Direito
indígena: cláusula pétrea
Em razão da aprovação do Projeto de Lei 490/2007 na Câmara
dos Deputados, no dia 30 de maio de 2023, retornou à discussão pública a
questão sobre a viabilidade, ou não, de modificação do artigo 231 da Constituição Federal, que trata dos
direitos indígenas.
Não é a primeira vez que tratamos do tema, mas, em
razão da relevância da matéria e com intenção de contribuir com a reflexão, entendemos
por bem atualizar o artigo publicado no site de notícias jurídicas JOTAinfo no dia 7 de junho de 2021.
À época da publicação do referido artigo,
o Supremo Tribunal Federal (STF) estava em vias de iniciar o
julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365, por meio do plenário virtual, que fixará o entendimento da Corte
sobre ocupação tradicional indígena e a sua abrangência.
De lá para cá, o julgamento saiu do plenário virtual
para o físico, foi iniciado e conta com voto proferido pelo relator,
ministro Edson Fachin, e voto divergente, do ministro Nunes Marques. Atualmente, o processo se encontra pautado para a
sessão do dia 7 de junho, quando deve ser retomado o julgamento.
Em seu voto, proferido no dia 9 de setembro de 2021,
o ministro Edson Fachin atendeu ao pedido do povo Xokleng e firmou a imutabilidade do artigo 231 da
Constituição Federal. O relator afirma:
(…) Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no
artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna,
consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte
reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou
dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando
constitucional do artigo citado:
(…)
Em segundo lugar, os direitos emanados
do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às
decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o
exercício desses direitos (…). Em terceiro lugar, por se tratar de direito
fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a
proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à
própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de
viver.
(…)
Finalmente, em consonância com o entendimento acima
manifestado, entendo que, por se tratar de direito fundamental, a interpretação
adequada à aplicação do artigo 231 deve levar em consideração o
princípio da máxima eficácia das normas constitucionais, pois se nos termos
do artigo 5º, §2º do texto constitucional, “os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que
a República Federativa do Brasil seja parte”, faz-se necessário
manter coerência com uma hermenêutica que cumpra os objetivos da Constituição.
Sobre a matéria, também já havia se posicionado
publicamente o ministro Roberto Barroso, em entrevista concedida ao Jornal O Globo, em
abril de 2021, na qual afirma: “O direito dos povos indígenas à terra é
cláusula pétrea”.
Embora o julgamento em questão não tenha por objeto
o PL 490, ele certamente lançará luzes acerca da flagrante
inconstitucionalidade formal e material da proposta legislava levada a cabo
pela Câmara dos Deputados. Vale rememorarmos os fundamentos que levaram o
povo Xokleng a suscitar o pronunciamento da Suprema Corte sobre a
matéria.
O RE 1.017.365 diz respeito à demarcação
da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng. O processo é originário da Justiça Federal de Santa
Catarina e chegou ao STF por meio de um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai),
que defende o direito territorial do povo. Ao aplicar o instituto da
repercussão geral no caso, por unanimidade, no início de 2019, o STF indica que
pretende julgar o processo e fixar ali uma tese, a qual servirá a todos os
povos indígenas do Brasil, numa perspectiva de resolução definitiva para a
matéria.
O povo Xokleng é parte nesse processo, direito que adquiriu tão somente quando o
caso já havia chegado ao Supremo. Embora possa causar certo estranhamento para
os profissionais de direito essa constatação, fato é que o direito de acesso
à justiça para os povos indígenas no Brasil, apesar de garantido pela Constituição Federal, ainda enfrenta um grande
desafio para a sua plena realização, uma vez que é recorrente a tramitação de
processos judiciais sem a citação das comunidades diretamente afetadas.
Contudo, o elemento mais importante para o caso é
que o povo Xokleng, por meio dos seus advogados, defendeu nos autos o
direito constitucional dos povos indígenas como cláusula pétrea, inamovível e
inflexível.
Assim concluiu o povo, no item 12 de suas alegações
finais, entregues ao Supremo no ano de 2020: “os artigos 231 e 232
da Constituição Federal de 1988 consistem em cláusulas pétreas,
inatingíveis pelo poder constituinte reformador, sendo vedado, ainda, o
retrocesso hermenêutico”.
Por tais motivos, entendemos que, além do direito à
terra, são também cláusulas pétreas o direito dos povos
indígenas à organização social, à crença, ritos, línguas, usos e costumes,
tradições e o direito de acesso à justiça.
A garantia de inflexão e inamovibilidade do
direito à terra e da exclusividade do seu usufruto se estende e sustenta
todos os demais direitos, pois derivados que são, todos eles,
do território ancestral, originário.
Podemos afirmar, sem risco de erro, que estamos
falando de cláusulas pétreas ao analisar os artigos 231 e 232 da nossa Carta
Política de 1988, porque ali está o complexo e bem definido estatuto
jurídico-constitucional da causa indígena. Daí que, nos termos do artigo 60, §
4º, da Constituição Federal, são direitos conquistados que não se submetem
ao poder reformador, pois são garantias individuais.
Segundo o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), as Cláusulas Pétreas traduzem “a vontade da Assembleia
Constituinte de retirar do poder constituinte reformador (…) a possibilidade de
alterar determinado conteúdo da Constituição em razão de sua importância. Para
alterar conteúdo disposto em cláusulas pétreas, é preciso promulgar uma nova
Constituição”.
O debate sobre a inamovibilidade do direito
constitucional indígena foi levado ao Supremo pela comunidade indígena
Xokleng com o fito de obliterar retrocessos, seja no campo do Judiciário,
seja na esfera dos demais poderes da República, e garantir a manutenção da
higidez do texto constitucional.
Nesse sentido, o fato de o direito indígena estar
fora do Título II da Constituição não implica em dizer, por esse fator, que não
estaria assegurado pela barreira de imutabilidade.
Diz o professor Daniel Sarmento, sobre o
assunto, que o “STF já afirmou que a localização de um direito
constitucional fora do Título II da Constituição, que trata dos direitos e
garantias fundamentais, não basta para descaracterizá-lo como cláusula pétrea”.
Para o professor, pode-se “invocar ainda outra razão adicional para
considerar o direito as terras indígenas como cláusula pétrea. É que a
interpretação constitucional deve dialogar com o Direito Internacional,
especialmente no campo dos Direitos Humanos”.
Nessa linha de raciocínio, para reforçar a garantia
da inamovibilidade do direito indígena, a Corte Constitucional, no ano de
2011, ao julgar o ARE 639.337, de relatoria do Ministro Celso de Mello, firmou que “o
Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só
de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao
texto constitucional, a preservá-los”.
Todos os elementos do direito indígena que conformam
o Capítulo VIII do Título VIII da Carta de 1988 são direitos
individuais indígenas, em certo plano; mas vão muito além, diante da cosmovisão
indígena, por serem direitos indisponíveis manejados no plano da coletividade,
considerando a relação multicultural e pluriétnica das gentes indígenas, e por
isso são cláusulas pétreas, inamovíveis, e contam com a proibição do
retrocesso.
Então, justamente pelo fato de a
nossa Constituição reconhecer a organização social dos índios, com
todos os seus sistemas, inclusive o sistema jurídico, garante que ali estão
justapostos direitos individuais e coletivos, protegidos pela imutabilidade do
artigo 60, §4º.
Tanto o direito cultural como
o direito territorial – portanto, direito material e imaterial
dos índios – que perfazem para as etnias brasileiras um conjunto
cosmológico, contínuo e universal, estão sistematizados em direito escrito,
presente na Carta Magna; mas estão edificados também na mundividência e
cosmovisão indígena (direito não escrito). Esse direito à diferença,
fundamentado no Capítulo Dos Índios, garante também a existência de
direitos costumeiros, sustentados na oralidade e que, justamente por isso, são
cláusulas pétreas.
Restringir esse direito sistêmico não escrito dos
índios, previsto e albergado no artigo 231 da Constituição Federal, por
interpretação judicial ou por Emenda Constitucional, seria reduzir a vontade do
constituinte originário e incorrer em vício de inconstitucionalidade. O mesmo
ocorre com a proposta de limitar os direitos territoriais indígenas com base em
um marco temporal, como propõe a teoria, flagrantemente inconstitucional, do
chamado “fato indígena”.
Portanto, qualquer medida judicial, administrativa
ou legislativa, como o PL 490/2007, que vise alterar o texto constitucional, na parte
que regula os direitos indígenas, é inconstitucional, pois estes são
protegidos pela barreira da imutabilidade do artigo 60, § 4º da Carta de
1988, o que se soma à força do princípio da proibição do retrocesso em matéria
de direitos humanos.
Por isso mesmo defende o
povo Xokleng na Suprema Corte a inteireza da tese do
indigenato e do direito originário, edificados por vontade do Constituinte
Originário nos artigos 231 e 232 da Constituição, tornando esse direito
plural dos índios em verdadeiras cláusulas pétreas.
Ø Aprovação do PL 490 pela Câmara ataca direitos indígenas, a Constituição
e a democracia. Nota do CIMI
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi)
lamenta profundamente o ocorrido na noite de 30 de maio de 2023, quando o
plenário da Câmara Federal aprovou o texto final do Projeto de Lei (PL) 490/2007 por 283 votos a 155. Este PL busca inviabilizar as demarcações
dos territórios indígenas, determina a aplicação da nociva e inconstitucional
tese do “marco temporal”, legaliza o genocídio contra os povos em
isolamento voluntário ao permitir o contato com esses povos, flexibiliza o
usufruto exclusivo dos territórios para a exploração de terceiros e extingue o
direito de consulta aos povos segundo a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se de um duro ataque e afronta
aos direitos dos povos indígenas no Brasil e à Constituição
Federal.
O ataque aos direitos dos povos
originários intensificou-se a partir da aprovação do requerimento de
urgência para o trâmite desse PL na Câmara Federal. O pedido foi apresentado
por um deputado bolsonarista, que argumentou que este projeto é um instrumento
de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é
pressionar a Suprema Corte a retirar de pauta o julgamento
do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365, que
trará uma decisão do STF sobre a tese do marco temporal e está
previsto para ser retomado no próximo dia 7 de junho.
Outra ofensiva veio por parte da Comissão Mista
da Medida Provisória (MP) 1154, que retirou atribuições fundamentais dos Ministérios dos Povos Indígenas e do Meio
Ambiente. Ali estava clara e estampada a articulação da
chantagem do Legislativo aos outros dois poderes – ao Judiciário, com o PL
490, e ao Executivo, com as mudanças na MP 1154.
Ontem, 30 de maio, na abertura da sessão do plenário
para a votação do PL 490, o presidente da casa, Arthur
Lira (PP/AL), externou que estava colocando o projeto em votação porque
“não houve acordo”. Em seguida, o líder do governo na Câmara, José
Guimarães (PT/CE), afirmou ter feito “pressão sobre o STF” para que o
julgamento fosse retirado de pauta. Estava explícito o mecanismo de chantagem
ao STF, que não recuou de seu papel de defensor e garantidor
da Constituição Federal e manteve o julgamento.
A aprovação do PL 490 é uma reação
desesperada da turba ruralista do agronegócio diante da possibilidade
de que seja confirmada a inconstitucionalidade do marco
temporal. Assanha esses setores econômicos para continuar as invasões e
destruição de todo o ambiente, em especial os territórios indígenas. E acena
para a intensificação das invasões dos territórios indígenas por garimpeiros,
madeireiros, grileiros e fazendeiros, liberando estes territórios para sua
exploração por empresas e empreendimentos do chamado “capital verde”. Além de
todo esse desastre, a aprovação do PL 490 vai contribuir ainda mais para
o aumento da violência contra esses povos e o meio ambiente.
Ontem foi uma noite escura para a maioria do povo
brasileiro e para todo o mundo, porque o impacto sobre os territórios
indígenas irá afetar a todos. A Câmara dos Deputados, comandada
pelo ruralismo retrógrado, permanece, mesmo no governo atual, na
contramão do mundo todo, em plena era de intensas mudanças climáticas que
ameaçam a sobrevivência e existência de toda a humanidade. É cientificamente
comprovado que os territórios indígenas, com suas florestas em pé e toda a biodiversidade
neles existentes, exercem um papel fundamental no combate aos
efeitos nocivos das mudanças climáticas em todo o planeta.
Alertamos que quaisquer violências cometidas
contra as lideranças e povos indígenas que advirem a partir desse
momento fatalmente estarão sob a responsabilidade daqueles que votaram a favor
do PL 490.
Ao votar um projeto que, na prática, retira direitos
fundamentais constitucionalmente assegurados aos povos indígenas, a Câmara
Federal atacou a própria Constituição. Confiamos que o Senado, para onde
segue agora a tramitação do PL 490, retome o senso político do Poder
Legislativo e aguarde serenamente a decisão do julgamento sobre o marco
temporal que será retomado pelo STF no próximo dia 7 de junho.
É imprescindível ressaltar a coragem de todas e
todos, convocando-os a permanecerem firmes na defesa da vida:
– ao STF, para manter a pauta
do julgamento na data prevista e exercer sua competência de prezar
pela Constituição Federal e garantir a integridade dos direitos ali
concebidos;
– aos povos indígenas, reiteramos nossa
solidariedade e compromisso de continuar a luta em defesa dos direitos e da
vida no planeta, confiantes que a tese do marco temporal será definitivamente
superada em breve por sua inconstitucionalidade;
– às lutadoras e lutadores que,
cotidianamente, semeiam a esperança, o nosso apelo para fortalecer sempre a
nossa organização e mobilização necessárias para a defesa incondicional
da vida plena e abundante para todas e todos.
Brasília, 31 de maio de 2023.
Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Fonte: Cimi

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