“A
luta de classes é uma questão de habitabilidade do planeta”, diz jornalista
italiano
Bruno Latour (1947-2022) foi um dos mais versáteis e
influentes pensadores franceses. Um autêntico intelectual. Formado em filosofia
e antropologia, suas propostas em matéria de ecologia política se tornaram uma
referência de autoridade.
Hábil (e entusiasta) conhecedor dos processos de
pesquisa científica, revirou a visão convencional da ciência baseada no
dualismo natureza e sociedade, abordando diferentes
assuntos: a transformação da luta de classes marxista,
a inter-relação entre o que é humano e o que não é, a sociedade como um
processo em constante construção, o fim da modernidade..., ao mesmo tempo em que
defendia o coletivo e a concretização do compromisso ecológico.
O jornalista Nicolas Truong (Paris, 1967),
que acaba de publicar suas longas conversas com o filósofo no livro Bruno
Latour: Habitar la Tierra (Arcadia), mergulha em seu pensamento.
<<<< Eis a entrevista.
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Sua teoria mais conhecida, a do “ator-rede”, é uma
abordagem metodológica e epistemológica que propõe estudar a realidade a partir
de um mapeamento das relações que são simultaneamente materiais (entre coisas)
e semióticas (entre conceitos) e que, por sua vez, envolvem as pessoas, suas
ideias e tecnologias, que devem ser analisadas conjuntamente. Esta é a
contribuição mais importante de Latour, um pensador de enorme influência,
sobretudo entre os jovens?
Foi no último período de sua trajetória que
conseguiu fazer o grande público, sobretudo, como diz, os mais jovens,
compreender o que considero ser a sua maior contribuição: a ideia de que
vivemos em um mundo diferente, novo.
A densidade de seu pensamento dificulta o acesso a
seus livros, por isso me concedeu essas entrevistas em que fala de áreas que o
preocupavam e interessavam: direito, religião, ciência, técnica e tecnologias..., mas sua grande
contribuição é nos fazer entender que estamos em uma nova terra.
·
O que nos falta para sermos realmente modernos?
Esse é um dos pensamentos paradoxais de Latour,
que dizia que nunca fomos modernos. Não somos porque embora pensássemos assim,
não é possível viver de modo independente da natureza. Os modernos
traçaram uma diferença radical entre o homem e a natureza,
mas Latour demonstrou que isso era uma falácia.
Galileu explicou o que significava para o homem
olhar para o céu, o sol e o universo, exortou para
isso. Latour afirmou que se trata do contrário, baixar os olhos e
olhar a terra. Não para o planeta, não para o globo, mas para o pequena película de
terra em que vivemos.
Temos que viver preocupados com esse pedaço de
terra, porque somos os seres vivos que criam suas condições de vida. E,
aqui, novamente, relacionamos com essa ideia que transmitiu, especialmente às
gerações jovens, de que o mundo mudou, ao ponto de já não ser o mesmo. Ele a
formulou de uma forma muito singular, mas também coletiva.
·
Latour é um dos mais estimulantes pensadores do coletivo.
De fato, uma de suas afirmações mais sugestivas é a de que “a sociedade não
existe”, mas deve ser construída continuamente, como se fosse uma associação,
entre todos.
Sim, trabalhava sempre em grupo. No Instituto
de Estudos Políticos, criou muitos grupos de trabalho e pesquisa, considerava
que eram necessárias diferentes perspectivas e o compromisso de todos para
mudar as coisas, para conhecê-las.
Entendia essa nova ecologia a partir do
coletivo, mas também trabalhava em grupo porque estava convencido de que a
figura do filósofo que divulga seus conhecimentos de forma vertical não fazia
mais sentido. Em sua avaliação, trata-se de criar um intelecto coletivo.
Nisso, era muito parecido com o sociólogo Pierre Bourdieu. Eram muito críticos um ao outro, mas ambos
apostaram no coletivo.
O sucesso de Bruno Latour vem de sua forma
de entender e explicar a ecologia, e chegou a ela tendo estudado filosofia e vindo de
uma família burguesa que se dedicava ao comércio do vinho. Os filósofos
buscaram reduzir o mundo a um princípio, a uma síntese; as religiões, a um só
deus; os meios de comunicação, a uma manchete. No entanto, o mundo não pode ser
reduzido a uma só coisa.
Latour tinha muita clareza a esse respeito,
conhecia a complexidade e a multiplicidade de nuances que derivam das relações
entre os elementos envolvidos. Para explicar a questão, escreve seu
livro Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, optando por
um realismo construtivista em que os fatos científicos são elaborados no
laboratório, uma vez que se parte de fatos experimentais.
O que Latour faz é aplicar aos cientistas
os mesmos métodos que os etnólogos e antropólogos utilizam para conhecer os
povos africanos, demonstrando que a ciência é algo muito particular, que tem
controvérsias, que requer bricolagem, que as coisas mais mundanas também
acontecem nos laboratórios e que como fruto da interação de todas essas
variáveis surgem as verdades científicas.
Percebe que vivemos estabelecendo vínculos muito
fortes com objetos e coisas que não são humanas: animais, aparelhos etc. Ele
admirava a tecnologia, via nela uma aliada. Mas, sempre terminava no mesmo
ponto: a terra que habitamos não é mais a que conhecemos. Por isso, retoma o
conceito de Gaia, para personificar a Terra, para evidenciar
que é impossível a não interdependência entre sujeito e objeto.
Não foi o amor aos grandes espaços naturais que o
levou à ecologia, mas o estudo dessa troca entre o humano e o não-humano.
A pandemia nada mais fez do que evidenciar o que ele, há
anos, anunciava: que não é possível a separação entre cultura e natureza,
como pensavam os filósofos modernos, com esse erro de perspectiva.
·
Imbricado na ideia de que, iniciada a era do
Antropoceno, “não habitamos mais a mesma terra”, Latour considerou que o
desafio do pensamento político reside integralmente na questão ecológica. Tudo
se reduz, então, a uma questão ecológica?
De fato, essa era a visão de Latour e de
outros pensadores, como o antropólogo Descola, cujo trabalho sobre os povos indígenas da
Amazônia era bem conhecido de Latour. Todos os conflitos que
enfrentamos hoje têm a ver, de uma forma ou de outra, com a habitabilidade do planeta. Não apenas em
regiões distantes, desertificando-se a marchas forçadas.
Pensemos nos gravíssimos conflitos em Sainte-Soline,
no centro-oeste da França, onde milhares de cidadãos protestaram contra a
construção de infraestruturas de armazenamento de água porque se opunham à que
um bem como a água fique nas mãos da agroindústria. Foi um conflito muito violento, com mais de
duzentos feridos, duas pessoas em coma, e outra que ainda está entre a vida e a
morte.
É o primeiro grande conflito europeu que tem a ver
com a adaptação ao aquecimento global. Não se trata de uma rodovia
que agride a biodiversidade, não se trata de escolher entre a energia nuclear ou a eólica, trata-se de escolher
um modelo ecológico.
·
Por que a ecologia é, segundo Latour, a nova luta de
classes e o que a distingue da clássica luta de classes?
Ele apostava no surgimento de uma nova classe
social, uma classe geossocial, ecológica, da mesma forma
que, no século XIX, surgiram socialistas e liberais. Essa nova classe
recomporia a luta clássica, pois para defender um rio, exemplo que era dado
por Latour, essa nova classe poderia se aliar a parceiros que, na antiga
luta social, talvez fossem inimigos.
A luta de classes, hoje, é uma questão
de habitabilidade do planeta, para além da pobreza e a
desigualdade. Latour soube ver que as forças de
produção são forças de destruição. Nisso se diferencia da
clássica luta de classes. Tanto os liberais quanto os marxistas defendem
as forças produtivas. Nessa luta entre burgueses e proletários, Marx via a resolução no controle das forças
produtivas pelas classes operárias.
Latour sabe que a questão não é a distribuição
do fruto das produções, nem sobre quem tem as forças produtivas, mas o
fato de que as forças produtivas destroem e que é necessário
neutralizá-las. Ele me dizia que, às vezes, não escrevia porque sabia que o
simples ato de usar seu computador e seu teclado impactava no degelo. “Se eu
escrevo, uma geleira derrete em algum lugar do mundo”, dizia-me.
Tinha muita consciência do nível
de inter-relação das coisas. Constantemente, tanto ele quanto seus
colaboradores e discípulos demonstravam esses vínculos. Por exemplo, a caneta
com a qual você está anotando o que eu digo, Latour a teria
relacionado a uma mina situada em algum país distante, à geração de plástico
que causa a sua produção etc.
No consumo, há sempre interdependências que impactam
degradando o planeta. Um rio poluído afeta não só os animais que vivem ao seu
redor, os humanos, mas também as plantações de soja no Brasil, a geração
de resíduos etc. Por isso, toda questão política, hoje, é ecológica.
Não é quem controla a produção, mas a própria
produção que destrói o planeta. Este é um pensamento revolucionário. A
questão é como prosperar ao mesmo tempo em que se mantém as condições
habitáveis do planeta. É um grande desafio.
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Onde buscar “a força de não ceder à angústia, nem à
catástrofe”, em relação à emergência climática?
Tem razão, quando ouvimos notícias sobre
a mudança climática, oscilamos entre o medo e o aborrecimento, talvez
porque os meios de comunicação sejam fascinados em enumerar as catástrofes,
“adoram” falar do desaparecimento de espécies, da formação de ilhas de resíduos de plástico, mas não aprofundam sobre o que causa tudo isso.
Latour desconfiava das manifestações ou
mobilizações do tipo “salvemos o planeta”. O planeta é algo muito
abstrato, ele preferia que cada pessoa se mobilizasse por aquilo que conhecia
bem, pelas áreas verdes de seus bairros, contra a sua gentrificação, para protestar contra a construção de grandes
centros comerciais...
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Ou seja, concentrar-se na luta e não a dispersar.
Sim, Latour era pragmático e concreto.
Defendamos este rio. Este parque. Este bairro. Dessa forma, as pessoas se
envolvem muito mais.
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É por isso que ele resgata os cadernos de
reclamações da Revolução Francesa, para estimular cada cidadão a descrever
como, onde e do que vive, mas não se limitar à queixa?
Sim, exato. A primeira coisa que um cidadão precisa
fazer é saber do que vive, quais são os vínculos que estabelece, como é o lugar
onde está. É preciso encontrar uma causa com a qual se comprometer pessoalmente
e defendê-la coletivamente. E fazer isso a partir do amor, do amor a um bosque,
um rio, um bairro... não esqueçamos que a crise ecológica é uma crise da sensibilidade, porque
perdemos a sensibilidade à vida.
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Nós a perdemos ou a substituímos pela paralisia?
Sim, é uma nuance interessante... coisificamos
a natureza, nós a transformamos em objeto e pensávamos que os objetos não
têm relação conosco, mas os objetos nos definem, a técnica é uma relação entre
o que é humano e o que não é. A televisão, por exemplo, vemos o mundo através
dela. Privilegiamos o morto sobre o vivo.
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Como estabelecer uma relação “viva” entre o que é
humano e o que não é?
A sociedade não existe, já falamos a esse respeito.
O social não é a essência da sociologia, mas a ciência das
associações. Latour gostava do coletivo porque remetia aos coletores.
Cada um deve contribuir com algo para o comum. Para que uma sociedade se
sustente, deve haver associados, de forma permanente, porque a sociedade não
existe por si mesma, mantém-se por associações, não só entre seres humanos, não
só entre homens e mulheres, humanos e não-humanos, mas também entre animais, e
entre objetos, e tudo isso produz inter-relações que passam pelo “vivo”, como
você diz.
O problema é que consideramos a sociedade pronta,
e Latour é contrário a isso, porque é algo que está sendo construído
continuamente, por isso pode se reinventar, modificar, mudar. Ele é reprovado
por certo relativismo, mas é um filósofo relacionista, não reducionista. É
necessário passar do abstrato ao concreto, caso contrário, se não tivermos
consciência de nossas interdependências com o não-humano, nós nos tornamos um
vírus para o planeta.
As propostas de Latour estão cheias de
otimismo, de entusiasmo, porque confia na possibilidade de cada um de nós
conciliar suas forças e possibilidades de mudar as coisas. Podemos mudar o
mundo, não existe qualquer fatalidade. Escolhemos o modo de produção, mudá-lo
está em nossas mãos.
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Às vezes, parece impossível pensar em uma alternativa
ao capitalismo…
Podemos sair do capitalismo. Nós o criamos, estabelecemos nossas condições de
vida, trata-se de nos interessarmos por essa pequena película de terra em que
vivemos e que devemos cuidar. Em todo caso, entramos no capitalismo,
portanto, antes não estávamos nele.
Hoje, existem inúmeras propostas de antropologia anarquista que lembram
as formas de sociedades igualitárias que subsistiram compartilhando
bens, funcionando por centenas de anos. O capitalismo não é um
destino fatal, não é nosso destino final, podemos nos
bifurcar. Latour pensava assim. Não será fácil, mas tampouco
impossível.
Na linha histórica, o capitalismo não é
tão importante. Há muitos ecolugares que, há anos, estão experimentando outras
formas de vida, Latour os conheceu. É preciso resgatar
os socialistas utópicos, fazer propostas, inventar novas formas de vida comum, outras formas
de fazer, produzir, governar, apostando em comunidades em que se possa viver de
forma mais harmoniosa, com autonomia libertária. As pequenas experiências
nas quais ninguém apostava, como as mútuas, as mutualidades, acabaram se
consolidando.
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Será necessário ler mais Gramsci, Kropotkin, Simone Weil e Anselmo Lorenzo...
Começarei pelo último, que não conheço.
Fonte: Entrevista com Nicolas Truong para Esther
Peñas, em Ctxt - tradução do Cepat, para IHU

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