vice-prefeito. “Enquanto isso, tenho
dificuldade de vender meus produtos para trades e frigoríficos, de obter
financiamento, de georreferenciar a área. No Sigef [Sistema de Gestão
Fundiária, do Incra], aparece como terra indígena. Quem quer comprar de uma
terra indígena?”
De Sinop, a Folha foi até a TI Batelão, a poucos
quilômetros do município de Tabaporã (MT) –as cidades são separadas por cerca
de 200 km.
A reportagem também foi à TI Apiaká-Kayabi, onde
estão os kayabis mais próximos do Batelão. O território é demarcado e fica a 50
km de Juara (MT), que por sua vez está a 170 km de Tabaporã.
No Batelão, vastas plantações de soja e milho ocupam
cada vez mais espaço. O mesmo ocorre com pastagem e gado. Há sinais de
exploração de madeira, com placas indicando manejo para essa atividade.
Martini fixou pelo menos duas placas na área. Uma
diz: “Fazenda Nova Andradina (Tucandira). Prop. Dalton Benoni Martini.” A outra
aponta: “Fazenda Arara Azul. Proprietário: Dalton B. Martini.” Na primeira
fazenda, há casas simples de madeira para caseiros e grandes áreas com gado. Na
segunda, a ocupação parece ser mais recente.
As áreas verdes encolhem no mesmo ritmo do avanço
das plantações, do gado e da exploração de madeira. Em 2010, Martini chegou a
ser preso em operação policial contra exploração ilegal de madeira, como ele
mesmo conta. Segundo o vice-prefeito, a atividade era legal. Ele continua
explorando madeira na área da terra indígena, conforme afirmou à reportagem.
Na terra Apiaká-Kayabi, cujas aldeias margeiam o rio
dos Peixes, estão indígenas que dizem não esquecer o Batelão. O território é
uma mancha verde na região de Juara, cidade que segue a mesma lógica de
monocultura e gado presente em municípios como Sinop, Sorriso e Tabaporã.
Na aldeia Tatuí, a Folha conversou com três
indígenas que dizem ter nascido no Batelão –e que passaram por processos de
diáspora que estão no cerne do esvaziamento da terra indígena.
Canisio Kayabi, 73, guarda numa pastinha amarela a
reprodução ampliada de fotos do cacique do Batelão levado ao território do
Xingu pelos irmãos Villas-Bôas; fotos de parentes do cacique que tiveram o
mesmo destino; e mapas feitos à mão da terra indígena, com a localização de
aldeias, a partir da memória e de visitas posteriores ao lugar.
“Fui para o [território do] Xingu entre 1965 e 1966.
Havia conflito com seringueiro. Fui com 15 seguranças dos Villas-Bôas”, diz
Canisio, que prefere falar na língua-mãe. A tradução foi feita por um de seus
filhos, Kawayp Katu Kayabi, 37, presidente da Associação Indígena Kawaiwete.
“Eu gostava do Xingu, mas queria vir para cá. Eu
nasci aqui”, afirma. “Batelão ficou vazio, mas quem é de lá nunca esqueceu.”
Os 12 filhos de Canisio nasceram na reserva do
Xingu. Quatro permanecem no território, oito se mudaram para a terra
Apiaká-Kayabi, onde ampliaram suas famílias.
A maioria vive da coleta de castanha, pesca, caça,
produção de farinha e pequenas plantações de banana, com comercialização de
excedentes. Há invasores atrás de madeira, e relatos de conivência por parte de
alguns indígenas.
Para trás ficaram os ancestrais, segundo Canisio.
Estão enterrados na terra indígena seus avós, bisavós e tataravós.
Canisio já esteve com Martini, na aldeia onde mora
desde que deixou o Xingu. “Ele fala bonito. Tenta levar na conversa dele, que
índio não quer mais terra. Mas aqui ninguém esqueceu.”
Kawit Kayabi, 78, cunhado de Canisio, afirma o
mesmo: “Não esqueci a área [do Batelão]. Não me acostumei no Xingu. Eu ficava
só pensando. Lá não tinha o material que a gente precisa para fazer arco,
flecha, peneira.”
O pai e o avô de Luciano Tamaná Kayabi, que tem mais
de 70 anos, estão enterrados no Batelão, segundo ele.
“Naquele tempo, havia espaço livre para fazer roça.
A gente ia mudando”, diz Luciano. “Os próprios fazendeiros emprestavam avião
para levar os índios. A FAB [Força Aérea Brasileira] também levou, tirou o
índio do lugar dele. Muitos não queriam ir, com dó de deixar as roças e os
parentes enterrados.”
O indígena afirma não ser justa a premissa de que é
preciso esperar uma decisão definitiva da Justiça. “Dizem que é para esperar a
Justiça, mas são os fazendeiros que estão lá, não somos nós. Tenho esperança de
recuperar o Batelão. O lugar sempre foi nosso, nosso povo está lá.”
Por duas vezes, grupos de kayabis tentaram ingressar
na terra Batelão. Foram barrados por fazendeiros e seguranças. “Se passarem,
vão levar chumbo na cara”, ouviram alguns indígenas numa das tentativas.
Martini, o vice-prefeito de Sinop, disse que a
Justiça já reconheceu boa-fé na ocupação da área. “Tem bastante área preservada
ainda. E desde 2006 não tem autorização para desmatamento, por causa dessa
questão de terra indígena.”
O avanço de grandes produtores rurais por áreas
preservadas da Amazônia, a exemplo do político de Sinop, foi detectado pelo
Simex (Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira), que usa imagens de
satélite para mapear locais com esse tipo de atividade. A análise é feita pelas
organizações Imazon, Imaflora, Idesam e ICV (Instituto Centro de Vida).
Os dados mais recentes do sistema, de 2021, apontam
para ao menos quatro casos de extração não autorizada de madeira em Mato Grosso
entre agosto de 2020 e julho de 2021, envolvendo áreas protegidas e indícios de
grilagem.
Sobre essas áreas em que não poderia haver retirada
de madeira, por serem estações ecológicas e terras indígenas, foram registrados
CARs (Cadastros Ambientais Rurais), documentos necessários para a regularização
de terras no Brasil. O registro de CARs por grileiros é frequente, uma vez que
o dispositivo depende de autodeclaração na etapa inicial.
O banco de dados da pesquisa registra dois casos de
produtores de Sorriso, cidade a 85 km de Sinop. Há indícios de exploração
ilegal de madeira na Estação Ecológica do Rio Roosevelt, em Colniza (MT), em
áreas coincidentes com as indicadas em CARs feitos em nome dos dois
empresários.
Um é Fernando Pozzobon, integrante do conselho do
Sindicato Rural de Sorriso e presidente da cooperativa dos produtores de
algodão da cidade. “A área foi adquirida para regularização ambiental. Vou
pedir para averiguarem se essa exploração de madeira atinge a propriedade”,
disse.
O outro é Darcy Ferrarin, também integrante de
sindicato e grande produtor de algodão, soja e gado nelore. Procurado pela
reportagem, disse estar de férias em Santa Catarina e que não sabia sobre o que
se tratava.
No Batelão, o ímpeto é ocupar áreas ainda não
exploradas, também com exploração de madeira. Na última vez em que esteve na
terra indígena, Canisio Kayabi disse ter ouvido de um fazendeiro: “Vou tirar
toda a madeira. Vou derrubar e ocupar”. Era uma maneira de reafirmar ao kayabi
a ideia de não pertencimento do indígena ao lugar.
Em abril, lideranças kayabis foram a Brasília para
uma reunião com a presidente da Funai, Joenia Wapichana. Pediram pressa na
demarcação da terra Batelão.
Canisio tem esperança de voltar à terra indígena
onde nasceu. “Quem está falando a verdade? Somos nós ou são os fazendeiros?”
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O vice-prefeito, o agronegócio e a terra dos kayabis
A cidade no norte de Mato Grosso vive em torno do
agronegócio. É uma característica da região. A vizinha Sorriso, por exemplo,
tem mais de 1.600 fazendas.
O vice-prefeito de Sinop é Dalton Benoni Martini
(PTB). Ele se apossou de áreas na Terra Indígena Batelão, a 230 km de Sinop, e
entrou com ação de usucapião na Justiça. Produz soja e milho e cria gado.
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O Terra Indígena Batelão
Território de 117 mil hectares, não demarcado, a
pouco mais de 200 km de Sinop. A cidade mais próxima é Tabaporã (MT), que fica
a poucos quilômetros da área.
Em 2007, o Ministério da Justiça publicou portaria
com declaração de posse da terra pelos indígenas kawaiwetes (ou kayabis, como
são conhecidos). A posse é uma etapa que antecede a demarcação.
No território, estão cerca de 20 fazendeiros, como
Martini, que contestam na Justiça eventual demarcação. As fazendas se estendem
por longos domínios, com gado, soja e milho. Já não há indígenas no lugar. Os
kayabis dizem que o Batelão é o seu lugar de origem.
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Terra Indígena Apiaká-Kayabi
A Terra Indígena Apiaká-Kayabi tem aldeias dos povos
kayabi, apiaká e munduruku, além de indígenas isolados. A distância para o
Batelão é de 155 km. A cidade mais próxima, a 50 km, é Juara (MT).
Apiaká-Kayabi é o território tradicional mais
próximo da terra indígena hoje ocupada por grandes fazendeiros. O território
tem cerca de 600 kayabis, inclusive remanescentes do Batelão.
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Território Indígena do Xingu
O Território Indígena do Xingu foi o destino de
famílias kayabis retiradas da terra Batelão. Há cerca de 800 indígenas dessa
etnia no Xingu. Eles foram levados ao lugar em expedições dos irmãos
Villas-Bôas, em circunstâncias de conflito, especialmente com seringueiros. A
transferência mais expressiva se deu em 1966.
Não houve consenso sobre essa retirada, nem
adaptação de uma parcela expressiva dos indígenas, que buscaram viver em
aldeias da Terra Indígena Apiaká-Kayabi e da Terra Indígena Kayabi, esta última
já na divisa de Mato Grosso e Pará. Os indígenas falam em retornar ao Batelão.
Fonte: Amazônia Real

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