Por
um solstício das bibliotecas públicas
Se
inventadas hoje, seriam “coisa de comunista”, alguém brincou. Talvez por isso,
800 fecharam no Brasil, de 2015 a 2020. Mas elas, e as subjetividades
necessárias para recriá-las, são contrapontos necessários à distopia da nova
aristocracia tecnológica
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Apesar
da necessidade de fazê-lo através de tradições trazidas pelos europeus, a
sabedoria popular da cultura nordestina soube reconhecer a importância dos dois
solstícios: as festas de São João não devem nada à importância das festas de
fim de ano. Os ciclos resultantes são menores e suas consequências, para além
da festa, aparecem com mais frequência. Pois o solstício – traduzido em
celebrações e festividades diversas que vão sendo incorporadas pelas religiões,
adquirindo novas formas e sendo carregado a outras partes do mundo por seus
celebrantes expansionistas – geralmente traz consigo uma onda de reflexões,
sensações, ideias para o novo ciclo, interpretações acerca do tempo que passou
no ciclo que se fecha etc. 2024 chegou ao final como o ano de uma bateria de
complicações com poucos precedentes nas últimas décadas, da guerra maior que
muitos temem acontecer à intensificação da crise ecológica e a afirmação da
resiliência da extrema direita no norte do mundo.
Colado
a este último evento, assistimos nos últimos dias àquilo que o senador
estadunidense Bernie Sanders descreveu em suas redes sociais como (“o governo
da classe bilionária para a classe bilionária”, em suas palavras) a chegada em
seu país da oligarquia como um modo de governo, na forma da atuação direta e
escancarada de Elon Musk, como “patrono” do presidente eleito, numa sabotagem
ao acordo bipartidário que evitaria o colapso orçamentário do governo. Musk
ameaçou os congressistas que votassem a favor do pacote, dizendo que usaria seu
poder para financiar e estimular a oposição em seus distritos eleitorais, o que
causou o fracasso da proposta e a prorrogação da situação do orçamento
pendurado (criando o alto risco do corte de salários de funcionários públicos e
de interrupção de serviços diversos). É claro que o evento descrito por Sanders
já ocorreu há muitas décadas atrás, e o que ele descreve é a manifestação
explícita de uma realidade anteriormente subjacente e mascarada de muitas
formas. Mas por que ela vem à tona nesse momento e de forma tão grotesca? Seria
a aceitação e o fascínio de multidões pelo novo imperador que não tem medo de
se colocar claramente acima do próprio presidente que ajudou a eleger?
O que
ocorre no Brasil aparece de forma menos pessoal, sem a encarnação num único
vilão todo poderoso, mas com consequências talvez ainda mais nefastas. Temos um
grupo de agentes que se coloca efetivamente acima dos poderes constituídos e
eleitos, com plenas capacidades de direcioná-los e chantageá-los através de um
conjunto de ferramentas de grande capacidade de ação em larga escala. A Faria
Lima, amplamente favorável ao retorno da extrema direita ao planalto, vai na
contramão de todos os indicadores, e dobra sua aposta contra o governo, sabendo
que o resultado vai ser a engrossada no caldo do rentismo através dos juros,
que acaba trazendo o retorno da aposta impossível de ser perdida, mesmo com a
eventual derrota do time apostado em 2026.
A ideia
gramsciana da importância da atuação contra-hegemônica (que muitos, e não
somente seus detratores, continuam interpretando de forma equivocada como um
conjunto de lutas que teriam como objetivo a conquista e a prática da hegemonia
pelas forças que visam a transformação social) parte exatamente do entendimento
de que há uma conformação cultural de valores e de um ideário próprio dos
grupos dominantes, que criam condições subjetivas para que os sujeitos que são
diretamente prejudicados por suas ações entendam a realidade onde vivem como
resultado normal, natural e inevitável do modo como as coisas são e funcionam.
E Gramsci não é o único que continua nos fornecendo elementos importantes para
o entendimento – muito subestimado na prática política – do lugar fundamental
da cultura, dos valores, e da produção de subjetividades na conformação de
caminhos possíveis e no enfrentamento aos retrocessos.
Esse é
o ponto que nos traz ao momento do bate e volta do sol, da reflexão a respeito
do momento que atravessamos, com a crise ecológica e climática nos lembrando
que essa travessia é sempre coletiva, independente dos bunkers que se
multiplicam dentre os 0,1%. Gostaríamos de viver mesmo num mundo em que os
jovens admiram cada vez mais personagens como Musk e os menos célebres
chantagistas da alta finança no Brasil? Como podemos, na atual conjuntura,
continuar a fazer oposição e abrir caminhos alternativos em relação às grandes
forças midiáticas (que de forma sutil vêm naturalizando e dando projeção aos
personagens da extrema direita, como vimos no lamentável espetáculo do
influencer-candidato em São Paulo esse ano) e àquelas que tomaram de assalto
(através dos algoritmos ou da simples aquisição) as redes sociais que na década
passada ajudavam de fato a fomentar o pensamento e a ação sintonizadas às
contra-hegemonias interessadas no aprofundamento democrático? Em momentos, como
o atual, de aparente fechamento do campo de possibilidades, a atuação no âmbito
dos valores sempre permanecerá possível, mesmo que seja na escala imediata das
relações mais diretas – como ocorreu durante a ditadura no Brasil.
Há
algumas semanas me apareceu nas redes uma imagem interessante através da figura
contemporânea do meme: se a biblioteca pública não existisse, e fosse inventada
hoje, seus proponentes seriam tachados de comunistas (portanto violentos,
corruptos, imorais, perversos e autoritários). Escolho essa figura da
biblioteca pública e das subjetividades necessárias para sua invenção como o
oposto daquilo que os circuitos hegemônicos estão valorizando e produzindo, que
são justamente os projetos grandiosos de Elon Musk: a utopia absurda da nova
aristocracia tecnológica da colonização privada de espaços fora da Terra, o ser
humano andróide repleto de transplantes biotecnológicos (inclusive integrando a
inteligência artificial ao cérebro) tendendo à superação de sua condição mortal
etc.
De 2015
a 2020, quase 800 bibliotecas públicas fecharam no Brasil. É bem sabido que nas
regiões do mundo que valorizam o conhecimento, as bibliotecas públicas abrem
cedo e fecham tarde (muitas viram as noites funcionando), ficam lotadas, e têm
estrutura para organizar e receber eventos diversos, de palestras a cursos
livres, grupos de estudos, reuniões de movimentos e organizações sociais etc. E
seus correlatos são igualmente abundantes e generosos (piscinas públicas,
parques, …). Para fazer frente aos projetos de avanço do antropoceno e de
constituição de um meio ultratecnificado que nos torna, cada vez mais, peças de
uma grande engrenagem configurada e operada pela classe bilionária, precisamos
de mais bibliotecas públicas e de seus familiares sociotécnicos. E das
subjetividades capazes de cria-los e difundi-los.
Fonte:
Por Felipe Magalhães, em Outras Palavras
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