domingo, 4 de junho de 2023

Direito indígena: cláusula pétrea

Em razão da aprovação do Projeto de Lei 490/2007 na Câmara dos Deputados, no dia 30 de maio de 2023, retornou à discussão pública a questão sobre a viabilidade, ou não, de modificação do artigo 231 da Constituição Federal, que trata dos direitos indígenas.

Não é a primeira vez que tratamos do tema, mas, em razão da relevância da matéria e com intenção de contribuir com a reflexão, entendemos por bem atualizar o artigo publicado no site de notícias jurídicas JOTAinfo no dia 7 de junho de 2021.

À época da publicação do referido artigo, o Supremo Tribunal Federal (STF) estava em vias de iniciar o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365, por meio do plenário virtual, que fixará o entendimento da Corte sobre ocupação tradicional indígena e a sua abrangência.

De lá para cá, o julgamento saiu do plenário virtual para o físico, foi iniciado e conta com voto proferido pelo relator, ministro Edson Fachin, e voto divergente, do ministro Nunes Marques. Atualmente, o processo se encontra pautado para a sessão do dia 7 de junho, quando deve ser retomado o julgamento.

Em seu voto, proferido no dia 9 de setembro de 2021, o ministro Edson Fachin atendeu ao pedido do povo Xokleng e firmou a imutabilidade do artigo 231 da Constituição Federal. O relator afirma:

(…) Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional do artigo citado:

(…)

Em segundo lugar, os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos (…). Em terceiro lugar, por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de viver.

(…)

Finalmente, em consonância com o entendimento acima manifestado, entendo que, por se tratar de direito fundamental, a interpretação adequada à aplicação do artigo 231 deve levar em consideração o princípio da máxima eficácia das normas constitucionais, pois se nos termos do artigo 5º, §2º do texto constitucional, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, faz-se necessário manter coerência com uma hermenêutica que cumpra os objetivos da Constituição.

Sobre a matéria, também já havia se posicionado publicamente o ministro Roberto Barroso, em entrevista concedida ao Jornal O Globo, em abril de 2021, na qual afirma: “O direito dos povos indígenas à terra é cláusula pétrea”.

Embora o julgamento em questão não tenha por objeto o PL 490, ele certamente lançará luzes acerca da flagrante inconstitucionalidade formal e material da proposta legislava levada a cabo pela Câmara dos Deputados. Vale rememorarmos os fundamentos que levaram o povo Xokleng a suscitar o pronunciamento da Suprema Corte sobre a matéria.

O RE 1.017.365 diz respeito à demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama La-Klãnõ, do povo Xokleng. O processo é originário da Justiça Federal de Santa Catarina e chegou ao STF por meio de um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai), que defende o direito territorial do povo. Ao aplicar o instituto da repercussão geral no caso, por unanimidade, no início de 2019, o STF indica que pretende julgar o processo e fixar ali uma tese, a qual servirá a todos os povos indígenas do Brasil, numa perspectiva de resolução definitiva para a matéria.

O povo Xokleng é parte nesse processo, direito que adquiriu tão somente quando o caso já havia chegado ao Supremo. Embora possa causar certo estranhamento para os profissionais de direito essa constatação, fato é que o direito de acesso à justiça para os povos indígenas no Brasil, apesar de garantido pela Constituição Federal, ainda enfrenta um grande desafio para a sua plena realização, uma vez que é recorrente a tramitação de processos judiciais sem a citação das comunidades diretamente afetadas.

Contudo, o elemento mais importante para o caso é que o povo Xokleng, por meio dos seus advogados, defendeu nos autos o direito constitucional dos povos indígenas como cláusula pétrea, inamovível e inflexível.

Assim concluiu o povo, no item 12 de suas alegações finais, entregues ao Supremo no ano de 2020: “os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 consistem em cláusulas pétreas, inatingíveis pelo poder constituinte reformador, sendo vedado, ainda, o retrocesso hermenêutico”.

Por tais motivos, entendemos que, além do direito à terra, são também cláusulas pétreas o direito dos povos indígenas à organização social, à crença, ritos, línguas, usos e costumes, tradições e o direito de acesso à justiça.

A garantia de inflexão e inamovibilidade do direito à terra e da exclusividade do seu usufruto se estende e sustenta todos os demais direitos, pois derivados que são, todos eles, do território ancestral, originário.

Podemos afirmar, sem risco de erro, que estamos falando de cláusulas pétreas ao analisar os artigos 231 e 232 da nossa Carta Política de 1988, porque ali está o complexo e bem definido estatuto jurídico-constitucional da causa indígena. Daí que, nos termos do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, são direitos conquistados que não se submetem ao poder reformador, pois são garantias individuais.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Cláusulas Pétreas traduzem “a vontade da Assembleia Constituinte de retirar do poder constituinte reformador (…) a possibilidade de alterar determinado conteúdo da Constituição em razão de sua importância. Para alterar conteúdo disposto em cláusulas pétreas, é preciso promulgar uma nova Constituição”.

O debate sobre a inamovibilidade do direito constitucional indígena foi levado ao Supremo pela comunidade indígena Xokleng com o fito de obliterar retrocessos, seja no campo do Judiciário, seja na esfera dos demais poderes da República, e garantir a manutenção da higidez do texto constitucional.

Nesse sentido, o fato de o direito indígena estar fora do Título II da Constituição não implica em dizer, por esse fator, que não estaria assegurado pela barreira de imutabilidade.

Diz o professor Daniel Sarmento, sobre o assunto, que o “STF já afirmou que a localização de um direito constitucional fora do Título II da Constituição, que trata dos direitos e garantias fundamentais, não basta para descaracterizá-lo como cláusula pétrea”. Para o professor, pode-se “invocar ainda outra razão adicional para considerar o direito as terras indígenas como cláusula pétrea. É que a interpretação constitucional deve dialogar com o Direito Internacional, especialmente no campo dos Direitos Humanos”.

Nessa linha de raciocínio, para reforçar a garantia da inamovibilidade do direito indígena, a Corte Constitucional, no ano de 2011, ao julgar o ARE 639.337, de relatoria do Ministro Celso de Mello, firmou que “o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los”.

Todos os elementos do direito indígena que conformam o Capítulo VIII do Título VIII da Carta de 1988 são direitos individuais indígenas, em certo plano; mas vão muito além, diante da cosmovisão indígena, por serem direitos indisponíveis manejados no plano da coletividade, considerando a relação multicultural e pluriétnica das gentes indígenas, e por isso são cláusulas pétreas, inamovíveis, e contam com a proibição do retrocesso.

Então, justamente pelo fato de a nossa Constituição reconhecer a organização social dos índios, com todos os seus sistemas, inclusive o sistema jurídico, garante que ali estão justapostos direitos individuais e coletivos, protegidos pela imutabilidade do artigo 60, §4º.

Tanto o direito cultural como o direito territorial – portanto, direito material e imaterial dos índios – que perfazem para as etnias brasileiras um conjunto cosmológico, contínuo e universal, estão sistematizados em direito escrito, presente na Carta Magna; mas estão edificados também na mundividência e cosmovisão indígena (direito não escrito). Esse direito à diferença, fundamentado no Capítulo Dos Índios, garante também a existência de direitos costumeiros, sustentados na oralidade e que, justamente por isso, são cláusulas pétreas.

Restringir esse direito sistêmico não escrito dos índios, previsto e albergado no artigo 231 da Constituição Federal, por interpretação judicial ou por Emenda Constitucional, seria reduzir a vontade do constituinte originário e incorrer em vício de inconstitucionalidade. O mesmo ocorre com a proposta de limitar os direitos territoriais indígenas com base em um marco temporal, como propõe a teoria, flagrantemente inconstitucional, do chamado “fato indígena”.

Portanto, qualquer medida judicial, administrativa ou legislativa, como o PL 490/2007, que vise alterar o texto constitucional, na parte que regula os direitos indígenas, é inconstitucional, pois estes são protegidos pela barreira da imutabilidade do artigo 60, § 4º da Carta de 1988, o que se soma à força do princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos humanos.

Por isso mesmo defende o povo Xokleng na Suprema Corte a inteireza da tese do indigenato e do direito originário, edificados por vontade do Constituinte Originário nos artigos 231 e 232 da Constituição, tornando esse direito plural dos índios em verdadeiras cláusulas pétreas.

 

Ø  Aprovação do PL 490 pela Câmara ataca direitos indígenas, a Constituição e a democracia. Nota do CIMI

 

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lamenta profundamente o ocorrido na noite de 30 de maio de 2023, quando o plenário da Câmara Federal aprovou o texto final do Projeto de Lei (PL) 490/2007 por 283 votos a 155. Este PL busca inviabilizar as demarcações dos territórios indígenas, determina a aplicação da nociva e inconstitucional tese do “marco temporal”, legaliza o genocídio contra os povos em isolamento voluntário ao permitir o contato com esses povos, flexibiliza o usufruto exclusivo dos territórios para a exploração de terceiros e extingue o direito de consulta aos povos segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se de um duro ataque e afronta aos direitos dos povos indígenas no Brasil e à Constituição Federal.

O ataque aos direitos dos povos originários intensificou-se a partir da aprovação do requerimento de urgência para o trâmite desse PL na Câmara Federal. O pedido foi apresentado por um deputado bolsonarista, que argumentou que este projeto é um instrumento de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é pressionar a Suprema Corte a retirar de pauta o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017.365, que trará uma decisão do STF sobre a tese do marco temporal e está previsto para ser retomado no próximo dia 7 de junho.

Outra ofensiva veio por parte da Comissão Mista da Medida Provisória (MP) 1154, que retirou atribuições fundamentais dos Ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente. Ali estava clara e estampada a articulação da chantagem do Legislativo aos outros dois poderes – ao Judiciário, com o PL 490, e ao Executivo, com as mudanças na MP 1154.

Ontem, 30 de maio, na abertura da sessão do plenário para a votação do PL 490, o presidente da casa, Arthur Lira (PP/AL), externou que estava colocando o projeto em votação porque “não houve acordo”. Em seguida, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT/CE), afirmou ter feito “pressão sobre o STF” para que o julgamento fosse retirado de pauta. Estava explícito o mecanismo de chantagem ao STF, que não recuou de seu papel de defensor e garantidor da Constituição Federal e manteve o julgamento.

A aprovação do PL 490 é uma reação desesperada da turba ruralista do agronegócio diante da possibilidade de que seja confirmada a inconstitucionalidade do marco temporal. Assanha esses setores econômicos para continuar as invasões e destruição de todo o ambiente, em especial os territórios indígenas. E acena para a intensificação das invasões dos territórios indígenas por garimpeiros, madeireiros, grileiros e fazendeiros, liberando estes territórios para sua exploração por empresas e empreendimentos do chamado “capital verde”. Além de todo esse desastre, a aprovação do PL 490 vai contribuir ainda mais para o aumento da violência contra esses povos e o meio ambiente.

Ontem foi uma noite escura para a maioria do povo brasileiro e para todo o mundo, porque o impacto sobre os territórios indígenas irá afetar a todos. A Câmara dos Deputados, comandada pelo ruralismo retrógrado, permanece, mesmo no governo atual, na contramão do mundo todo, em plena era de intensas mudanças climáticas que ameaçam a sobrevivência e existência de toda a humanidade. É cientificamente comprovado que os territórios indígenas, com suas florestas em pé e toda a biodiversidade neles existentes, exercem um papel fundamental no combate aos efeitos nocivos das mudanças climáticas em todo o planeta.

Alertamos que quaisquer violências cometidas contra as lideranças e povos indígenas que advirem a partir desse momento fatalmente estarão sob a responsabilidade daqueles que votaram a favor do PL 490.

Ao votar um projeto que, na prática, retira direitos fundamentais constitucionalmente assegurados aos povos indígenas, a Câmara Federal atacou a própria Constituição. Confiamos que o Senado, para onde segue agora a tramitação do PL 490, retome o senso político do Poder Legislativo e aguarde serenamente a decisão do julgamento sobre o marco temporal que será retomado pelo STF no próximo dia 7 de junho.

É imprescindível ressaltar a coragem de todas e todos, convocando-os a permanecerem firmes na defesa da vida:

– ao STF, para manter a pauta do julgamento na data prevista e exercer sua competência de prezar pela Constituição Federal e garantir a integridade dos direitos ali concebidos;

– aos povos indígenas, reiteramos nossa solidariedade e compromisso de continuar a luta em defesa dos direitos e da vida no planeta, confiantes que a tese do marco temporal será definitivamente superada em breve por sua inconstitucionalidade;

– às lutadoras e lutadores que, cotidianamente, semeiam a esperança, o nosso apelo para fortalecer sempre a nossa organização e mobilização necessárias para a defesa incondicional da vida plena e abundante para todas e todos.

Brasília, 31 de maio de 2023.

Conselho Indigenista Missionário – Cimi.

 

Fonte: Cimi

 

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