Fumo
de terceira mão: como substâncias do cigarro 'se agarram' a objetos e fazem mal
à saúde
Você já ouviu falar de fumo de terceira mão? O
conceito é direto e simples: as substâncias liberadas durante a queima do
cigarro impregnam móveis, tecidos ou paredes.
"E elas podem permanecer nesses objetos e
superfícies por dias, semanas, meses ou até anos e representam riscos à
saúde", completa o oncologista clínico Marcelo Cruz, do Hospital
Sírio-Libanês, em São Paulo.
Embora esse problema seja descrito em trabalhos
científicos desde a década de 1950, ele é pouco conhecido em comparação com o
fumo passivo — quando um indivíduo que não é usuário do tabaco inala
diretamente a fumaça baforada por alguém que esteja próximo.
Um levantamento feito em 2009 nos Estados Unidos
calculou que apenas 43% dos tabagistas acreditam que o fumo de terceira mão
seria danoso às crianças, enquanto que 84% deles dizem conhecer bem os perigos
do fumo passivo.
Os especialistas alertam que o contato com esses
compostos químicos pode fazer mal à saúde — e já existem alguns trabalhos
preliminares, feitos em roedores, que apontam o risco de problemas
comportamentais, como a hiperatividade, e até de lesões em órgãos como os
pulmões e o fígado.
Entenda a seguir o que já se sabe sobre esse
fenômeno e o que pode ser feito para evitá-lo.
·
Moléculas impregnadas
De acordo com o Ministério da Saúde, o cigarro
carrega mais de 4,7 mil substâncias tóxicas.
Algumas delas, como a nicotina, a naftalina e os
formaldeídos, são liberadas durante o processo de queima e ficam vagando pelo
ambiente misturadas à fumaça.
Aos poucos, elas "grudam" nas superfícies
e nos objetos, principalmente naqueles que são revestidos por tecidos, como
tapetes, carpetes, toalhas, cortinas e na própria roupa.
Muitos desses compostos também já foram detectados
"agarrados" aos móveis e à tinta das paredes.
O primeiro trabalho sobre o tema foi publicado em
1953 por médicos americanos. Eles demonstraram que a nicotina se condensa
(passa do estado gasoso para o líquido) e, quando aplicada nas costas de ratos,
causaria tumores de pele.
Em 1991, uma investigação feita na Dinamarca
encontrou partículas dessa mesma substância (que causa uma dependência química
muito forte) na poeira de casas onde moravam fumantes.
Já em 2008, um grupo da Universidade Estadual de San
Diego, nos EUA, avaliou substâncias encontradas nos carros de tabagistas e
descobriu que até o painel do veículo carrega poluentes encontrados nesse
produto, mesmo que a pessoa não tenha o costume de acender o cigarro quando
está dirigindo.
Mais recentemente, em março de 2020, uma equipe da
Universidade Yale, também nos Estados Unidos, mediu a presença de alguns desses
compostos químicos numa sala de cinema.
Os cientistas descobriram que em filmes com uma
classificação etária mais restrita (o que indica a presença de um número maior
de adultos e possivelmente mais fumantes naquele espaço fechado) há uma
concentração considerável de compostos danosos à saúde, mesmo que seja proibido
fumar neste local.
Os autores então concluíram que os fumantes carregam
consigo esses químicos por meio da pele e das roupas, mesmo que não estejam
tragando um cigarro naquele exato momento. Eles estimaram que a quantidade de
compostos "agarrados" ao corpo dessas pessoas chega a equivaler ao contato
de um a dez cigarros pelo fumo passivo.
Por fim, Cruz cita um trabalho publicado em
fevereiro deste ano, em que os cientistas analisaram a presença de nicotina nas
mãos de crianças.
De 311 voluntários com menos de 12 anos que não
tinham contato direto com algum fumante, 296 (ou 95% do total) apresentavam
essa substância na superfície da pele.
Já num grupo de 193 crianças cujos familiares são
usuários do tabaco, essa taxa chegou a 97,9%.
·
Riscos pouco conhecidos
Embora os especialistas se preocupem com essa
exposição a tantos compostos químicos, são poucas as pesquisas que estimam com
exatidão os impactos do fumo de terceira mão na saúde.
Um estudo feito na Universidade da Califórnia em
Riverside, nos EUA, avaliou em roedores os possíveis estragos do contato de
terceira mão com as substâncias do cigarro.
Depois de um tempo, os animais expostos a objetos
contaminados por esses compostos químicos foram diagnosticados com alguns
problemas físicos e comportamentais.
As cobaias sofreram com danos nos pulmões e tinham
mais propensão a condições inflamatórias, como a Doença Pulmonar Obstrutiva
Crônica (DPOC) e a asma. Eles também apresentaram alterações no fígado que
precedem quadros como cirrose, câncer e doenças cardiovasculares.
Os cientistas também realizaram testes
comportamentais e viram que os ratos expostos ao fumo de terceira mão
demonstravam com mais frequência sinais de hiperatividade.
Que fique claro: pesquisas desse tipo são
consideradas preliminares e não é possível afirmar com toda a certeza que esses
mesmos problemas se repetem nas pessoas. Mesmo assim, elas servem de base para
que outros estudos, com voluntários humanos, possam acontecer no futuro.
"Infelizmente, ainda são poucos os dados que
temos sobre o fumo de terceira mão ou do quanto risco ele representa para o
desenvolvimento de um câncer", admite Cruz.
"Mesmo assim, esse problema deve ser encarado
com preocupação, ainda mais quando consideramos as crianças, que têm contato
com muitas superfícies contaminadas", complementa o oncologista.
A própria estatura do público infantil já facilita
essa proximidade com tapetes e móveis onde esses compostos do cigarro se
depositam.
Além disso, os pequenos correm maior risco por
levarem a mão à boca com mais frequência e estarem num estágio de formação dos
órgãos vitais e do próprio sistema imunológico.
·
O que fazer?
Os especialistas apontam que a recomendação mais
óbvia para diminuir o risco do fumo direto, passivo ou de terceira mão é
simplesmente não fumar.
Existem tratamentos que ajudam a largar o vício —
alguns deles estão disponíveis, inclusive, no Sistema Único de Saúde (SUS).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que o
cigarro causa mais de 8 milhões de mortes todos os anos.
O contato direto ou indireto com todas as milhares
de substâncias contribui para o desenvolvimento de mais de 15 tipos de câncer
diferentes, além de estar relacionado com infarto, acidente vascular cerebral
(AVC), DPOC, tuberculose, infecções respiratórias, úlceras no estômago e no
intestino, impotência sexual, infertilidade e catarata.
O Instituto Nacional de Câncer (Inca) estima que 443
brasileiros morram todos os dias por causa do tabagismo. Por ano, 161 mil
mortes relacionadas ao cigarro poderiam ser evitadas no país.
Já para aqueles que não desejam abandonar o cigarro
agora, a dica é nunca fumar em ambientes fechados ou próximos demais da casa,
do escritório ou de espaços públicos.
A remoção de muitos desses compostos químicos que
estão "agarrados" em objetos e superfícies parece algo difícil de
fazer. Uma publicação dos Centros de Tratamento do Câncer da América, nos EUA,
aponta que "os métodos de limpeza normais não são efetivos contra esses
poluentes".
"Na maioria das vezes, a única opção é trocar
carpetes e pintar de novo as paredes da casa", informa o texto.
Para Cruz, o conceito do fumo de terceira mão
"reforça como é importante manter o ambiente limpo e livre do
cigarro".
"Como se sabe, algumas dessas substâncias podem
ficar impregnadas por semanas, meses ou até anos e eventualmente prejudicar a
saúde de pessoas que nem estavam ali junto com os fumantes."
"Estamos tão habituados a falar dos riscos do
tabagismo ou do fumo passivo que às vezes esquecemos desses efeitos indiretos.
Ou seja, não basta apenas fumar num outro cômodo da casa ou abrir uma janela
para dissipar a fumaça", continua o oncologista.
"É preciso pensar nas crianças e em como um
hábito pode fazer mal a toda uma população que é mais vulnerável",
conclui.
Fonte: BBC News Brasil
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