Marco
temporal: o tempo do genocídio indígena
No início, eles foram obrigados a falar em
português, foram obrigados a escrever em português e foram obrigados a
compreender e se comportarem com a imposição de costumes, crenças e
significados de palavras com uma visão cosmológica que não lhes pertencia.
Os colonizadores chegaram e ignoraram sua
organização social, cultural e política dos nativos da região, pois não
correspondia ao que definiram como civilização. O Brasil assim foi moldado,
estruturado e “organizado”, foram oferecidas terras a estrangeiros para que
viessem e introduzissem seus modelos de sociedades já “civilizadas”, e assim
foi construído o país que foi dado o nome de Brasil.
Com sua arrogância, chegaram rapidamente à conclusão
de que não haviam instituições neste nosso país – nos chamaram de autóctones,
incapacitados à civilização colonizadora, dissolvente. E é essa mesma presunção
que nos arrastou até o fatídico marco temporal, no dia 30 de maio de 2023, dia
da morte decretada dos povos tradicionais, dos grupos isolados (ainda mais
rapidamente), dos povos da floresta – que a habitam há milênios.
A mesma desfaçatez de quem votou contra o Brasil,
impondo a nossos parentes a prova de sua existência, foi-nos imposta desde a
formação da primeira institucionalidade brasileira: da Igreja catequista ao
Estado senhorial, violador, matador.
Senhoras e senhores, vejam que título fabuloso, mais
revelador do que esse exemplo não deve haver: O Estado
do Direito entre os autóctones do Brasil, de Carl Von Martius.
Ao contrário da imposição de se sofrer o genocídio,
desde nossa “descoberta”, é o sentido de comunidade pataxó vivida no Território
Indígena Barra Velha, Aldeia mãe dos Pataxós. A pesquisa de campo etnográfica,
decolonial, construída coletivamente permite viver esses saberes; aprende-se o
sentido do coletivo, a coletividade, o sentido da união, da reunião, do “muka
mukau” (unir para reunir) para resistir, insistir e principalmente existir.
A experiência da “vida coletiva” vai muito além da
barreira do concordar ou do discordar, pois coletividade transborda respeito,
coletividade visa o bem de todos, é uma luta pelo mundo, uma luta pela
sobrevivência, uma luta pela natureza, pelos animais, pelos seres humanos; na
verdade, é uma luta e um conceito que deveria abranger a todos, sem
preconceito, racismo ou segregações.
Coletividade, na cosmologia indígena, significa a
união, a reunião, em prol de TODOS, incluindo, natureza, seres humanos e tudo
mais que envolve o planeta Terra. Talvez possamos então encontrar uma nova
palavra para ressignificar a palavra coletividade dentro da cosmologia
indígena, porque a coletividade da maneira que conhecemos é segregadora,
racista, preconceituosa e vai contra o sentido de união.
Não teria como escrever um texto sobre o marco
temporal, sem o Nós. O Nós aqui representa diferentes campos de conhecimento,
acadêmicos, da educação, do direito, da antropologia, das diversas experiências
de vida. Mas, o marco temporal marca o nó górdio, o limite extremo, a última
fronteira, entre a vida e a morte dos nossos parentes indígenas e, obviamente,
da nossa.
Não há Brasil sem os povos indígenas, não há Brasil
sem a miscigenação – estupro coletivo, na verdade, das mulheres negras e
indígenas pelo homem branco. Sem segurança efetiva aos povos indígenas, não
haverá futuro, como não há segurança de que se mantenha vivo o presente.
É inadmissível o mundo, o Brasil, não dar a
oportunidade a nossas crianças de entenderem e compreenderem o mundo, o
Universo como um todo; é absurdamente inconstitucional não dar o direito às
nossas crianças de compreenderem a cosmologia indígena.
O marco temporal não diz somente respeito às
populações indígenas do nosso então chamado Brasil, o marco temporal não
prejudica somente indígenas. A luta dos indígenas é por todos nós, a luta
diária pela preservação da natureza, a luta diária pelo respeito e “muka mukau”
(a união para reunião).
Hoje precisamos de muitos Nós para curarmos a nós
mesmos, herdeiros dos colonizadores incivilizados, precisamos da reunião e da
união, da coletividade com o sentido mais profundo da palavra, para curarmos as
dificuldades, para estabelecermos outros entrelaçamentos dos fios, das cordas,
dos cordões que, neste momento, nos enforcam coletivamente. Devemos nos unir e
não nos distanciar, precisamos desfazer os nós de desunião, de preconceito, de
racismo.
Hoje, após a aprovação do marco temporal, deságua
sobre Nós a perda de significados, vivemos o luto, olhamos incrédulos a
legalização do genocídio indígena. Até quando o país ficará entregue, feliz, em
ver a morte de crianças indígenas por fome, sem casa, mortos a tiros ou
gravemente adoentados (até morrerem) em razão da violência do colonizador
embrutecido que não nos deixa apenas viver?
O marco temporal facilita que terras que pertenciam
aos indígenas, que protegiam física e culturalmente povos originários, possam
ser privatizadas e comercializadas e, claro que, esta comercialização é uma
resposta aos interesses do setor ruralista, dos madeireiros, do agronegócio que
polui rios, mata a fauna e a flora, que traz mercúrio e veneno para nossa
comida.
O quanto você lutaria para deixar ao seu filho sua
herança? Casa, carro, dinheiro, bens materiais, isto é herança para maior parte
das sociedades. Sabe o que os povos estão tentando deixar de herança para SEUS
filhos e também para seus próprios? A vida!
Os rios, os mares, a mata, a biodiversidade, o planeta
que hoje luta para sobreviver. Nossos1 filhos, nossos netos,
nosso planeta não se nutrirão de bens materiais, de casas, de prédios, de
dinheiro. Está na hora de lutarmos para desatarmos os nós através de Nós
mesmos.
Não há como não citar o “O chamado pela Terra” apresentado pela articulação nacional das mulheres indígenas guerreiras
da ancestralidade (ANMIGA), que é uma articulação de mulheres indígenas de
todos os biomas do Brasil, com saberes, tradições, lutas que se somam e
convergem, e une mulheres mobilizadas pela garantia do direito à vida dos povos
indígenas:
“Vivemos tempos duros, tempos de extremismo
conservador, de ataques brutais aos direitos, de desmonte da educação, da
saúde, da ciência e da proteção ambiental; em que fome, desemprego, violência e
carestia avançam. Tempos em que querem silenciar os tambores dos terreiros e o
som dos maracás para que os únicos sons audíveis sejam os das motosserras, das
balas e do desalento”.
“Tempos em que cada pedaço de floresta desmatado e
queimado, cada termelétrica ligada e cada poço de petróleo perfurado se
traduzem – na linguagem do aquecimento global – em secas mais severas, furacões
mais intensos e ondas de calor mortíferas. Tempos em que a ganância envenena o
ar que respiramos, a comida que comemos, a água que bebemos e o solo onde
plantamos”.
Fiquem certos, todos que nos leem, cada indígena que
cair, que tombar morto pela motosserra, pelas munições letais, pelos vírus do
colonizador do século XXI, assim como seus ancestrais há milênios, levará
consigo a sabedoria de um povo inteiro, levará consigo, para o esquecimento,
todo o conhecimento que possa haver numa biblioteca inteira.
Fiquemos certos que, depois do banimento da vida da
forma mais violenta possível, que só o ato genocida pode comportar, a floresta
em chamas será o último grito de humanidade que ouviremos no Brasil.
Dia 30 de maio de 2023, dia do marco temporal, dia
do genocídio legalizado, dia da morte decretada, institucionalizada, dia da
tragédia constitucional.
O Brasil foi declarado morto no dia 30 de maio de
2023.
Porque não haverá sentido para nós, se perdemos o
Nós-com-Eles.
Que ninguém duvide, no dia 30 de maio de 2023, o
Brasil foi declarado oficialmente morto.
Ø Marco Temporal: uma fake news que anistia a violência contra povos
indígenas
O Supremo Tribunal Federal – STF terá a oportunidade
de sedimentar a interpretação dos direitos constitucionais indígenas em junho
deste ano. Está em pauta não apenas a definição do alcance do art. 231,
referente à posse tradicional das terras indígenas, que engloba a demarcação e
proteção destes territórios, mas também da garantia do acesso à Justiça aos
povos indígenas, prevista no art. 232 da Constituição Federal, e, da consulta
livre prévia e informada assegurada na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT.
Constam na pauta do dia 07 de junho seis processos
(ACO 1100, AR 2759, RE 1017365 (Tema 1031), ADI 5905, ADPF 991 e ARE 803462)
que versam sobre essas matérias, o que indica a disponibilidade da Corte em
enfrentar estes temas, que certamente se encontram maturados pelo conjunto dos
magistrados.
Vale lembrar que, nos últimos anos, a matéria
indígena foi motivo de ameaça direta aos ministros e ao cumprimento das
decisões do STF, a exemplo das promessas feitas pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro e sustentadas por mobilizações financiadas, ao que tudo indica, como
se revelou a posteriori, por associações ligadas ao agronegócio brasileiro.
Interessante notar, que, tão logo se sinaliza a
retomada de julgamentos sobre o tema indígena, se assanham aqueles que buscam
suprimir a competência da mais alta Corte de Justiça em guardar a Constituição
brasileira. Se não for pelo arbítrio da ameaça, e aqui relembramos 07 de
setembro de 2021, ou da força, vívida na memória de todos os atos golpistas de
08 de janeiro, será pela via oblíqua da tramitação com urgência do Projeto de
Lei 490/2007 na Câmara dos Deputados, uma proposta claramente inconstitucional,
aprovada na Câmara no dia 30 de maio.
Não surpreende o fato de o pedido de urgência ter
sido formulado pelo Deputado investigado por estimular atos antidemocráticos,
basta procurar pelo nome do parlamentar em qualquer site de buscas que se
encontrarão menções, por exemplo, de pedidos de impeachment contra ministros do
STF. Como também não surpreende a expressiva votação na Câmara dos Deputados
favorável à urgência na tramitação do PL 490, que contou com apoio de partidos
ligados ao bolsonarismo mais radical e ao agronegócio.
Todavia, a presente reflexão busca lançar luz
especificamente sobre o chamado marco temporal. Já tivemos em outras ocasiões a
oportunidade de tratar do tema a partir da teoria do indigenato, da escolha dos
Constituintes pelo direito originário, da imutabilidade do art. 231 da
Constituição Federal em razão da consagração de direitos fundamentais como
cláusulas pétreas, ou seja, cláusulas, como o art. 231, que não estão sujeitas
à vontade de legisladores ordinários.
Para o Poder Constituinte, de 1987/88, foi
consagrado como direito fundante do nosso país, verdadeira cláusula pétrea, o
art. 231 da Constituição Federal.
É justamente sobre a integralidade do art. 231 da CF
que será fixada a interpretação do Supremo Tribunal Federal, que uniformizará o
entendimento constitucional acerca do direito dos povos indígenas sobre as
terras que ocupam.
Quando reconheceu a repercussão geral do julgamento
do RE 1017365, em 22 de fevereiro de 2019, o STF apontou o conteúdo a ser
enfrentado, cujo o título foi assim fixado:
Tema 1031: Definição do estatuto
jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação
indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional.
Embora o julgamento tenha ficado popularmente
conhecido como o julgamento do “marco temporal”, em nenhum momento o
Constituinte ou mesmo o STF menciona o termo: “marco temporal”, como acima
transcritos.
A melhor definição do que seria o marco temporal,
que tivemos a feliz oportunidade de ouvir recentemente, foi a construída pelo
advogado indígena Ivo Macuxi, de Roraima, durante o Acampamento Terra Livre de
2023: “O marco temporal é uma fake news!”
Concordamos com o colega, Dr. Ivo, pois é disso que
se trata, o marco temporal é uma mentira argumentativa que restringe o alcance
do art. 231 da Constituição Federal e suprime o direito mais importante para a
existência dos povos indígenas e da pluralidade cultural de nossa nação.
Já para o Ministro Nunes Marques, no voto proferido
no RE-RG 1017365 (Tema 1031), o marco temporal, seria:
“(…) Segundo tal critério, são consideradas terras
tradicionalmente ocupadas pelos indígenas somente aquelas que eles habitavam na
data da promulgação da Constituição de 1988 – esse é o marco temporal. A teoria
do fato indígena, que embasou o posicionamento deste Tribunal no caso
mencionado, é a que melhor concilia os interesses em jogo na questão indígena.
Por um lado, admite-se que os índios remanescentes em 1988 e suas gerações
posteriores têm direito à posse de suas terras tradicionais, para que possam
desenvolver livremente o seu modo de vida; por outro, procura-se anistiar
oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, já acomodados
pelo tempo e pela própria dinâmica histórica.” .
Certo é que o Supremo Tribunal Federal em algumas
oportunidades esclareceu que as condicionantes aplicadas ao caso Raposa Serra
do Sol (Pet 3388), referenciado no voto do Min. Nunes Marques, observaram as
especificidades do caso em concreto, pois se trata de uma decisão que ao final
garantiu aos indígenas o direito à terra, reafirmou o texto da Constituição e a
constitucionalidade do Decreto 1775/1996, bem como a legalidade e a
juridicidade daquela demarcação e não o contrário. Não se tratou de um acórdão
restritivo ou vinculante.
É difícil crer que a mais alta Corte de Justiça de
nosso país tenha a intenção de anistiar os crimes que vitimaram os povos
indígenas para apropriação de suas terras, como ocorrerá caso seja acolhido o
argumento do “marco temporal”.
Tal perspectiva vai na contramão do avanço
civilizatório de nossa humanidade e seria, por óbvio, um vexame internacional
em um país que se lança mundialmente na atualidade como o baluarte da defesa
dos direitos dos povos originários e da preservação do meio ambiente. Muito
menos será a fake news do marco temporal a escolha de voto de ministros com
longa trajetória profissional e acadêmica em defesa da Constituição Federal.
Pois se trata, o marco temporal, de mero argumento, uma escolha retórica
oportunista e criminosa de convencimento, desprovida de fundamento jurídico e
doutrinário que busca açoitar ainda mais os povos indígenas do Brasil.
Fonte: Por Vinício Carrilho Martinez, Marcia Camargo
e Erilza Braz dos Santos, no Blog da Boitempo/Cimi

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