Ayn
Rand é tida pelos ultraliberais do mundo como uma grande estrela da filosofia.
Em 1961 publicou com Nathaniel Branden um livro que é considerado um clássico
da filosofia moral contemporânea, para aqueles que defendem a sua mesma visão
de mundo. Trata-se da obra denominada "As Virtudes do Egoísmo", cujo
nome já diz tudo, publicada aqui no Brasil pela Editora Ortiz SA, em 1991. Ayn
faleceu em 1992, mas as suas ideias continuam vivas e até mesmo cultuadas -sem
citação de autoria- nos fóruns da liberdade e nos debates promovidos por
instituições liberais, como o Instituto Millenium, e outras organizações
preocupadas com o destino do Brasil e com o bem-estar do nosso povo sofrido.
Todos, aliás, incorruptíveis, pagando em dia os seus impostos e sofrendo, em
cada "ajuste", os dissabores que atingem o seu padrão de vida e das
suas famílias.
Ayn
Rand é muito ousada. Faz uma crítica a Aristóteles, porque este não considerava
a ética "uma ciência exata" e porque nenhum filósofo descobriu um
código de ética "objetivo, racional e científico", problema para o
qual ela se propõe a dar uma resposta. E o faz, segundo ela, porque em função
da pobreza filosófica de todos os tempos, o mundo -constata ela- está afundando
"num inferno cada vez mais profundo". O seu colega Nathaniel Branden,
especificando com clareza as posições de Ayn, apresenta, no mesmo livro, a tese
radical que exalta as virtudes do egoísmo: "O egoísmo ou não-egoísmo de
uma ação, deve ser determinado objetivamente, e não pelos sentimentos da pessoa
que age. Assim como os sentimentos não são armas da cognição, também não são um
critério, na ética." Ou seja, os sentimentos humanos não são o "ponto
de partida", para a avaliação racional da eticidade de uma ação (sua
moralidade, portanto), que deve ser avaliada objetivamente, a partir de um
interesse pessoal.
O
recado desta sentença filosófica de primeiro grau é o seguinte: não tenha
compaixão! Faulkner, pelo seu discurso de agradecimento quando recebeu o Prêmio
Nobel de Literatura em 1950, seria severamente repreendido pelos adeptos de Ayn
Rand. Para Faulkner , "o homem triunfará, é imortal, não porque dentre as
criaturas ele tem uma voz inexaurível, mas porque ele tem uma alma, um espírito
capaz de compaixão e sacrifício e resistência". Um sentimento humanitário
de "compaixão", por exemplo, perante uma injustiça singular, ou uma
decisão que uma pessoa toma numa função de Estado (ou na sua empresa), deve ser
substituída, segundo esta brilhante filosofia moral, por um juízo
"objetivo". A filosofia da virtude egoística não gosta de Faulkner e
é contra Aristóteles. O juízo objetivo deve ser superior ao sentimento de
solidariedade humana, que guiaria a decisão do indivíduo, pois, "para
agir" -prossegue o texto- a pessoa deve ser movida "por algum motivo
pessoal" (...), pois a "questão do egoísmo de uma ação ou seu não
egoísmo, depende não do fato do indivíduo querer ou não efetuá-la, mas apenas
do porquê quer fazê-lo".
Fiquei
chocado, há muito anos, quando li o livro de Ayn Rand e pensei que ele não
teria menor chance de se tornar importante. Eis que ele, hoje, é a bíblia nem
tão secreta, mas universal, anti-religiosa (a religião professa a solidariedade
com o próximo), anti-marxista (o marxismo professa a solidariedade de classe),
anti-aristotélica (que professa a subsunção da ética na política, para o bem da
cidade), bíblia, portanto, que recomenda substituir os sentimentos humanos -dos
quais derivam as reflexões ético-morais- por "juízos objetivos e
científicos", estes, entendidos como interesse pessoal, "algum motivo
pessoal", como diz a autora.
Um
exemplo típico da aplicação viva desta filosofia moral é o carrasco Eichmannn
"sentado em um escritório organizando papéis e dando telefonemas
importantes", cuidando do seu emprego, do seu interesse pessoal, e lidando
com dados "objetivos" da sua função pública de natureza contratual,
como burocrata do Terceiro Reich, enquanto milhares de judeus, que ele não
contabilizava nos seus "sentimentos pessoais", morriam nos campos de
concentração. Ou Primeiro Ministro da Espanha, Mariano Rajoy, preparando as
medidas do "ajuste", que consolidaram os 42 porcento de desemprego na
juventude e reduziram os valores das aposentadorias dos servidores públicos,
porque "objetivamente" não havia outra alternativa, mas que reflete,
sempre, em quem não tem poder de decidir e que é o elo mais fraco da cadeia
política do comando do capital. Parece que Ayn Rand descobriu, por antecipação,
a filosofia dos "ajustes", a partir da transformação da economia
financeira numa ciência exata e da destruição da política como expressão de uma
ética socialmente determinada pelo sujeito.
Poderia
dar outros exemplos, mas, por enquanto fico por aqui. Mas, ouso dizer que à
medida que a democracia não oferece outras alternativas para sair de uma crise,
do que jogar as contas da crise sobre os ombros dos mais débeis, ela, a democracia,
está sob assédio da imoralidade completa dos cálculos amorais do capital. E o
capital, não se esqueçam, por mais diluído que ele esteja nas nuvens
especulativas das agências de risco, sempre apresentará suas mensagens de
solidariedade, através da grande imprensa, que ele controla e financia. O
capital sabe ser solidário com seus servos conscientes ou inconscientes, embora
recomende que os cidadãos não o sejam entre si. Acompanhem e verão.
Tarso Genro, 65, é
ex-governador do Rio Grande do Sul. Foi ministro da Justiça, da Educação (ambos
no governo Lula) e prefeito de Porto Alegre pelo PT (1993-1996 e 2001-2002)
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