George Orwell, 120
anos: por que 1984 continua tão relevante e atual?
O
escritor britânico George Orwell relutou em entregar, no dia 4 de dezembro de
1948, os originais de 1984 para os editores da Secker & Warburg, em
Londres. Afinal, não estava lá muito satisfeito com o resultado.
Em
carta, falou mal do livro para amigos: “Uma boa ideia arruinada”, reclamou para
um. “Ficou uma barafunda e tanto”, admitiu para outro. “Não teria ficado tão soturno
se eu não estivesse doente”, explicou para um terceiro.
Para
Fredric Warburg, um dos sócios da editora, Orwell avisou: “Não apostaria numa
vendagem alta”.
Se
A Revolução dos Bichos (1945), seu livro anterior, faturou, até a data de sua
morte, 12 mil libras, 1984 (1949), romance distópico que o próprio autor
descreveu como “abominável” e “horroroso”, deveria faturar 500 libras.
Errou
por muito.
“Orwell escreveu seu derradeiro livro
desenganado. Àquela altura, não estava preocupado com o sucesso da obra, mas
com a mensagem que buscava transmitir”, explica o advogado e escritor José
Roberto de Castro Neves, autor do prefácio de 1984 (Nova Fronteira, 2021).
“Numa história que se repete, ridículos
tiranos (e perigosos) surgem, ameaçando a liberdade. Por vezes, têm êxito – e a
civilização anda para trás. Hoje, o mundo assiste a uma guerra, com a invasão
da Ucrânia. O chefe de Estado do país invasor determinou que, no seu país, não
se pode usar o termo ‘guerra’, nem se admite qualquer crítica às forças armadas.
Naquela nação, 1984 não é ficção, mas realidade. Isso dá uma boa mostra do
motivo pelo qual esse livro ainda nos emociona”, disse.
• “Fatos alternativos”
O
tempo provou que George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, estava
enganado a respeito de seu último livro. Em menos de um ano, 50 mil cópias
foram vendidas na Grã-Bretanha e outras 170 mil nos EUA.
Setenta
e quatro anos depois de seu lançamento, no dia 8 de junho de 1949, continua
frequentando a lista dos mais vendidos. Estima-se que tenha sido traduzido para
65 idiomas e vendido mais de 100 milhões de exemplares.
Em
janeiro de 2017, suas vendas registraram um pico de 9.500% nos EUA. O motivo? O
porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, declarou que a cerimônia de posse do
presidente Donald Trump atraiu o maior público da história. Questionada sobre a
falsidade da informação, a então assessora especial, Kellyanne Conway, não
desmentiu o colega e, ainda, criou a expressão “fatos alternativos”.
Na
obra-prima de Orwell, duplipensar é aceitar duas crenças simultaneamente
contraditórias. Ou, como diria o autor, “contar mentiras deliberadas e ao mesmo
tempo acreditar genuinamente nelas”.
“Muita gente pensa que, por ter feito sucesso
nos EUA, 1984 é uma crítica ao comunismo. Não é. É uma crítica ao totalitarismo”,
pondera o jornalista e escritor Ronaldo Bressane, autor do posfácio da edição
da Tordesilhas.
“Toda
semana, o ministro da Economia Paulo Guedes dizia que o Brasil estava
‘decolando’. Enquanto isso, os indicadores econômicos mostravam exatamente o contrário”.
“O
intuito das ‘fake news’”, prossegue Bressane, “é criar uma narrativa, uma visão
de mundo, para os apoiadores de governos fascistas e autoritários acreditarem
em algo que não está acontecendo, uma realidade paralela”.
• “Um dos livros mais apavorantes que já
li”
Um
dos primeiros a gostar de 1984 foi o próprio Warburg. “É um dos livros mais
apavorantes que já li”, afirmou.
Segundo
o biógrafo Bernard Crick, autor de George Orwell: A Life (1980), partiu dele,
Warburg, a ideia de mudar o título para algo mais comercial. Se dependesse de
Orwell, 1984 teria entrado para a história como O Último Homem da Europa.
Quanto
ao porquê de Orwell ter escolhido o título de 1984, não há consenso. A hipótese
mais aceita é a de que se trata de uma inversão satírica de 1948, o ano em que
o livro foi concluído.
“É
sempre importante ler e reler 1984. Ainda hoje, é o romance que melhor descreve
as engrenagens do poder. Avisa o leitor para ficar atento a abusos e
manipulações, e mostra até onde isso pode nos levar”, alerta o jornalista e
escritor Dorian Lynskey, de O Ministério da Verdade – Uma Biografia de 1984, o
Romance de George Orwell (Companhia das Letras, 2021).
“Winston
Smith termina a história como herói, mas começa como cúmplice dos crimes
praticados pelo Big Brother. Orwell não estava escrevendo sobre mocinhos e
bandidos. Estava dizendo que todos nós temos potencial para sermos corrompidos,
mas que podemos escolher entre nos entregar ao poder e à ideologia ou resistir
a eles”.
A
pedido de Orwell, um dos primeiros exemplares foi enviado para Aldous Huxley,
seu professor de francês na escola de Eton, na Inglaterra.
Em
carta, o autor de Admirável Mundo Novo (1932) elogiou 1984: “Não preciso te
dizer o quão bom e profundamente importante o livro é”, escreveu em 21 de
outubro de 1949.
• “Quem controla o passado controla o
futuro”
1984
é o ano em que se passa a história. O mundo está dividido em três
superpotências. Ou, como prefere Orwell, superestados. São eles: Oceânia,
Eurásia e Lestásia.
O
protagonista da história, um funcionário público chamado Winston Smith, vive na
Oceânia, o maior dos três. Compreende o Reino Unido, a América, a Oceania,
grande parte do sul da África e dois países da Europa: Islândia e Irlanda.
Já
a Eurásia abrange toda a Europa (exceto Reino Unido, Islândia e Irlanda), quase
toda a Rússia e pequena parte da Ásia. A Lestásia engloba boa parte da Ásia,
como China, Japão e Coreia, parte da Índia e algumas nações vizinhas.
Winston
Smith, de 39 anos, vive em Londres, a capital da Pista de Pouso Um,
anteriormente conhecida como Grã-Bretanha. Trabalha em um dos quatro
ministérios: o da Verdade, no Departamento de Documentação. Na fachada do
edifício, os lemas do Partido: “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e
“Ignorância é Força”.
Seu
trabalho é reescrever a história segundo a versão oficial do Partido. Para
tanto, falsifica documentos. “Quem controla o passado controla o futuro; quem
controla o presente controla o passado”, diz um trecho da obra.
Os
outros três ministérios são: da Paz, do Amor e da Fartura. O primeiro
supervisiona a guerra, o segundo espiona os cidadãos e o terceiro controla a
economia.
Ao
longo da história, Winston Smith comete pelo menos dois delitos graves: escreve
um diário e se apaixona por Júlia, uma colega de trabalho. Certo dia, a
funcionária do Departamento de Ficção entrega a Winston um bilhete com uma
mensagem subversiva: “Eu te amo”. Sim, pensar e amar são crimes em Oceânia.
Juntos, Winston e Júlia planejam ingressar num movimento clandestino de
resistência, a Confraria.
Quem
governa a Oceânia é o líder do Partido, o Grande Irmão, que tudo vê e controla.
Pelas ruas da cidade, cartazes lembram disso a toda hora: “O Grande Irmão está
de olho em você!”. Dentro das casas, teletelas funcionam tanto como aparelhos
de televisão quanto como câmeras de vigilância.
Há
outros dois personagens: O’Brien, um agente do governo que se passa por membro
da resistência, e Emmanuel Goldstein, um ex-membro do Partido que lidera a
oposição. Segundo estudiosos, o Grande Irmão teria sido inspirado em Josef
Stalin e Goldstein em Leon Trotsky.
“Não creio que o tipo de sociedade que
descrevi vá necessariamente ocorrer”, declarou Orwell, em 1949, “mas estou
convencido de que algo parecido poderia ocorrer”. E fez um importante alerta:
“O totalitarismo, caso não seja combatido, pode triunfar por toda a parte”.
“Os
livros de Orwell continuam populares porque ele considerava os regimes
autoritários, de esquerda ou de direita, como um perigo em potencial”, afirma o
professor universitário Richard Bradford, autor de Orwell – Um Homem do Nosso
Tempo (Tordesilhas, 2020).
“Em
A Revolução dos Bichos e 1984, dois de seus livros mais famosos, mostrou que
tais regimes não teriam que ser necessariamente impostos à população. Se os
cidadãos fossem manipulados com ‘duplipensamentos’, ou o que hoje é mais
conhecido como ‘fake news’, eles apoiariam qualquer coisa. E Orwell estava
certo”.
• “Não deixe isso acontecer. Depende de
você”
No
ensaio Por que escrevo (1946), Orwell classificou o ato de escrever como
“horrível” e “exaustivo”, e o comparou a “uma doença penosa”. No caso de 1984,
levou três anos para concluir o livro.
Entre
outras influências, citava a obra de H.G. Wells, autor de clássicos da
ficção-científica como A Máquina do Tempo (1895), O Homem Invisível (1897) e A
Guerra dos Mundos (1898), e o livro Nós (1920), do escritor russo Ievguêni
Zamiátin.
Boa
parte de 1984 foi escrito na ilha de Jura, na Escócia, numa propriedade rural
chamada Barnhill. O vilarejo mais próximo, Ardlussa, ficava a onze quilômetros
de distância.
Na
fazenda, Orwell criou galinhas, plantou hortaliças e caçou coelhos. Por vezes,
precisou interromper seu trabalho para cuidar da saúde. Tinha surtos de febre e
acessos de tosse. Certa vez, chegou a ser internado no Hospital Hairmyres,
perto de Glasgow. “Tudo aqui floresce. Menos eu”, queixou-se ao deixar a ilha,
pela última vez, em 9 de janeiro de 1949.
Como
todo escritor, também tinha suas manias. Uma delas era reescrever incontáveis
vezes os parágrafos. De tantas emendas e correções, as páginas ficavam
simplesmente ilegíveis.
A
primeira frase de 1984, por exemplo, passou por diversas versões. Começou como
“Era um dia frio e ventoso no começo de abril, e num milhão de rádios soavam as
13 horas”, e terminou como “Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios
davam 13 horas”.
Quando
foi hospitalizado, deixou ordens claras para que, caso morresse, seu manuscrito
fosse destruído.
Foi
do leito de um hospital, o Sanatório Cranham, em Cotswolds, na Inglaterra, que
Orwell, a pedido de Warburg, ditou, em 15 de junho de 1949, um breve comunicado
à imprensa: “A moral a ser tirada dessa perigosa situação de pesadelo é
simples: Não deixe isso acontecer. Depende de você”.
• “Estive a ponto de quebrar o aparelho de
televisão com um martelo”
Embora
não gostasse muito de 1984, Orwell escreveu para o escritor e roteirista Sidney
Sheldon, perguntando a ele se não gostaria de adaptá-lo para o teatro. Não deu
em nada.
Vítima
de tuberculose, George Orwell morreu em 21 de janeiro de 1950, aos 46 anos,
apenas sete meses depois do lançamento de 1984. Não viveu o suficiente para
assistir à primeira versão audiovisual da obra. Foi ao ar no dia 12 de dezembro
de 1954.
No
filme escrito por Nigel Kneale e dirigido por Rudolph Cartier, Winston Smith
foi interpretado por Peter Cushing.
Os
telespectadores não gostaram do que viram. E telefonaram, indignados, para a
rede britânica BBC. “Se é assim que vai ser o futuro, prefiro enfiar minha
cabeça no forno a gás”, reclamou um. “Foi tão horrível que estive a ponto de
quebrar o aparelho de televisão com um martelo”, esbravejou outro.
Não
satisfeitos, ligaram, também, para a casa de George Orwell. Só não sabiam que o
Orwell que constava da lista telefônica não era o original e, sim, um homônimo.
Cansada de atender a tantos telefonemas raivosos, sua mulher, Elizabeth, fez um
apelo desesperado ao jornal Daily Mirror: “Por favor, digam às pessoas que o
meu marido NÃO é o autor dessa peça de TV”.
• “Tudo certo como dois e dois são cinco”
Apenas
dois anos depois, Michael Anderson adaptou o livro para o cinema. Dessa vez, o
protagonista foi vivido por Edmond O’Brien.
A
versão mais famosa de 1984 talvez seja a de 1984, dirigida por Michael Radford
e estrelada por John Hurt. A trilha-sonora foi assinada pela dupla Annie Lennox
e Dave Stewart, do Eurythmics. Destaque para a faixa Sex Crime (Nineteen
Eighty-Four).
Na
música, assim como no cinema, 1984 inspirou outros artistas: do cantor David
Bowie, que praticamente dedicou um disco inteiro ao livro, Diamond Dogs (1974),
à banda Radiohead, que abriu o álbum Hail to the Thief (2003) com a música
2+2=5. No caso do roqueiro inglês, a ideia original era fazer um musical, mas a
viúva de Orwell, Sônia, não autorizou.
No
Brasil, a canção Como Dois e Dois, composta por Caetano Veloso e gravada por
Roberto Carlos, faz referência a um trecho do livro: “No fim, o partido haveria
de anunciar que dois mais dois são cinco, e você seria obrigado a acreditar”.
No refrão da música, a letra diz: “Meu amor / Tudo em volta está deserto, tudo
certo / Tudo certo como dois e dois são cinco”. A música foi lançada em 1971,
em plena ditadura militar.
“Graças
a Orwell, o grande público teve acesso a conceitos como ‘Grande Irmão’, a
encarnação dos mecanismos da sociedade de controle, ou ‘novafala’, que denuncia
os eufemismos e as distorções do discurso político, e tantos outros a que,
ainda hoje, recorremos para entender a realidade à nossa volta”, analisa a
escritora Jacinta Maria Matos, autora de George Orwell – Biografia Intelectual
de Um Guerrilheiro Indesejado (Edições 70, 2019).
“Em
suma: Orwell conseguiu pôr em prática um dos seus grandes desideratos como
escritor: criar um espaço de discussão pública e democrática sobre algumas das
questões essenciais da nossa sociedade”.
• “Código apocalíptico dos nossos piores
medos”
Ao
longo das décadas, 1984 se consolidou como uma das obras mais influentes do
século 20. De livros, como O Conto da Aia (1985), da escritora canadense
Margaret Atwood, a séries de TV, como Black Mirror (2011), do roteirista inglês
Charlie Brooker. De HQs, como V de Vingança (1997), do quadrinista britânico
Alan Moore, a reality shows, como Big Brother (1999), do produtor holandês John
de Mol.
Autor
de Laranja Mecânica (1962), o escritor britânico Anthony Burgess chamou 1984 de
“código apocalíptico dos nossos piores medos”.
No
Brasil, 1984 inspirou história em quadrinhos, ilustrada pelo desenhista Fido
Nesti, ganhador do Prêmio Eisner de melhor adaptação, e virou peça de teatro,
encenada por Zé Henrique de Paula a partir da adaptação de Duncan MacMillan e
Robert Icke. Na montagem, Winston Smith é interpretado por Rodrigo Caetano.
“Clássico
é aquela obra que nunca pára de dizer o que tem a dizer. E o romance 1984 traz
um verdadeiro compêndio de temas que nos interessam ainda hoje”, afirma o
diretor Zé Henrique de Paula.
“É
como se Orwell tivesse captado o zeitgeist (‘o espírito da época’) do
pós-guerra e dos primeiros passos da Guerra Fria, mas, ao mesmo tempo, tivesse
conseguido acertar um tiro de longa distância no zeitgeist dos nossos dias: uma
sociedade mergulhada na vigilância do indivíduo e na perda de privacidade,
manipulação midiática e pós-verdade, governos autoritários, alienação e
imbecilização sociais. A lista de paralelos é extensa, mas só os exemplos acima
já dão uma ideia da importância de Orwell”.
Fonte:
BBC News Brasil
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