domingo, 4 de junho de 2023

Marco temporal: o tempo do genocídio indígena

No início, eles foram obrigados a falar em português, foram obrigados a escrever em português e foram obrigados a compreender e se comportarem com a imposição de costumes, crenças e significados de palavras com uma visão cosmológica que não lhes pertencia.

Os colonizadores chegaram e ignoraram sua organização social, cultural e política dos nativos da região, pois não correspondia ao que definiram como civilização. O Brasil assim foi moldado, estruturado e “organizado”, foram oferecidas terras a estrangeiros para que viessem e introduzissem seus modelos de sociedades já “civilizadas”, e assim foi construído o país que foi dado o nome de Brasil.

Com sua arrogância, chegaram rapidamente à conclusão de que não haviam instituições neste nosso país – nos chamaram de autóctones, incapacitados à civilização colonizadora, dissolvente. E é essa mesma presunção que nos arrastou até o fatídico marco temporal, no dia 30 de maio de 2023, dia da morte decretada dos povos tradicionais, dos grupos isolados (ainda mais rapidamente), dos povos da floresta – que a habitam há milênios.

A mesma desfaçatez de quem votou contra o Brasil, impondo a nossos parentes a prova de sua existência, foi-nos imposta desde a formação da primeira institucionalidade brasileira: da Igreja catequista ao Estado senhorial, violador, matador.

Senhoras e senhores, vejam que título fabuloso, mais revelador do que esse exemplo não deve haver: O Estado do Direito entre os autóctones do Brasil, de Carl Von Martius.

Ao contrário da imposição de se sofrer o genocídio, desde nossa “descoberta”, é o sentido de comunidade pataxó vivida no Território Indígena Barra Velha, Aldeia mãe dos Pataxós. A pesquisa de campo etnográfica, decolonial, construída coletivamente permite viver esses saberes; aprende-se o sentido do coletivo, a coletividade, o sentido da união, da reunião, do “muka mukau” (unir para reunir) para resistir, insistir e principalmente existir.

A experiência da “vida coletiva” vai muito além da barreira do concordar ou do discordar, pois coletividade transborda respeito, coletividade visa o bem de todos, é uma luta pelo mundo, uma luta pela sobrevivência, uma luta pela natureza, pelos animais, pelos seres humanos; na verdade, é uma luta e um conceito que deveria abranger a todos, sem preconceito, racismo ou segregações.

Coletividade, na cosmologia indígena, significa a união, a reunião, em prol de TODOS, incluindo, natureza, seres humanos e tudo mais que envolve o planeta Terra. Talvez possamos então encontrar uma nova palavra para ressignificar a palavra coletividade dentro da cosmologia indígena, porque a coletividade da maneira que conhecemos é segregadora, racista, preconceituosa e vai contra o sentido de união.

Não teria como escrever um texto sobre o marco temporal, sem o Nós. O Nós aqui representa diferentes campos de conhecimento, acadêmicos, da educação, do direito, da antropologia, das diversas experiências de vida. Mas, o marco temporal marca o nó górdio, o limite extremo, a última fronteira, entre a vida e a morte dos nossos parentes indígenas e, obviamente, da nossa.

Não há Brasil sem os povos indígenas, não há Brasil sem a miscigenação – estupro coletivo, na verdade, das mulheres negras e indígenas pelo homem branco. Sem segurança efetiva aos povos indígenas, não haverá futuro, como não há segurança de que se mantenha vivo o presente.

É inadmissível o mundo, o Brasil, não dar a oportunidade a nossas crianças de entenderem e compreenderem o mundo, o Universo como um todo; é absurdamente inconstitucional não dar o direito às nossas crianças de compreenderem a cosmologia indígena.

O marco temporal não diz somente respeito às populações indígenas do nosso então chamado Brasil, o marco temporal não prejudica somente indígenas. A luta dos indígenas é por todos nós, a luta diária pela preservação da natureza, a luta diária pelo respeito e “muka mukau” (a união para reunião).

Hoje precisamos de muitos Nós para curarmos a nós mesmos, herdeiros dos colonizadores incivilizados, precisamos da reunião e da união, da coletividade com o sentido mais profundo da palavra, para curarmos as dificuldades, para estabelecermos outros entrelaçamentos dos fios, das cordas, dos cordões que, neste momento, nos enforcam coletivamente. Devemos nos unir e não nos distanciar, precisamos desfazer os nós de desunião, de preconceito, de racismo.

Hoje, após a aprovação do marco temporal, deságua sobre Nós a perda de significados, vivemos o luto, olhamos incrédulos a legalização do genocídio indígena. Até quando o país ficará entregue, feliz, em ver a morte de crianças indígenas por fome, sem casa, mortos a tiros ou gravemente adoentados (até morrerem) em razão da violência do colonizador embrutecido que não nos deixa apenas viver?

O marco temporal facilita que terras que pertenciam aos indígenas, que protegiam física e culturalmente povos originários, possam ser privatizadas e comercializadas e, claro que, esta comercialização é uma resposta aos interesses do setor ruralista, dos madeireiros, do agronegócio que polui rios, mata a fauna e a flora, que traz mercúrio e veneno para nossa comida.

O quanto você lutaria para deixar ao seu filho sua herança? Casa, carro, dinheiro, bens materiais, isto é herança para maior parte das sociedades. Sabe o que os povos estão tentando deixar de herança para SEUS filhos e também para seus próprios? A vida!

Os rios, os mares, a mata, a biodiversidade, o planeta que hoje luta para sobreviver. Nossos1 filhos, nossos netos, nosso planeta não se nutrirão de bens materiais, de casas, de prédios, de dinheiro. Está na hora de lutarmos para desatarmos os nós através de Nós mesmos.

Não há como não citar o “O chamado pela Terra” apresentado pela articulação nacional das mulheres indígenas guerreiras da ancestralidade (ANMIGA), que é uma articulação de mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil, com saberes, tradições, lutas que se somam e convergem, e une mulheres mobilizadas pela garantia do direito à vida dos povos indígenas:

“Vivemos tempos duros, tempos de extremismo conservador, de ataques brutais aos direitos, de desmonte da educação, da saúde, da ciência e da proteção ambiental; em que fome, desemprego, violência e carestia avançam. Tempos em que querem silenciar os tambores dos terreiros e o som dos maracás para que os únicos sons audíveis sejam os das motosserras, das balas e do desalento”. 

“Tempos em que cada pedaço de floresta desmatado e queimado, cada termelétrica ligada e cada poço de petróleo perfurado se traduzem – na linguagem do aquecimento global – em secas mais severas, furacões mais intensos e ondas de calor mortíferas. Tempos em que a ganância envenena o ar que respiramos, a comida que comemos, a água que bebemos e o solo onde plantamos”.

Fiquem certos, todos que nos leem, cada indígena que cair, que tombar morto pela motosserra, pelas munições letais, pelos vírus do colonizador do século XXI, assim como seus ancestrais há milênios, levará consigo a sabedoria de um povo inteiro, levará consigo, para o esquecimento, todo o conhecimento que possa haver numa biblioteca inteira.

Fiquemos certos que, depois do banimento da vida da forma mais violenta possível, que só o ato genocida pode comportar, a floresta em chamas será o último grito de humanidade que ouviremos no Brasil.

Dia 30 de maio de 2023, dia do marco temporal, dia do genocídio legalizado, dia da morte decretada, institucionalizada, dia da tragédia constitucional.

O Brasil foi declarado morto no dia 30 de maio de 2023.

Porque não haverá sentido para nós, se perdemos o Nós-com-Eles.

Que ninguém duvide, no dia 30 de maio de 2023, o Brasil foi declarado oficialmente morto.

 

Ø  Marco Temporal: uma fake news que anistia a violência contra povos indígenas

 

O Supremo Tribunal Federal – STF terá a oportunidade de sedimentar a interpretação dos direitos constitucionais indígenas em junho deste ano. Está em pauta não apenas a definição do alcance do art. 231, referente à posse tradicional das terras indígenas, que engloba a demarcação e proteção destes territórios, mas também da garantia do acesso à Justiça aos povos indígenas, prevista no art. 232 da Constituição Federal, e, da consulta livre prévia e informada assegurada na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

Constam na pauta do dia 07 de junho seis processos (ACO 1100, AR 2759, RE 1017365 (Tema 1031), ADI 5905, ADPF 991 e ARE 803462) que versam sobre essas matérias, o que indica a disponibilidade da Corte em enfrentar estes temas, que certamente se encontram maturados pelo conjunto dos magistrados.

Vale lembrar que, nos últimos anos, a matéria indígena foi motivo de ameaça direta aos ministros e ao cumprimento das decisões do STF, a exemplo das promessas feitas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e sustentadas por mobilizações financiadas, ao que tudo indica, como se revelou a posteriori, por associações ligadas ao agronegócio brasileiro.

Interessante notar, que, tão logo se sinaliza a retomada de julgamentos sobre o tema indígena, se assanham aqueles que buscam suprimir a competência da mais alta Corte de Justiça em guardar a Constituição brasileira. Se não for pelo arbítrio da ameaça, e aqui relembramos 07 de setembro de 2021, ou da força, vívida na memória de todos os atos golpistas de 08 de janeiro, será pela via oblíqua da tramitação com urgência do Projeto de Lei 490/2007 na Câmara dos Deputados, uma proposta claramente inconstitucional, aprovada na Câmara no dia 30 de maio.

Não surpreende o fato de o pedido de urgência ter sido formulado pelo Deputado investigado por estimular atos antidemocráticos, basta procurar pelo nome do parlamentar em qualquer site de buscas que se encontrarão menções, por exemplo, de pedidos de impeachment contra ministros do STF. Como também não surpreende a expressiva votação na Câmara dos Deputados favorável à urgência na tramitação do PL 490, que contou com apoio de partidos ligados ao bolsonarismo mais radical e ao agronegócio.

Todavia, a presente reflexão busca lançar luz especificamente sobre o chamado marco temporal. Já tivemos em outras ocasiões a oportunidade de tratar do tema a partir da teoria do indigenato, da escolha dos Constituintes pelo direito originário, da imutabilidade do art. 231 da Constituição Federal em razão da consagração de direitos fundamentais como cláusulas pétreas, ou seja, cláusulas, como o art. 231, que não estão sujeitas à vontade de legisladores ordinários.

Para o Poder Constituinte, de 1987/88, foi consagrado como direito fundante do nosso país, verdadeira cláusula pétrea, o art. 231 da Constituição Federal.

É justamente sobre a integralidade do art. 231 da CF que será fixada a interpretação do Supremo Tribunal Federal, que uniformizará o entendimento constitucional acerca do direito dos povos indígenas sobre as terras que ocupam.

Quando reconheceu a repercussão geral do julgamento do RE 1017365, em 22 de fevereiro de 2019, o STF apontou o conteúdo a ser enfrentado, cujo o título foi assim fixado:

Tema 1031: Definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional.

Embora o julgamento tenha ficado popularmente conhecido como o julgamento do “marco temporal”, em nenhum momento o Constituinte ou mesmo o STF menciona o termo: “marco temporal”, como acima transcritos.

A melhor definição do que seria o marco temporal, que tivemos a feliz oportunidade de ouvir recentemente, foi a construída pelo advogado indígena Ivo Macuxi, de Roraima, durante o Acampamento Terra Livre de 2023: “O marco temporal é uma fake news!”

Concordamos com o colega, Dr. Ivo, pois é disso que se trata, o marco temporal é uma mentira argumentativa que restringe o alcance do art. 231 da Constituição Federal e suprime o direito mais importante para a existência dos povos indígenas e da pluralidade cultural de nossa nação.

Já para o Ministro Nunes Marques, no voto proferido no RE-RG 1017365 (Tema 1031), o marco temporal, seria:

“(…) Segundo tal critério, são consideradas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas somente aquelas que eles habitavam na data da promulgação da Constituição de 1988 – esse é o marco temporal. A teoria do fato indígena, que embasou o posicionamento deste Tribunal no caso mencionado, é a que melhor concilia os interesses em jogo na questão indígena. Por um lado, admite-se que os índios remanescentes em 1988 e suas gerações posteriores têm direito à posse de suas terras tradicionais, para que possam desenvolver livremente o seu modo de vida; por outro, procura-se anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica.” .

Certo é que o Supremo Tribunal Federal em algumas oportunidades esclareceu que as condicionantes aplicadas ao caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388), referenciado no voto do Min. Nunes Marques, observaram as especificidades do caso em concreto, pois se trata de uma decisão que ao final garantiu aos indígenas o direito à terra, reafirmou o texto da Constituição e a constitucionalidade do Decreto 1775/1996, bem como a legalidade e a juridicidade daquela demarcação e não o contrário. Não se tratou de um acórdão restritivo ou vinculante.

É difícil crer que a mais alta Corte de Justiça de nosso país tenha a intenção de anistiar os crimes que vitimaram os povos indígenas para apropriação de suas terras, como ocorrerá caso seja acolhido o argumento do “marco temporal”.

Tal perspectiva vai na contramão do avanço civilizatório de nossa humanidade e seria, por óbvio, um vexame internacional em um país que se lança mundialmente na atualidade como o baluarte da defesa dos direitos dos povos originários e da preservação do meio ambiente. Muito menos será a fake news do marco temporal a escolha de voto de ministros com longa trajetória profissional e acadêmica em defesa da Constituição Federal. Pois se trata, o marco temporal, de mero argumento, uma escolha retórica oportunista e criminosa de convencimento, desprovida de fundamento jurídico e doutrinário que busca açoitar ainda mais os povos indígenas do Brasil.

 

Fonte: Por Vinício Carrilho Martinez, Marcia Camargo e Erilza Braz dos Santos, no Blog da Boitempo/Cimi

 

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