Já dizia Nelson
Rodrigues que toda unanimidade é burra. A tirada volta a ser oportuna diante da
aprovação-relâmpago do Marco Civil da internet pelo Senado ontem (segue agora
para sanção presidencial). Justificada para viabilizar a divulgação do Brasil
como vanguarda das liberdades democráticas e dos direitos do consumidor na
internet, a nova “Constituição” da rede digital ainda tem cara de lei que pode
pegar, ou não. Hoje a presidente Dilma Roussef anuncia o feito no evento
NetMundial, organizado pelo governo para tratar de governança na internet e o
“fim da supervisão” do governo dos EUA sobre a rede mundial.
Para entender o
combate, ainda em curso, sobre o futuro da internet, é importante ressaltar a
diferença entre “governança” e “democracia”. O contraste entre os dois
conceitos é a essência da crítica dirigida por setores políticos mais radicais
ao processo patrocinado pelo governo brasileiro.
Segundo a rede de
ONGs “Just Net Coalition”, o aparente consenso que a partir de hoje vai ser
propagandeado pelo governo Dilma vai de encontro ao que a própria presidente
defendeu em seu discurso na ONU em setembro do ano passado. Reagindo contra a
espionagem digital, naquele momento o tom era de indignação frente à violação
de direitos civis e privacidade, reconhecendo que o “ciberespaço” tornou-se
mais um arsenal de guerra.
Mas o documento
preliminar que circula entre os participantes dessa cúpula esqueceu de incluir
a palavra “democracia”. Segundo a “Just Net Coalition”, apesar de toda a
fanfarra que acompanha a aprovação do Marco Civil, a posição atual do governo
brasileiro é apenas de reforço ao modelo de construção de consensos entre os
muitos atores da rede mundial. É o modelo de governança já consagrado nas
cúpulas internacionais sobre o tema, conhecido como “multistakeholder”
(multi-atores). Para os defensores de uma internet radicalmente livre,
governança é um conceito vazio, interessa mais levar a rede a uma “governança
democrática”.
O exemplo de limites
inerentes ao modelo tradicional de governança é o da indústria farmacêutica.
Para a rede de ONGs, se um modelo de governança do tipo “multistakeholder”
tivesse vingado na batalha mundial pela ampliação do acesso a remédios contra a
AIDS estaríamos esperando até hoje que as grandes corporações da indústria
farmacêutica, os pacientes de AIDS nos países mais pobres e os governos
chegassem a um consenso. Como o Brasil e outros países rejeitaram esse
caminho, democratizou-se o acesso aos remédios e tecnologias de tratamento da
AIDS em todo o mundo. Como igualar num modelo horizontal de governança o poder
das grandes empresas farmacêuticas aos interesses de pacientes?
Um modelo que dá
direitos iguais sobre as políticas públicas a governos e empresas acaba, na prática,
dando às corporações globais um poder de veto sobre reformas políticas e
mudanças na legislação de fato significativas. É uma rendição do interesse
público global à dominação de empresas poderosas, privadas, ricas e que não
foram eleitas por ninguém. Nesse modelo, a neutralidade da rede jamais será
efetivamente implementada.
Eis aí um tema para
ampla e democrática reflexão.
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