Outro dia, fiz-me de
bobo e fingi estar chocado — todo politicamente correto... e prosa! — com
a declaração de ódio à nova classe média expectorada pela suprassumática
fisólofa-mor do PT, meme imediato nas redes sociais. Ainda
estava atordoado com a pilhéria da noite anterior quando, num desses
neomodistas stand up, a comediante berrava, fazendo beiço-gordo de
latino-americana velha, diante de uma trupe de maltrapilhos em algazarra numa
galeria de arte: “Tira a mão do quadro, meu filho! É só pra olhar...
não precisa colocar a mão! Não basta ser pobre, né?! Tem que botar a lata
d’água na cabeça!”
O suposto desconforto —
lapso politicamente correto, reitero! — com essas personagens da vida
público-privada brasileira remeteu-me diretamente à douta diretora
de uma universidade-riquinha que, provavelmente trajando elegante
estola e imaginando estar na Dinamarca, usou uma rede social para protestar
contra a camisa regata, bermuda e sapatênis do passageiro que comia coxinha com
guaraná zero ao seu lado e questionou se o Aeroporto Santos Dumont, no
ultratropical Rio de Janeiro, não estaria se tornando uma rodoviária. Foi
aplaudida por amigos mestres e até por magnífico reitor de universidade-pobrezinha.
Cá estava eu, très,
très, très désolé, com o desenrolar desse modelo de crítica — digamos assim
— ao que os larápios dos cofres públicos chamam de “distribuição de
renda” e “justiça social”, quando me tornei
observador-vítima de nossa barbárie (in)civilizatória.
Resistente a
feriado-emendado — desastre pra quem tenta produzir alguma coisa neste
país-tetado, invenção de vagabundo, deleite de mandrião —, acatei a sugestão
doméstica de passar o final de semana de Páscoa num hotel que, diariamente,
abre as portas da Amazônia mato-grossense aos turistas do mundo. Um lugar
espetacular, difícil acesso, repleto de cuidados especiais, águas cristalinas,
pássaros exóticos e peixes belíssimos em balé diante de quem se aproxima.
Conhecemos o local há dois anos, ao custo de R$ 400 a diária, quando dividimos
todo esse paraíso com apenas um casal polaco educado — sim, eles existem! —, deslumbrados
com as maravilhas da região.
Qual não foi a
surpresa? Feita nas coxas a tal da “justiça social” e da “transferência
de renda” à custa de uma minoria que ainda tenta tocar à frente a
bananeira, ao desembarcar a “pré-visão” dava o tom da desgraça.
No lugar onde outrora capivaras desfilavam faceiras, um casal estendia uma
gigantesca toalha de estampa floral e distribuía pipoca e bolacha de maisena a
várias crianças que pulavam, sem dó, sobre o jardim bem cuidado. Previsão
fatídica.
Na pequena cabana com
pérgula florida, onde era possível deitar à rede e contemplar a floresta e o
rio, dois barrigudos desavergonhados exibiam as panças suadas, sem camisas,
enquanto preparavam um churrasco. Suas esposas — creio eu — aguardavam a carne
enquanto tostavam a própria, besuntando com bronzeador os traseiros empinados
em microscópicos biquínis. À esquerda, um rapaz de óculos com armação branca e
lentes multicoloridas protagonizava um agarra-agarra erótico com uma louraça,
deitados à margem do lago. Ao lado da pornochanchada, duas crianças batiam os
pés n’água para espantar os peixes, enquanto seus pais gritavam, ao longe,
ferindo decibéis toleráveis.
Cabisbaixo, decidi
seguir a trilha e buscar alguma distância em meio à mata, na belíssima nascente
do rio. Ao contrário do som do brotar das águas que antes avisava a proximidade
do destino, agora era possível ouvir o funk da “grande pensadora
contemporânea” anunciando “só tiro, porrada e bomba”: a
piscina formada no nascedouro do grande rio parecia um rolezinho de shopping
paulistano, com direito a “proibidão” na floresta ao redor.
Voltamos para o restaurante, sentamos à mesa e ficamos a refletir sobre o “extraordinário
feriadão”. Arrisquei algumas selfies — porque não sou
ferro! — e fui surpreendido por um pirarucu aparecido e um pintado assustado.
Para coroar o “day
use” no paraíso ecológico, mais de cem pessoas se esfregavam numa fila
— brasileiro odeia guardar educada e gentil distância, pois não?! — para
alcançar o leitão assado — com direito a maçã na boca e tudo! — que alimentaria
a tropa. Funcionários visivelmente constrangidos tentavam poses de aeromoça de
avião em queda, enquanto a multidão seguia em falatório, temendo que os
primeiros comessem o porco inteiro e não sobrasse jabá. “Isso aqui está
errado! Deveriam distribuir senhas”, protestou uma mulher encharcada, com
óculos terrivelmente grandes e canga amarrada ao redor do pescoço.
Voltei pra casa e fiz
uma série de fotos sobre as maravilhas de tê-la... imune, tranquila...
cachorro, gata, coqueiro, caju e soneca à beira da piscina. Posteriormente
questionado nas redes sociais sobre como passei o feriado, minha humilde
consciência resgatou a filósofa petista, o professor candango e douta carioca.
Ainda mantendo minha opinião quanto à preciosidade desta joia da coroa
hoteleira mato-grossense, respondi ao estilo stand up, sob salvas
de incompreensão: “A lata d’água na cabeça é uma beleza!”
Autor: HELDER
CALDEIRA - Escritor,
Jornalista Político e Conferencista.
*Autor dos
livros “ÁGUAS TURVAS” e “A
1ª PRESIDENTA”.
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