segunda-feira, 5 de junho de 2023

Junho de 2013: os protestos que mudaram o país, 10 anos depois

Começou com um protesto de jovens em São Paulo contra o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus, que entrou em vigor em 2 de junho de 2013. O movimento cresceu, ganhou adesão e repressão, repercutiu no estado e no Brasil. Pressionados, governadores e prefeitos reduziram as tarifas, mas elas já não eram a única pauta: a insatisfação se virou para os gastos com a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, as denúncias de corrupção na política e o governo de Dilma Rousseff (PT).

O mês de junho de 2013 — e o que aconteceu a partir de então — mudou o país para sempre: vieram, ano após ano, um descontentamento generalizado com a classe política, a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma, a projeção nacional de Jair Bolsonaro (e do bolsonarismo como movimento político), a polarização e o fortalecimento da extrema direita no Brasil, entre outros aspectos.

O g1 ouviu especialistas, colunistas políticos — além de protagonistas daquele período — para analisar as consequências de junho de 2013 para o Brasil de 2023. O resultado você pode acompanhar em uma série de reportagens que serão publicadas a partir deste domingo (4). Entre elas:

•        Onde estão e como vivem os líderes dos protestos de junho

•        2013 como primeiro envolvimento na política de jovens de todo o país

•        A ascensão e queda de Sérgio Cabral

•        O temor de prefeitos até hoje de aumentar a tarifa de ônibus.

"Junho de 2013 despertou uma inquietação social que ainda não acalmou, que ainda não se assentou", diz Pablo Ortellado, coordenador do monitor do debate político digital, professor da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do jornal "O Globo".

Ele prossegue:

"É um terremoto político, mas despertou uma inquietação tão grande que foi se repetindo, a gente teve mobilizações muito grandes a partir de junho que não conseguimos imaginar possíveis antes".

Entre essas mobilizações, está a greve de caminhoneiros de 2018, que causou estragos na economia ao paralisar rodovias e impedir o transporte de alimentos e mercadorias: o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 3,8% no mês de maio daquele ano — o mesmo em que houve a greve.

<<< Impacto político

O principal impacto das manifestações de 2013 foi para a vida política nacional, avaliam as colunistas do g1 e da Globonews Andréia Sadi, Julia Duailibi e Natuza Nery.

•        O bolsonarismo, por Andréia Sadi

"Foi o começo de uma série de inquietações que de fato não eram só pelos 20 centavos, era em relação à saúde, educação, à corrupção. Acabou desaguando em outras indignações e cobranças que a gente viu depois nas eleições, de movimentos contra o sistema de política, contra 'tudo isso que estava aí'."

"E o candidato que melhor soube aproveitar aquele momento surfou naquela onda que foi Bolsonaro, acho que acabou desaguando em Bolsonaro, que era um político com 30 anos de Câmara [dos Deputados]."

•        A volta das pessoas às ruas, por Julia Duailibi

"2013 é marcado pela volta das pessoas às ruas. As pessoas passam a fazer manifestações, algo que não se via desde talvez as Diretas Já. Tinha um elemento único, que era um elemento de insatisfação, que unia tudo: insatisfação com a política, com a economia, com o Estado —inclusive internacional, não só no Brasil."

"É claro que 2013 foi um elemento fundamental também para a queda de Dilma, para o impeachment. Ela representava o governo de ocasião, então grande parte das críticas se volta a ela. O governo passava por uma crise política, uma crise econômica, tinha Lava Jato ainda como um elemento importante."

"Então as ruas, as manifestações contribuem para a queda de Dilma. E mais, 2013 contribui para o que foi 8 de janeiro. Talvez se não tivesse acontecido junho de 2013, não tivesse acontecido a tentativa."

•        Cambalhotas na política, por Natuza Nery

"A partir das manifestações de junho de 2013 a política brasileira daria cambalhotas – tantas – que passaria a se tornar algo muito imprevisível. A análise política, no Brasil, era de uma forma antes das manifestações de junho de 2013 e ela virou uma outra coisa. Ali havia ventos de mudança muito contundentes."

"Uma parte da política conseguiu ler aqueles ventos de mudanças, a esquerda não tinha mais a primazia das ruas, a direita tomava conta dessas ruas, criava-se ali um ambiente muito, muito contrário à política tradicional."

"A Lava Jato transformaria a cara da política eleitoral brasileira. Uma presidente da República sofreria um processo de impeachment, como aconteceu com Dilma Rousseff. Uma ascensão da extrema-direita com o bolsonarismo, que acaba se beneficiado de um sopro lavajatista na sociedade brasileira. Então, junho de 2013 foi um marco na história do Brasil e um marco na política brasileira."

 

       Cenário de revolta e insatisfação social ajudou a compor junho de 2013

 

Era início da noite, quando o Movimento Passe Livre (MPL) queimou uma catraca de papelão, interrompendo o tráfego na Avenida 23 de Maio, na altura do Vale do Anhangabaú, centro da cidade de São Paulo. Naquele 6 de junho de 2013, os manifestantes lutavam contra o aumento das tarifas do transporte público, que haviam subido de R$ 3 para R$ 3,20 no início do mês. Atos semelhantes haviam acontecido nos anos anteriores pelo mesmo motivo. Da mesma maneira, a polícia reprimiu o protesto como tinha feito de outras vezes. Porém, em menos de duas semanas, o Brasil todo perceberia que aquilo tinha sido o começo de uma mobilização muito maior.

No dia 17 de junho, as ruas da capital paulista seriam tomadas por dezenas de milhares de pessoas, paralisando o trânsito em parte das avenidas mais importantes da cidade. Naquela noite, os protestos já haviam chegado a outras cidades, como Belo Horizonte e o Rio de Janeiro.

Ações do tipo seriam vistas durante toda a onda de protestos, desde o primeiro dia, quando, após ser reprimida no centro paulistano, a multidão foi em direção à Avenida Paulista, onde quebrou vidraças de agências bancárias. A adesão de parte dos manifestantes à chamada tática black block, em que, com o rosto coberto, participantes dos protestos promoviam a depredações, barricadas e respondiam às bombas da polícia com rojões e pedras, também foi um elemento novo da onda de atos.

A repressão policial, com centenas de prisões, e manifestantes feridos, alguns com sequelas permanentes, pelo uso da munição menos letal foi outra marca do momento. A reação da sociedade a essa violência foi determinante para aumentar a adesão aos protestos.

Mas, dez anos depois, pesquisadores e ativistas ainda têm dificuldades em determinar porque os atos de rua daquele ano evoluíram daquela forma. Parece ser consenso, entretanto, que junho de 2013 é um marco na história política brasileira e que a interpretação do momento segue em disputa.

Uma das questões difíceis de responder, mesmo em perspectiva, é por que os atos contra o aumento das passagens cresceram e se tornaram grandes manifestações com diversas pautas ligadas às condições de vida da população – saúde, educação, habitação e transportes.

•        Cenário de insatisfação

“Você já tinha uma disputa aberta pelos territórios. Por exemplo, a retomada indígena é em 2013 [série de ocupações de terras por indígenas em Mato Grosso do Sul]. No Rio de Janeiro você já tinha uma intensificação das mobilizações, primeiro, por causa das pessoas desalojadas para a construção da Cidade Olímpica. Já tinha uma disputa pela terra urbana. O movimento indígena do que se chama de campo, o não urbano”, relaciona o professor do curso de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Acácio Augusto, ao lembrar que já havia um contexto de mobilizações naquele momento.

Além disso, ele destaca o “crescimento gigantesco das greves no ano anterior”. Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, em 2011, foram realizadas no Brasil, 554 greves. Em 2012, foram 877 movimentos de paralisação, e, em 2013, 2.050.

O cenário de insatisfação popular foi alimentado, na avaliação do pesquisador, pela forte repressão policial aos atos.

“Isso destravou uma série de demandas, entre elas, a própria questão do transporte. Cabe-se dizer, não se resumia à questão do transporte propriamente dito, dizia respeito à circulação na cidade, a possibilidade de acesso que as pessoas tinham à cidade. Foi isso que fez também a pauta escalar tão rápido, essa combinação com disputas territoriais que já estavam acontecendo e a combinação com a violência policial”, analisa.

•        Piora das condições de vida

Essas demandas estavam relacionadas a uma “degradação geral das condições de vida nas grandes cidades”, de acordo com o professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Erick Omena. Ao analisar diversos dados, ele aponta que em 2013 as populações dos centros urbanos enfrentavam uma acentuada piora das condições de mobilidade, acesso à saúde e habitação, associada a um crescente descrédito na política institucional.

A partir de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Omena mostra que, entre 2004 e 2012, há um aumento na proporção de trabalhadores que levam mais de uma hora no percurso entre a residência e o emprego. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, o percentual sobe de 18% para 24,7% no período, e, na Grande São Paulo, de 20% para 23,5%.

O preço dos aluguéis, entre janeiro de 2008 e junho de 2013, subiu, segundo o pesquisador, 131%, no Rio de Janeiro, e 88%, em São Paulo.

“Na medida em que você aumenta o preço da habitação, você vai forçar as pessoas a irem para as regiões mais periféricas, que são mais distantes dos centros, que [é] onde estão a maior parte dos empregos. Portanto, o deslocamento casa-trabalho também vai aumentar”, explica o pesquisador sobre como a soma dos fatores afeta a vida da população.

Há ainda indicativos, segundo Omena, de uma crescente insatisfação com o sistema público de saúde. “Mais ou menos nesse período, você tem uma adesão bastante expressiva e relativamente rápida de um grande número de pessoas à assistência médica privada”, acrescenta.

Esse cenário de “precariedade da vida” contrastava, na avaliação da professora de história contemporânea da Fundação Cásper Líbero Joana Salém, com os preparativos do Brasil para receber os grandes eventos esportivos. “Se tinha uma percepção que se estava gastando muito dinheiro com aquelas obras em vez de gastar com saúde e educação para o povo”, diz em referência aos estádios e outros investimentos feitos para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Os avanços em algumas áreas também ajudaram a impulsionar, segundo a professora, parte da população a buscar mais direitos. “Um marco de dez anos de governos do PT, que tinham ampliado determinados direitos, sobretudo para essa juventude trabalhadora, como, por exemplo, o direito à universidade. E parte dessas pessoas que entra na universidade, existe uma expectativa, uma certa pressa de que aqueles direitos se concretizem mais rapidamente”, acrescenta.

•        Revoltas no Brasil e no mundo

O MPL de São Paulo tinha como inspiração jornadas de luta contra o aumento das tarifas de transporte em outros lugares do país, como a chamada Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador, em 2005. “Em 2011 teve uma luta muito grande contra o aumento em São Paulo, que durou dois, três meses, toda a quinta-feira tinha atos. E foi bem intenso para a época”, contextualiza Frederico Ravioli, que em 2013 fazia parte do Passe Livre.

Houve ainda, na opinião do militante que deixou o movimento em 2016, influência do cenário internacional. “[O ano de] 2013 captura também um pouco dessas ondas de protestos que estão acontecendo no mundo inteiro, em 2008, no Chile; na Primavera Árabe, no Oriente Médio; no Norte da África. Talvez seja um pouco do momento que essa ideia do consenso – de que a gente vai avançar devagar para todo mundo crescer – vai por água abaixo”, diz.

Uma semelhança entre as revoltas que atingiram, entre 2010 e 2012, diversos países, como o Egito, a Líbia, a Síria, o Iêmen, o Barein e o Marrocos, e as jornadas de junho foi o papel da internet e das redes sociais. “Toda essa insatisfação crescente vai achar um veículo excepcionalmente novo e muito mais capilarizado de expressão, que é a internet”, enfatiza Erick Omena. O pesquisador destaca que, de 2003 a 2013, o acesso à rede se expandiu de 13% da população para 51%.

“Junho de 2013 não poderia ter acontecido sem esse rápido acesso da população a esse novo meio de comunicação, em especial as redes sociais”, acredita.

•        Disputa e legado

A mobilização de dezenas de milhares de pessoas nas ruas começou a ser disputada por grupos de direita e extrema direita antes mesmo de junho acabar, diz Acácio Augusto. “Reagindo a essa radicalização que junho traz, você vai ter não só uma intensificação da atuação institucional das forças de segurança, como também uma tentativa de disputar isso por forças mais à direita – de liberais a neomonarquistas”, pontua.

“Tem o Vem pra Rua, tem o MBL [Movimento Brasil Livre], que rouba a nossa sigla”, cita Frederico Ravioli sobre os movimentos de direita que se inspiram diretamente no sucesso das mobilizações do MPL. “É interessante para pensar como a direita se apropriou das táticas de esquerda, da forma de organização da esquerda radical, enquanto a esquerda tradicional ficou defendendo a democracia, a ordem e a estabilidade”, reflete o ex-militante.

Para ele, esses movimentos entenderam “as potencialidades de junho” e partiram para uma luta “disruptiva”.

O descontentamento foi canalizado por esses grupos, na avaliação de Joana Salém, em insatisfação com os governos do PT, partido que estava há dez anos à frente do governo federal e, na ocasião, recém-eleito para a prefeitura de São Paulo. “Muitas pessoas não se identificavam como direita e passaram a se identificar a partir de 2014, 2015, com uma ocupação das ruas pelo impeachment da [então presidente] Dilma Rousseff”, diz ela sobre a aproximação com a parcela da população que não tinha convicções políticas bem definidas.

“A direita soube aproveitar essa subjetividade política difusa para fazer uma campanha muito bem-sucedida de ganhar espaço contra o petismo. Até o limite do ódio que se chegou nos anos Bolsonaro [Jair Bolsonaro foi presidente, de 2018 a 2022]”, acrescenta Joana.

Ao mesmo tempo, as jornadas de junho foram inspiração para diversos movimentos de lutas por direitos nos anos seguintes. “Se você pensar nas características dos jovens que se juntaram na ocupação das escolas, você não estava só na questão da escola, a questão de gênero estava colocada, modos de vida, modos de educar, de aprender. Essa dimensão, que é bem difícil de captar do ponto de vista objetivo, era muito marcante em junho”, relaciona Augusto sobre o movimento dos estudantes secundaristas contra a reforma escolar no estado de São Paulo, em 2015 e 2016.

Para o pesquisador, os protestos contra a tarifa marcaram ainda a “retomada da rua como espaço de sociabilidade”. Como exemplo, ele cita outras mobilizações ocorridas nos anos seguintes na capital paulista. “A mobilização que tentava impedir a construção de mais um condomínio ali no centro, e acabou criando o que hoje se chama de Parque Augusta, tem a ver com junho também. Isso não tem a ver especificamente com a criação de um parque ou não, mas com a questão ecológica, de como se vive na cidade, como se vive no centro”, ressalta. “A mobilização de vários coletivos em torno dos abusos que são cometidos pelas forças na repressão à Cracolândia, na Favela do Moinho, tudo isso está conectado a junho de 2013”, acrescenta.

 

       Repressão a manifestações ganhou força após 2013

 

Desde o primeiro dia em que os manifestantes foram às ruas de São Paulo para protestar contra o reajuste das tarifas do transporte público, em 2013, houve repressão por parte da Polícia Militar. A partir dali, as ações policiais para conter e até impedir as manifestações de rua ganharam força e diversos níveis de sofisticação.

 “A gente não pode deixar de entender junho de 2013 como um marco no processo de criminalização das lutas sociais”, defende Raísa Cetra, coordenadora da organização não governamental Artigo 19, com foco na liberdade de expressão. Para ela, falta no país o entendimento das manifestações como parte importante da democracia. “As ruas sempre foram vistas, para vários setores políticos, como ameaça. Inclusive para setores progressistas”, diz.

Assim, os protestos por direitos acabaram, segundo ela, sendo entendidos como uma ação de desestabilização política. “Ali, não houve a leitura de quem era o inimigo de fato e se entendeu que era a população que estava reivindicando por direitos. Naquele momento as pessoas estavam na rua por educação, por um transporte seguro, por saúde pública.”

Naquele momento as forças de segurança em diferentes níveis, em todo o país, se preparavam para a realização dos megaeventos esportivos – a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. “Você já estava em um processo de mudança da atuação das tropas de choque, isso é fato”, enfatiza Acácio Augusto, que coordena o Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A grande violência usada contra os manifestantes foi, segundo Augusto, um dos fatores que mobilizaram a solidariedade de diversos setores da sociedade, proporcionando o crescimento dos protestos.

“O estopim propriamente dito foi muito mais a violência policial do que o transporte”, enfatiza o coordenador.

Apesar da rejeição às formas de repressão empregadas, com a prisão de centenas de pessoas e o uso indiscriminado de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, o especialista avalia que os modelos de ação continuaram a ser aprimorados nos meses e anos seguintes. Após a jornada de protestos contra o aumento, vieram manifestações contra os gastos excessivos nas obras de preparação para a Copa do Mundo. “O primeiro ato contra a Copa eles vão aplicar o Caldeirão de Hamburgo, que é o isolamento de uma parte dos manifestantes com cordão policial. Acho que tem uma questão forte ligada à mudança de como a polícia passa enfrentar esses protestos”, diz.

Esse mesmo tipo de tática seria empregado, de acordo com Augusto, para manifestações semelhantes nos anos seguintes, como os protestos dos secundaristas contra a reorganização escolar, em São Paulo, em 2016. “Você tinha no máximo 200 estudantes secundaristas caminhando na [Avenida] Paulista, cercados pela polícia por todos os lados. A ideia de envelopar a manifestação vem daí. Com a tática muda, uma das características da manifestação autônoma é não ter carro de som, sem liderança explícita. Você tem as faixas e todo mundo no mesmo nível na rua. A resposta da polícia para essas manifestações era envelopar”, conta.

•        As vítimas

As ações violentas da polícia marcaram de forma definitiva a vida de algumas pessoas, como o fotógrafo Sérgio Silva. Na repressão ao ato de 13 de junho de 2013, na Rua da Consolação, ele perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha. As cenas daquele dia foram um ponto de virada na opinião pública e para vários meios de comunicação, que passaram a se pronunciar abertamente a favor das manifestações.

“É um dia que, com toda a certeza, jamais esquecerei”, conta Silva. O fotógrafo diz que parte dos manifestantes realmente fazia depredações no calor do momento, mas não consegue acreditar que essas ações justifiquem a forma como as forças policias agiam. “O que tinha ali eram jovens revoltados, alguns focados na pauta do aumento da tarifa, outros por outros motivos também. E a polícia agia de maneira desproporcional”, avalia.

Essas ações chegavam, segundo Silva, a afetar o trabalho da imprensa. “Nós tivemos muitos e muitos colegas que passavam por revistas que ultrapassavam o limite da abordagem policial e impedia que esses policiais trabalhassem”, relata.

O fotógrafo tenta uma reparação na Justiça pelo ferimento sofrido durante a repressão. Após ter o pedido negado em duas instâncias na Justiça de São Paulo, uma apelação ao Supremo Tribunal Federal determinou que a solicitação seja reconsiderada pelo tribunal estadual. “Eu estou a todo instante tendo que provar para o estado de São Paulo que eu tomei um tiro disparado pela polícia e perdi a visão”, reclama a respeito da forma como os magistrados têm tratado o seu caso.

Segundo ele, as alegações do governo estadual é que não há provas de que ele foi efetivamente atingido por uma bala de borracha. “Podem ter sido muitos outros objetos, como, por exemplo uma bola de futebol, a cabeça de um manifestante. Essas foram as palavras que eu ouvi nessa última audiência”, diz sobre a situação que classifica como absurda.

No mês seguinte, em 14 de julho, no Rio de Janeiro, a violência policial se tornaria um tema de mobilização social depois do desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza. Ele nunca mais foi visto após ser levado por policiais militares para a base da Unidade de Polícia Pacificadora na favela da Rocinha. Durante os anos seguintes, o desaparecimento de Amarildo que, foi torturado e morto pelos agentes do Estado, foi alvo de diversas manifestações.

Em agosto de 2022, a  Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu manter a condenação do estado do Rio de Janeiro ao pagamento de pensão e de indenização por danos morais no valor de R$ 500 mil para a companheira e cada um dos filhos do pedreiro.

“É uma resposta importante do Judiciário, para mostrar para o Estado que ele tem que saber recrutar os seus agentes, se não ele é responsabilizado”, disse o advogado que defende os interesses da esposa e filhos de Amarildo, João Tancredo.

Segundo ele, apesar da concessão da indenização, os trâmites para que o dinheiro chegue efetivamente à família devem demorar pelo menos três anos. Na próxima terça-feira (6), o STJ deve ainda julgar um recurso para que a mãe de criação e a sobrinha do pedreiro também sejam contempladas.

O advogado criticou o tempo para que houvesse reparação à família. “Lamentável o tempo que esse processo demorou. É um processo simples, onde uma pessoa é retirada da sua casa, torturada e desaparecem com ela, por agentes do Estado que foram condenados. O tempo que ficou no STJ, foram três anos. Isso é muito ruim. Justiça que tarda, é justiça que falha.”

Militante do Movimento Passe Livre de Brasília, Paique Duques Santarém diz ainda que, além da repressão policial, os ativistas sofreram diversas calúnias, como as de que receberiam financiamento de agentes estrangeiros

“Essa repressão aos movimentos sociais de rua enfraqueceu não só nós, mas outros movimentos sociais de rua. Esse enfraquecimento foi um enfraquecimento da luta popular e da participação social na política”, diz.

•        Anos Bolsonaro

Com a chegada da extrema-direita ao poder, Raísa Cetra avalia que o cenário e retrocessos no direito à manifestação foram ainda maiores. “O que a gente viu nos anos de bolsonarismo é uma série de novas ferramentas de repressão e criminalização da luta popular, sobretudo passando por estratégias de silenciamento, desmobilização e tentativa de que as pessoas não fossem para as ruas”, analisa sobre os impactos da chegada de Jair Bolsonaro à Presidência em 2018.

“O uso de crimes contra a honra para criminalizar manifestantes foi uma ferramenta usada durante o bolsonarismo que a gente não via de maneira tão sistemática antes. Então, a gente teve muita gente presa por escrever ‘fora Bolsonaro’ em cartazes ou falar preposições contrárias ao governo em manifestações”, exemplifica.

Para a especialista, esse é “um outro formato de repressão que está mais próximo à censura do que aquela mobilização de um aparato repressivo enorme contra manifestantes”. Nesse sentido, Raísa acredita que as ações de repressão aos protestos dos últimos anos se aproximaram do período da ditadura militar (1964-1985), provocando medo na população, que deixa de se manifestar por temer represálias.

 

Fonte: g1/Dinheiro Rural

 

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