A
ocupação do prédio onde funcionou o jornal Hoje em Dia, em Belo Horizonte (MG),
revela a superfície de um crime contra os trabalhadores. Cerca de 150
funcionários demitidos da empresa não receberam seus salários e acertos,
enquanto o edifício era negociado, com superfaturamento, para drenar dinheiro
para Aécio Neves. O “predinho”, como ficou conhecido jocosamente nos
depoimentos de executivos da JBS à Polícia Federal, é um símbolo do jornalismo
praticado sob os auspícios dos Neves: vale menos que seu preço e é menor do que
parece.
O
antigo dono da empresa, Flávio Carneiro, serviu de laranja na operação, o que é
pouco perto dos outros serviços prestados ao senador afastado durante a
campanha presidencial. Inclusive com a publicação de pesquisas que contrariavam
todos os institutos sérios e o bom senso, abrindo uma fatura promissora que
seria cobrada com a vitória que não se confirmou. Além de laranja, ele deveria
ficar roxo de vergonha. O jornal perdeu a credibilidade, foi vendido na bacia
das almas para o ex-prefeito de Montes Claros, Ruy Muniz, político com
problemas recorrentes com a Justiça. Nessa lambança, os trabalhadores pagaram a
conta.
Se
há um crime contra os jornalistas, gráficos e funcionários administrativos da
empresa, há outro ilícito ainda maior que afeta a própria concepção de
democracia. Quando um jornal deixa de ser um espaço de informação para ser um
instrumento de poder, de manipulação das informações e silenciamento, algo de
muito importante se perde no caminho. A imprensa é uma garantia da
democracia,
desde que siga seus preceitos fundamentais: publicar sempre a verdade, ouvir
todas as vozes, ampliar o debate público. São imperativos técnicos, éticos e
políticos.
O
jornalismo brasileiro anda capenga nos três. E, o que é mais grave, tem
mostrado dificuldade em avançar para um novo contexto informativo. O atual
ambiente da comunicação hegemônica é tóxico, marcado por interesses privados e
defesa de pautas partidárias, no sentido amplo do termo. A imprensa brasileira,
ancorada na defesa de valores empresariais liberais, da desnacionalização e da
voracidade financista, deixou de lado o fundamento de independência para
promover a primazia do mercado. Em vez de se considerar a questão do direito à
informação, defende-se o privilégio concedido às empresas de comunicação.
Dois exemplos: Reinaldo e Andrea
Dois
fatos recentes evidenciam alguns elementos dessa crise. O primeiro foi o
vazamento de uma conversa entre Reinaldo Azevedo, articulista da Folha de S.
Paulo e blogueiro até então hospedado na revista Veja, com Andrea Neves, irmã e
mentora do investigado Aécio Neves. Muitos jornalistas, inclusive ligados à
esquerda, saíram a campo para defender o princípio da inviolabilidade da fonte
e manifestar sua solidariedade ao jornalista. Todos seguiram o mesmo roteiro,
criticando o resultado do trabalho do profissional, mas defendendo seu direito
a usar prerrogativas do ofício.
Acredito
que Reinado Azevedo não merece a consideração de colegas pelo simples fato de
que ele não é jornalista. O que ele faz é panfleto, incitação ao ódio, estímulo
ao preconceito e distorção dos fatos. Em outras palavras, o contrário da função
de um jornalista. Que defendam o sigilo da fonte, mas que não se aliste na
hipoteca de solidariedade o trabalho sério de profissionais de verdade. Ele não
é um dos nossos, deveriam dizer os jornalistas. No entanto, o caso parece ter
servido como marketing pessoal, já que a Rede TV! Apressou-se a contratá-lo de
olho nos analfabetos políticos que ele ajudou a cevar na Veja, em sua
detestável trajetória.
A pauta é boa?
O
segundo caso também envolve Andrea Neves. Quando a irmã de Aécio chegava à
Polícia Federal em Belo Horizonte, no dia 18 de maio, presa por determinação da
Justiça, ouviu de uma jornalista que cobria o fato uma pergunta: “A pauta é
boa, Andrea?”. Alguns analistas da imprensa interpretaram a questão como
provocação e exercício covarde de poder contra uma pessoa em desvantagem.
Discordo. A pergunta é boa e relevante. Não pela carga de crítica que trazia,
mas pelo que apontava acerca do contexto que levou à prisão.
O
que a jornalista evidenciava com seu questionamento era um comportamento que se
repetiu durante mais de uma década em Minas Gerais, quando o jornalismo era
manietado e censurado pelo Palácio da Liberdade, sob o comando da
primeira-irmã. O mantra de Andrea era perguntar pela qualidade da pauta, como
se seu julgamento fosse jornalístico e não ideológico.
No
comando da imagem do governo do irmão e em seguida de Anastasia, ela ameaçava
jornalistas, censurava notícias, impunha conteúdos e definia a distribuição de
verbas publicitárias no estado. Além disso, criou uma estrutura de
monitoramento que ia das manifestações pessoais em redes sociais a notícias
publicadas em todo o país, nos mais diversos veículos. Não escapava de seu
radar nem mesmo as ferramentas de busca. Ela queria dominar até os algoritmos.
Por
isso a pergunta da jornalista é pertinente. A pauta da prisão de Andrea Neves é
uma oportunidade de debater a liberdade de imprensa, o uso do dinheiro público
para publicidade oficial em troca de apoio ou silêncio, a relação sempre
sombria entre corrupção e meios de comunicação e agências de publicidade. A
pergunta foi feita em palavras firmes, como deve ser, mas nem por isso
arrogantes ou indignas, como as flagradas nas conversas pouco republicanas dos
Neves agora reveladas diariamente.
A
ocupação do Hoje em Dia marca um novo patamar de afirmação dos jornalistas como
categoria profissional no campo das relações de trabalho em Minas Gerais. Agora
é ocupar o terreno ainda mais conspurcado da liberdade de informação. A
democracia só tem a ganhar com essa pauta.
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