Denúncia:
operários chineses estariam sofrendo agressões em fábrica da BYD na Bahia
Uma
mulher franzina equilibra uma tábua de madeira atrás do pescoço para carregar,
sem perder tempo, dois baldes pesados. Um grupo de seis trabalhadores é
transportado até o canteiro de obras em um carro de passeio, com um deles sendo
levado dentro do porta-malas. Em um cooler pequeno, daqueles usados para manter
a temperatura de cervejas e refrigerantes, é servida uma sopa para centenas de
trabalhadores famintos, após uma longa jornada de trabalho.
Agressões
físicas, com chutes e pontapés. Alojamentos sujos, aglomerados, mal iluminados
e sem divisão entre homens e mulheres. Banheiros imundos, sem limpeza diária
das pias e dos vasos sanitários. Operários atuando sem equipamentos de proteção
individual, submetidos a rotinas de 12 horas por dia, de domingo a domingo.
Todas
essas situações, de acordo com denúncias que a Agência Pública recebeu,
estariam acontecendo dentro do canteiro de obras da empresa chinesa BYD, que
está instalando uma fábrica de automóveis elétricos na cidade industrial de
Camaçari, na Bahia.
Em
março deste ano, com amplo apoio do governo do estado, comandado por Jerônimo
Rodrigues (PT), a montadora asiática oficializou um acordo para construir sua
primeira fábrica no Brasil. O terreno é o mesmo que foi ocupado pela Ford por
quase 20 anos, até a empresa decidir encerrar suas atividades de maneira
definitiva no país.
Com
a saída da BYD dos EUA, o próprio governo da Bahia comprou o terreno de 4,6
milhões de metros quadrados e o revendeu à empresa pelo valor de R$ 287,8
milhões, de acordo com dados oficiais divulgados à época da negociação.
No
ato de assinatura do contrato, o governador Jerônimo esteve acompanhado do
presidente da BYD Brasil, Tyler Li, e do conselheiro especial da companhia
chinesa, Alexandre Baldy, além de outras autoridades políticas locais.
De
acordo com documentos e informações obtidas pela Pública, para a construção da
fábrica, a BYD contratou cerca de 470 operários chineses de três empresas de
seu país. O Jinjiang Group faz o serviço de terraplanagem, que é a preparação
da área para o início das obras e, em média, utiliza 280 funcionários, segundo
os documentos.
A
Open Steel é responsável pela montagem da estrutura metálica da fábrica e
mantém cem chineses trabalhando nessa função. Por último, a AE Corp tem como
responsabilidade montar a estrutura metálica interna, onde serão produzidos os
carros elétricos. Cerca de 90 chineses trabalham nesse setor atualmente.
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Por que isso importa?
• A reportagem denuncia
condições degradantes de trabalho de funcionários chineses da primeira fábrica
de carros elétricos do Brasil. A BYD está instalando uma fábrica de automóveis
elétricos na cidade industrial de Camaçari, na Bahia.
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Chineses são agredidos e não têm acesso à água, segundo denúncia
De
acordo com fotografias, vídeos e áudios a que a Pública teve acesso, as
situações mais degradantes teriam acontecido com os funcionários do Jinjiang
Group. O material indica uma série de maus-tratos e descumprimentos a
convenções internacionais de trabalho e segurança.
Nas
imagens, dá para ver operários bebendo água salobra das poças formadas no
canteiro, já que não teriam acesso a água potável. Alguns trabalham descalços
ou sem os capacetes obrigatórios para proteção individual durante as obras.
A
reportagem recebeu vídeos e áudios com relatos de agressão enviados por
funcionários que pediram para ter suas identidades protegidas. Funcionários
entrevistados sob condição de sigilo confirmaram essas denúncias. De acordo com
eles, os mestres de obras, também
chineses, por mais de uma vez, teriam golpeado os operários com pontapés e
socos. Um dos casos aconteceu em 9 de outubro, de acordo com as denúncias. Um
vídeo registra o momento em que um chinês aparece caído no chão depois de,
segundo relatos, ter levado um chute pelas costas.
O
caso não seria isolado. De acordo com as fontes ouvidas, seria costumeiro
ocorrerem cenas de violência quando há descumprimento de ordem ou demora na
execução das tarefas.
Segundo
reportagens publicadas por diversos veículos que acompanham o avançar das
obras, a expectativa da montadora chinesa era finalizar a primeira fase das
obras no fim deste ano, com a instalação de 26 novas estruturas, entre galpões
de produção, pista de testes e outros equipamentos. Com a primeira etapa
finalizada, já seria possível produzir 150 mil veículos por ano, de acordo com
dados oficiais da BYD.
Entretanto,
de acordo com uma fonte ouvida pela reportagem, houve um atraso e o novo prazo
estimado é de finalização da primeira etapa em janeiro de 2025. Isso explicaria
a pressão exercida sobre os funcionários chineses, resultando nos castigos
físicos frequentes relatados à reportagem.
Na
empresa AE Corp há outras denúncias de violações em nome da celeridade de
entrega dos prazos. Segundo as fontes ouvidas pela Pública, o refeitório para
alimentação foi montado no mesmo local de trabalho – o que configuraria jornada
continuada, pois não há tempo para descanso.
Os
brasileiros relatam que os chineses têm enorme dificuldade de comunicação para
formalizar algum tipo de denúncia, pois eles não entendem o português, assim
como os brasileiros também não conseguem se expressar em mandarim, cantonês ou
nenhum dos outros cinco idiomas falados na China.
• Funcionários
estrangeiros têm mesmo direito que brasileiros
De
acordo com as fontes ouvidas, os funcionários brasileiros que trabalham na
montagem da fábrica da BYD na Bahia não estão submetidos ao mesmo regime
precário de trabalho dos chineses.
Os
funcionários brasileiros cumprem uma carga horária das 8h às 18h (na BYD), com
uma hora de descanso para refeição. Nas demais terceirizadas – no Jinjiang
Group, Open Steel e AE Corp –, a carga horária seria das 7h às 17h, com duas
horas de almoço.
“Mesmo
quando os chineses trabalham em funções administrativas, são submetidos a
jornadas mais intensas que os brasileiros. Como precisam responder a processos
para a matriz chinesa, muitas vezes trabalham de madrugada para se adaptar ao
fuso horário de 11 horas que separa os dois países”, disse um funcionário que
falou em condição de anonimato com a reportagem.
Em
média, são 590 funcionários nacionais trabalhando na montagem da fábrica. A
maior parte está distribuída na BYD e no Jinjiang Group. A empresa AE Corp, que
monta a estrutura metálica para a produção dos carros elétricos, não possui
funcionários brasileiros.
A
advogada Ana Paula Studart, especialista em direito trabalhista, lembra que a
Constituição brasileira assegura aos trabalhadores estrangeiros os mesmos
direitos dos brasileiros, como ao 13º salário, adicional de férias, 30 dias de
férias remuneradas, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e cumprimento
de jornada de trabalho constitucionalmente prevista. Isso vale até mesmo para
estrangeiros que atuem em multinacionais instaladas no Brasil.
“Vale
destacar que, conforme previsto no artigo 358 da CLT, sobre equiparação
salarial, os trabalhadores brasileiros e estrangeiros que exerçam a mesma
atividade têm direito ao mesmo salário. Trata-se, aqui, de clara proibição a
discriminação salarial”, pontua.
Studart
reforça que, além dos direitos trabalhistas, as empresas devem zelar por itens
relacionados à saúde e segurança dos seus funcionários, além de cumprir a
jornada de trabalho de até 44 horas semanais, estabelecida na Constituição.
“As
empresas devem seguir as normas de saúde e segurança do trabalho para proteger
seus funcionários. Isso inclui a implementação de programas de prevenção de
acidentes, equipamentos de proteção individual, a realização de treinamentos
periódicos para os funcionários e a realização de exames de saúde ocupacional.
Tudo isso é indispensável para uma adequação aos âmbitos trabalhistas das
empresas estrangeiras”, diz.
Em
caso de violação das leis trabalhistas, os estrangeiros podem buscar apoio no
sindicato que representa a categoria, bem como no Ministério do Trabalho, ou no
Ministério Público do Trabalho (MPT) para eventuais reparações.
• Maus-tratos teriam
começado logo depois do início das obras
As
obras no terreno de Camaçari começaram em março deste ano. De acordo com os
relatos de funcionários ouvidos, em abril, ou seja, um mês desde o começo da
montagem, já havia relatos de violações a direitos trabalhistas de funcionários
chineses.
A
reportagem procurou a empresa sobre as denúncias. Em nota, a BYD disse que
opera há 10 anos no Brasil “cumprindo rigorosamente as leis locais”. A montadora disse ainda que “as obras da
fábrica em Camaçari, na Bahia, atendem todas as normas legais, incluindo a
licença de instalação obtida em 2024 e aprovada pelo governo do estado”, além
de ressaltar que fez um investimento de R$5,5 bilhões, com potencial para gerar
“mais de 20 mil empregos”.
Na
nota, a BYD informa ainda que a JinJiang Construction Group é a construtora
responsável pelas obras. E, por ser um tipo de edificação muito específica,
“atua em diversos países onde a BYD expande operações”. A BYD, no entanto, não respondeu
especificamente sobre as denúncias de violência.
No
dia 11 de novembro deste ano, a Polícia Federal e o MPT estiveram no canteiro
de obras para uma vistoria das condições de trabalho, mas não chegaram a ir aos
alojamentos ou percorrer todo o espaço de montagem da fábrica, segundo fontes
ouvidas pela reportagem.
Procurado,
o MPT confirmou a inspeção na planta da fábrica. Segundo o órgão, há um
inquérito em andamento para apurar informações sobre “saúde e segurança do
trabalho” dos operários. A visita ocorreu com a presença de um procurador, um
perito e servidores, além da escolta da Polícia Federal.
“Tem
um inquérito em andamento. O relatório ainda não está pronto e deve ser anexado
a ele. Denúncias nos ajudam a iniciar a apuração. Neste caso, há uma
investigação que terá que chegar a uma conclusão”, respondeu o órgão, via
assessoria de imprensa.
Questionada
sobre a inspeção do MPT, a BYD disse que a vistoria “apontou a necessidade de
ajustes pontuais na operação”. E que, as inconformidades já foram
identificadas, com exigências que a JinJiang “atuasse na correção com
urgência”. A empresa não especificou quais seriam estas correções.
A
Polícia Federal e o governo da Bahia também foram procurados, mas não
responderam até a publicação.
No
dia 2 de dezembro está prevista uma visita da CEO da BYD, a chinesa Stella Li,
à Bahia. Durante o evento, com a presença esperada do governador Jerônimo
Rodrigues, será anunciado um novo aporte de R$ 3 bilhões da montadora chinesa
para ampliar a estrutura inicialmente prevista.
A
Pública apurou que está havendo uma mudança na estrutura dos alojamentos dos
funcionários para essa visita, que será acompanhada por jornalistas convidados
a percorrer o canteiro de obras.
Fonte:
Por André Uzêda, da Agencia Pública
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