quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Giuliano Fleri: O governo de direita italiano quer imigrantes trabalhando sem direitos

Doze meses atrás, o governo de Giorgia Meloni assinou um protocolo com a Albânia para estabelecer dois “centros de asilo” italianos no território do país do sudeste europeu. Um, localizado no porto de Shëngjin, serve como ponto de triagem inicial para imigrantes resgatados por navios italianos em alto mar. O segundo, em Gjadër, tem um prazo de 28 dias para processar pedidos de asilo de imigrantes originários dos chamados países seguros. Ele retém aqueles cujos pedidos de asilo são negados, que aguardam repatriação.

Este experimento de terceirização de processos de asilo para um país não pertencente à UE despertou o interesse de líderes em toda a Europa. O chanceler alemão Olaf Scholz, o primeiro-ministro britânico Keir Starmer e a comissária europeia Ursula von der Leyen estão entre os que observam atentamente, curiosos para ver como essa iniciativa italiana se desenrolará. No entanto, a ambição da primeira-ministra Meloni de transformar os dois centros na Albânia em um eixo de processamento para milhares de imigrantes irregulares agora está envolta em incertezas. Um tribunal italiano interveio, decidindo contra a detenção dos primeiros dezesseis imigrantes — cidadãos egípcios e de Bangladesh — trazidos para os centros recém-estabelecidos. Esta decisão complica os planos de Meloni e sugere um conflito iminente entre seu governo e o judiciário, levantando questões sobre se tais políticas podem resistir ao escrutínio do sistema legal europeu.

Mas o que realmente está em jogo neste conflito? Para entender isso, temos que olhar para a visão da extrema direita italiana sobre imigração. O protocolo Itália-Albânia é mais um esforço para reforçar medidas de dissuasão contra viagens marítimas irregulares. Mas neste contexto a palavra “marítimas” é mais significante do que “irregulares”. A batalha não é contra a imigração irregular como um todo; é sobre impedir a chegada de imigrantes navegando pelas rotas do Mediterrâneo. Meloni insiste no controle rigoroso das fronteiras “marítimas” da Itália e em uma campanha contra traficantes marítimos. Mas no fundo estão estratégias que poderiam melhorar os controles internos para identificar outras formas de imigração irregular, como permanências com vistos vencidos, e abordar a brutalização de imigrantes irregulares em certos segmentos do mercado de trabalho italiano.

A questão central está na visão que essas políticas representam — o futuro da Itália como concebido por Meloni e sua turba. Nesse sentido, é importante notar que a Itália precisa desesperadamente da imigração. Com 24,9% de sua população com mais de 65 anos, a Itália é o segundo país mais velho do mundo, superado apenas pelo Japão. Essa estrutura demográfica, na qual uma parcela desproporcionalmente pequena da população trabalhadora deve sustentar uma crescente população idosa e pagar por seus cuidados e pensões, está se tornando cada vez mais insustentável.

Meloni, tendo que enfrentar uma escassez de mão de obra como seus antecessores nunca lidaram, certamente está ciente desses números angustiantes. Seu “decreto flussi” (decreto de fluxo) propõe aceitar 452.000 cidadãos estrangeiros não pertencentes à UE entre 2023 e 2025. O país também acolheu a chegada de refugiados ucranianos e mantém uma política mais liberal em relação à cidadania para estrangeiros — principalmente cidadãos brasileiros, argentinos e venezuelanos — que podem provar que um de seus ancestrais nunca perdeu a cidadania italiana. Mas o que, então, distingue essa imigração desejada das chegadas marítimas irregulares — uma categoria tão intimidadora que está impulsionando novas medidas de dissuasão e a redução dos direitos de asilo?

·        Decreto de fluxo

Aresposta está nos países de origem das pessoas que migram pelo mar. A maioria dos que chegam pela rota marítima vêm de nações não incluídas na “lista comum” — a lista europeia de países de fora do bloco cujos cidadãos não precisam de visto para cruzar as fronteiras. Eles são principalmente da África Subsaariana, da região MENA (Oriente Médio-Norte da África) e do Sul da Ásia. De acordo com dados da agência de refugiados da ONU, as nacionalidades mais frequentemente representadas entre os imigrantes marítimos em 2023 incluíam guineenses, tunisianos, marfinenses, bengaleses e egípcios. Para esses indivíduos, a oportunidade de entrar na Europa por vias regulares é severamente limitada por requisitos de visto rigorosos, obrigando muitos a optar por rotas irregulares perigosas e muitas vezes fatais.

O decreto de fluxo italiano, que permite entradas de imigrantes provenientes de países africanos e asiáticos fora da “lista comum”, visa fundamentalmente abordar a demanda imediata de mão de obra. Alguém pode ser tentado a concluir que o governo de Meloni está apenas implementando políticas para coibir a migração irregular enquanto simultaneamente cria caminhos para a imigração regular. No entanto, essa interpretação perde um ponto central desse modelo jurídico de imigração.

O decreto é estreitamente adaptado para suprir a escassez de mão de obra específica em setores onde a necessidade é particularmente urgente. Enquanto o decreto de fluxo descreve procedimentos regulares de imigração, seu foco principal é preencher lacunas do mercado de trabalho em transporte, construção, hospitalidade, pesca, assistência doméstica e agricultura. O decreto de fluxo, quando considerado juntamente com os regulamentos para aquisição de cidadania para estrangeiros não europeus — uma lei que permaneceu inalterada por trinta e dois anos — indica claramente aos imigrantes que eles devem aproveitar os empregos disponíveis enquanto podem, sem criar expectativas excessivas de se tornarem membros totalmente reconhecidos da comunidade nacional.

Em particular, a lei sobre aquisição de nacionalidade exige dez anos de residência ininterrupta e legalmente permitida, com cada ano em si exigindo uma autorização de residência vinculada a um emprego formal. Esta é certamente uma situação incomum entre trabalhadores que frequentemente se encontram em posições precárias, sem proteções trabalhistas essenciais. Mesmo que os requisitos de tempo e autorização sejam cumpridos, as autoridades mantêm o poder discricionário de avaliar a independência financeira dos requerentes. A mensagem subjacente desta estrutura legislativa é inconfundível: imigrantes etnicamente não brancos são aceitos apenas na medida em que atendem às demandas imediatas da economia italiana e que estejam dispostos a assumir papéis subordinados. A menos que consigam garantir contratos de trabalho estáveis ​​nos setores específicos onde são necessários, espera-se que, mais cedo ou mais tarde, deixem o país.

Para a extrema direita italiana e uma parcela significativa dos italianos — o apoio a Meloni não mostrou sinais de diminuição desde que ela assumiu o cargo em outubro de 2022 — os migrantes africanos e asiáticos são vistos como muito distintos cultural e etnicamente para serem integrados perfeitamente à comunidade nacional sem comprometer sua coesão interna.

·        Não há como voltar no tempo

Nas últimas três décadas, a migração internacional transformou a Itália em uma sociedade etnicamente diversa —à qual muitos italianos não estavam acostumados. Essa diversificação étnica é, dada a posição do país na Europa — a Itália sendo o segundo maior fabricante da UE — e sua população envelhecida, uma questão de inevitabilidade. Em 1910, os italianos representavam mais de 2% da população global; hoje, esse número caiu para apenas 0,7%.

Dadas as tendências reprodutivas da população local, a Itália e seu Estado de bem-estar social exigem um fluxo constante de imigração para manter sua forma atual e evitar que o país se retraia. De acordo com a extrema direita italiana, para combater essa ameaça existencial, a nação deve contar apenas com a imigração que seja amplamente compatível com sua homogeneidade étnica e religiosa. Caso contrário, a Itália corre o risco de enfrentar outro perigo mortal: perder sua relativa coesão étnica e religiosa. Assim, enquanto ucranianos e argentinos são bem-vindos para fortalecer o tecido da sociedade italiana, o mesmo não pode ser dito para nigerianos e senegaleses.

Não há como voltar no tempo. Os movimentos migratórios internacionais transformaram o cenário étnico da Itália; ser italiano não significa mais ser branco e cristão. Para preservar o domínio da maioria sobre as minorias, é fundamental manter em posições precárias aqueles que não se conformam a esse padrão étnico-religioso. Restringir oportunidades para africanos e asiáticos ao trabalho manual, juntamente com controles mais rígidos nas rotas migratórias do Mediterrâneo, são movimentos calculados nessa direção. Em uma nação que serviu como uma encruzilhada para a migração internacional por décadas, a recriação uma identidade nacional homogênea só pode se realizar por meio de políticas agressivas de dissuasão — muito parecidas com as tentativas de externalizar a migração para a Albânia — fomentando assim um ambiente hostil para certos grupos étnicos considerados inassimiláveis.

Onde a presença de minorias étnicas e religiosas é inevitável, a extrema direita acredita que salvaguardar a unidade nacional requer segregar esses grupos em guetos sociais, isolados de espaços democráticos onde eles podem defender seus direitos e levantar suas vozes. No entanto, em um país de aproximadamente cinquenta e nove milhões de pessoas, com mais de cinco milhões de estrangeiros e 1,62 milhões de cidadãos italianos de origem não europeia, a tentativa de transformar imigrantes em uma subclasse permanente corre o risco de incitar conflitos sociais em vez de preveni-los.

O fato de líderes como Scholz, Starmer e Von der Leyen observarem atentamente os experimentos da Itália reflete uma mudança inconfundível na política europeia em direção à extrema direita. O modelo italiano não é apenas sobre estreitar fronteiras; ele aspira manter uma comunidade homogênea, resistindo à diversidade étnica enquanto mantém os mecanismos de representação democrática para a maioria. Isso representa um recuo em direção a um Estado-nação etnicamente e culturalmente uniforme — uma ambição que pode parecer anacrônica, mas para muitos em nosso mundo contemporâneo, parece surpreendentemente convincente. A busca por tal objetivo, no entanto, inevitavelmente incorrerá em um custo humano considerável. Isso significa uma contração dos princípios democráticos, reduzidos ao domínio da maioria sobre as minorias e seus direitos.

 

¨      A coligação alemã entrou em colapso, mas a recessão veio para ficar. Por Lukas Scholle

cholz rompe com Lindner.” Três palavras que causam impacto nos alemães, depois de três anos em que o líder do Partido Democrata Livre (FDP), Christian Lindner, deu um tom austero para o governo de coalizão. A divisão entre o chanceler Olaf Scholz e o ministro das Finanças Lindner tem outras consequências importantes: um governo paralisado, um voto de confiança iminente e novas eleições, de fato, no meio de uma crise econômica. A situação da economia e das famílias deve piorar ainda mais. Pois não há fim à vista para a recessão na Alemanha — e com Donald Trump eleito apenas um dia antes desta crise governamental, novas guerras comerciais estão no horizonte.

A chamada coalizão do semáforo — até a primeira semana de novembro composta pelos Social-democratas (SPD) de Scholz, os Verdes e o menor FDP — foi minada pela mesma coisa que a condenou desde o início: o estado das finanças públicas. O freio da dívida (uma emenda constitucional de 2009 que limita os déficits do governo a minúsculos 0,35%) permaneceu em vigor mesmo sob a autointitulada administração “progressista”, e não houve aumentos de impostos para bilionários para ajudar a estabilizar o navio.

No início, a coalizão conseguiu contornar o freio da dívida usando vários truques. Mas com o aumento da crise, uma decisão do Tribunal Constitucional Federal em novembro de 2023 e a recessão em curso, o nó se apertou ainda mais. O governo ficou praticamente paralisado. Ele só podia tomar novas iniciativas que não custassem nada e pudessem gerar receita tributária — por exemplo, os incentivos usados ​​para motivar aposentados ou trabalhadores de meio período a retornar ao trabalho ou trabalhar mais. O resultado: todos os partidos da coalizão tiveram que esquecer a maioria das promessas que fizeram aos eleitores antes da eleição no outono de 2021. Os resultados também são miseráveis ​​ o projeto de auxílios de custo de vida conhecido como Bürgergeld (literalmente “renda dos cidadãos”) está cheio de buracos, a economia está vacilando, a infraestrutura está desmoronando e os planos de auxílios para crianças foram adiados. Ao mesmo tempo, os índices nas pesquisas de avaliação dos três partidos que compõem o governo continuaram caindo — para a alegria da oposição conservadora e de extrema direita.

Freio da dívida

Acrise culminou em uma recessão prolongada — e em documentos do SPD, do vice-chanceler Robert Habeck dos Verdes e de Lindner, cada um explicando o que gostaria de fazer, mas que era supostamente impossível na coalizão. Com um pouco de vontade política, a coalizão provavelmente poderia ter encontrado um meio-termo para permanecer no poder. Mas, de acordo com o chanceler Scholz, Lindner não estava disposto a fazer um acordo, apesar das concessões de longo alcance que havia oferecido.

Ao demitir seu ministro das finanças, Scholz disse: “Não vejo outra maneira senão tomar essa medida para evitar danos ao nosso país”. Esta foi certamente uma declaração forte: se você não tivesse ouvido falar sobre o histórico de Scholz, poderia pensar que ele era realmente um social-democrata. Os Verdes fizeram o que era esperado deles: em resposta à eleição de Trump, pediram mais apoio financeiro para a Ucrânia.

Poucos minutos depois, Christian Lindner tentou jogar a culpa para cima: o chanceler havia feito a exigência final de que o freio da dívida fosse suspenso, o que significaria abrir a perspectiva de mais empréstimos do governo. Lindner disse que não poderia ter aceitado isso sem violar seu juramento de posse. “A frase-chave na declaração de Lindner estava factualmente, simplesmente — quase dramaticamente — errada”, o economista Jens Suedekum corretamente conjecturou. Lindner então sugeriu a Scholz que eles seguissem juntos o caminho de novas eleições. Mas Scholz o dispensou. Tudo isso havia sido planejado — como fica claro, de acordo com Lindner, por conta da declaração preparada pelo chanceler e o momento.

Com base nisso, Scholz deve tirar proveito da vantagem de ter tomado a iniciativa política. Quem mostrar alguma coragem primeiro tem mais probabilidade de ser recompensado pelos eleitores, embora isso possa não ser suficiente.

De acordo com o plano de Scholz, o parlamento federal (Bundestag) deve realizar um voto de confiança em seu governo minoritário em 15 de janeiro. Se perder — como ele certamente espera, já que agora conta apenas com o apoio do SPD e dos Verdes — novas eleições devem ocorrer, presumivelmente em março. De acordo com Scholz, antes do Natal, o Bundestag deve aprovar leis como o ajuste de faixas de impostos para pessoas com altos rendimentos para lidar com a inflação e fornecer alívio fiscal corporativo. Essas são prioridades notáveis, quando em sua declaração de ruptura com Lindner, o chanceler o acusou de pensar apenas nos ricos.

Agora, Jörg Kuckies, que antes era secretário de Estado na chancelaria, assumirá como ministro das finanças. Ele é membro do SPD desde o final da adolescência — mas também foi chefe do escritório do Goldman Sachs em Frankfurt por quase uma década. Repetidamente, ele expressou grande interesse público em subsídios industriais multibilionários, que certamente ajudou a negociar. Ele é o primeiro economista a ocupar o cargo de ministro das finanças em mais de uma década — e também o primeiro incapaz de contar com maioria no Bundestag.

Campanha econômica

Os próximos seis meses provavelmente continuarão tão mal quanto antes para a economia da Europa como um todo. Qualquer iniciativa legislativa requer uma maioria incluindo o FDP de Lindner (o que é dificilmente concebível) ou uma maioria com os democratas-cristãos (possível somente se for intencionalmente neoliberal). Os democratas-cristãos também estão enfrentando um dilema entre mostrar “responsabilidade” ou então pressionar Scholz por eleições antecipadas. Eles já anunciaram ambos, mas explicitamente descartaram apoio a um orçamento de Scholz.

Essa situação provavelmente continuará até meados de 2025, pelo menos, e, no pior dos casos, até o fim do ano. Em linguagem simples, isso significa mais seis meses de crise econômica, no mínimo — e uma incerteza massiva para todos os envolvidos. As empresas adiarão investimentos e os cidadãos usarão suas economias. No pior dos casos, o novo governo Trump introduzirá mais tarifas contra a União Europeia em janeiro. Isso provavelmente aponta para um desemprego crescente e uma desindustrialização acelerada, se o governo permanecer paralisado.

Isso também significa que a próxima campanha eleitoral federal, em algum momento de 2025, certamente será travada em torno dos problemas econômicos. Em princípio, esse é um bom ponto de partida para a esquerda alavancar uma mensagem econômica populista. Mas o partido de esquerda Die Linke não tem braços para isso — a política econômica sempre teve dificuldade em ganhar força no partido, e com a saída de Fabio De Masi (para se juntar ao partido de Sahra Wagenknecht, BSW) e a morte de Axel Troost no ano passado, perdeu seus últimos economistas importantes. O BSW tem economistas, mas está pouco interessado em defender um ponto de vista estritamente da classe trabalhadora. Isso é vital se a esquerda quiser mudar o curso atual da Alemanha.

 

Fonte: Tradução de Pedro Silva, para Jacobin Brasil

 

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