Brancos de
classe média atacam cotistas porque perderam privilégio de ser medíocres, diz
escritor pioneiro das cotas
"Pobre",
"cotistas filho da p*, "só podia ser cotista", disseram
estudantes de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
a alunos da Universidade de São Paulo, durante um jogo universitário de
handebol.
A
repercussão dessas imagens ocorre menos de um mês após o lançamento do novo
livro de Jeferson Tenório, De Onde Eles Vêm (Companhia das Letras, 2024).
O
romance que mergulha na experiência de um jovem negro que entra na universidade
pública através do sistema de cotas.
O
livro apresenta a história de Joaquim, um homem de 24 anos da periferia de
Porto Alegre, com sentimentos conflituosos ao entrar em um mundo novo, branco e
elitista.
Para
o autor, o episódio dos jogos universitários exemplifica um ressentimento de
uma classe média que tem herança escravagista.
"Existe
uma elite acostumada a ser servida por pessoas pobres e negras. Em 15 anos,
esses subalternizados passaram a ser seus colegas. Quando esses dois mundos se
encontram, vemos justamente essas cenas que temos visto no meio
acadêmico", diz o escritor.
"Há
um sentimento de frustração. Um sentimento de entender que não adianta ter só
os meios de produção, que não é mais possível ser mediano e ser medíocre e ter
as coisas mais facilitadas como uma classe média sempre teve."
Tenório
é vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura em 2021 com O Avesso da Pele
(Companhia das Letras, 2020), livro com mais de 200 mil exemplares vendidos que
explora as relações raciais no Brasil.
A
obra que conta a história de Pedro, um jovem negro que reconta a história de
seu pai após seu assassinato por policiais, entrou na lista Programa Nacional
do Livro Didático.
No
entanto, três estados, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul, pediram o
recolhimento de exemplares na rede de ensino. Nas redes sociais, o autor
classificou o episódio como "censura".
Ele
relata a experiência de ser o primeiro estudante a concluir uma graduação na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por cotas.
"Antes
de me formar, lembro de ouvir nos corredores que seria difícil conseguir
emprego, que nenhuma escola contrataria alguém formado por cotas. Diziam também
que os cotistas diminuiriam as notas do curso, uma série de preconceitos que
não se confirmaram", recorda.
Confira
a entrevista abaixo.
• Falamos muito nos
impactos econômicos da ascensão social. Mas para uma pessoa negra que está
ascendendo socialmente, entrando numa universidade, por exemplo, quais são os
impactos do ponto de vista psicológico e social dessa ascensão?
Jeferson
Tenório - Esses são espaços historicamente marcados pela exclusão. Ao ingressar
em um ambiente considerado para poucos, os alunos negros de periferia e de
escolas públicas começam a enfrentar diversos conflitos.
O
primeiro é a luta pela permanência. Na universidade, o aluno cotista enfrenta
obstáculos que seus colegas, em geral, não enfrentam.
Meu
livro aborda os primeiros cotistas. Naquela época, não havia redes de
acolhimento, coletivos negros, movimentos nos diretórios acadêmicos, ou bolsas
de estudo e pesquisa. Tudo era extremamente precário em termos de apoio e
acolhimento.
Depois
desse choque de realidade, o aluno cotista costuma vivenciar uma solidão. Em um
primeiro momento, ele sente vergonha e até medo de dizer que é cotista.
Essa
vergonha está ligada ao discurso de desvalorização, que questiona a capacidade
desses estudantes, e ao medo de ser tratado de forma diferente por professores
ou sofrer retaliações.
Um
terceiro estágio surge quando o aluno cotista começa a se apropriar do ambiente
acadêmico, mas também acaba sendo cooptado por ele. Nesse ponto, ele pode
deixar de reconhecer as pessoas e os espaços de onde veio. Ele não consegue
mais se identificar com o ambiente da periferia, nem enxergar seus antigos
amigos como pares.
Isso
pode levar este estudante a adotar comportamentos refratários ao lugar onde
cresceu, criando uma sensação de estar dividido entre dois mundos, quase como
se tivesse traído suas origens.
Meu
livro explora essa questão: até que ponto esses alunos cotistas precisam ser
aceitos, e qual é o preço de buscar aceitação em um ambiente tão branco,
burguês e elitista?
• Já se passaram mais de
dez anos da implementação das cotas e hoje, como você disse, já temos uma rede
maior de apoio, por exemplo, nas universidades. Mas este ano vimos episódios
como insultos a alunos cotistas ou mesmo o suicídio de um aluno bolsista de um
colégio de elite em São Paulo. Por que esse ambiente continua tão hostil?
Tenório
- É um ambiente hostil, porque é a natureza da universidade. É um ambiente
competitivo, frio, anti afetuoso. É um lugar em que se privilegia muito mais a
questão da razão. Como se não houvesse espaço para outro tipo de relação com o
conhecimento.
Este
caso recente aconteceu nos jogos universitários, que sabemos que têm um
histórico de gritos misóginos, preconceituosos já há algum tempo. Esse ambiente
esportivo também é quase como se fosse uma autorização para dizer e fazer
qualquer coisa.
Também
são alunos que muitas vezes ainda são calouros que ainda não fizeram uma
discussão a partir de pressupostos teóricos. Ou seja, ainda não teve essa
experiência e ainda vem com essa bagagem preconceituosa e racistas.
Mas
existe um embate também com alunos que passam a conviver com alunos cotistas,
que tem a ver também com uma herança escravagista.
Existe
uma elite acostumada a ser servida por pessoas pobres e negras. Em 15 anos,
esses subalternizados passaram a ser seus colegas. Quando esses dois mundos se
encontram, vemos justamente essas cenas que temos visto no meio acadêmico.
É
um ressentimento de uma branquitude e medo da perda de um espaço que é
desigual. E um desejo de uma manutenção dessa desigualdade, que se demonstra a
partir de um desses marcadores sociais.
Como
disseram alunos de medicina em 2022, também em um evento esportivo: "Sou
playboy, não tenho culpa que seu pai é motoboy". Ou dizer que é pobre e
cotista, como nesse episódio recente.
É
uma forma de desvalorizar o que, na verdade, é um direito e uma conquista. Há
essa inversão de valores justamente por esse medo e receio de uma perda de
espaço.
• A raiz deste
ressentimento da classe média é a mudança promovida pelas cotas?
Tenório
- O filme Que Horas Ela Volta? (2015) explicita bem o início disso. Como a
filha da empregada passa num dos vestibulares mais concorridos para
arquitetura, e o filho da patroa, que tem tudo, não consegue passar?
Há
um sentimento de frustração. Um sentimento de entender que não adianta ter só
os meios de produção, que não é mais possível ser mediano e ser medíocre e ter
as coisas mais facilitadas como uma classe média sempre teve. É um momento
também dessa branquitude ser educada pela presença de cotistas.
Essa
ideia de que é a universidade precisa ser diversa, ela tem que acontecer na
prática. As cotas propiciam que haja justamente esses contatos. Essa
convivência que faz bem para todo mundo.
Inclusive,
para essa classe burguesa branca, que muitas vezes é alienada, muitas vezes não
se dá conta, ou seja, não tem uma postura ética em relação ao outro, não se
preocupa com o outro.
As
cotas vão muito além de beneficiar pessoas negras e pobres, mas também ajudam
nessa educação da branquitude.
• É inegável que houve uma
efervescência no debate racial no país. Mas esse avanço alcançou as pessoas
brancas? Elas também se engajaram em reflexões sobre a branquitude? Onde você
enxerga que o debate racial avançou?
Tenório
- Tivemos sim um avanço nas discussões raciais na universidade. É muito difícil
hoje em dia que um professor, seja qual for a disciplina, em algum momento não
passa por isso por esses temas, mesmo nos núcleos mais duros, como física,
matemática, medicina.
Nesse
sentido, houve um avanço e há quase uma naturalização já desse discurso na
universidade. O que acontece é que a universidade não dá conta de como esse
discurso chega na sociedade. Nisso, avançamos pouco.
O
debate na universidade é muito efervescente, muito vivo, mas quando vai para a
sociedade, para o grande público, fizemos pouca coisa. Para usar uma expressão
da moda, estamos numa bolha.
Quem
se importa que um estudante tenha dito aquelas coisas, quem acha que é que o
que ele disse é racista, preconceituoso, é uma bolha. O grande público não está
preocupado com isso.
• Você é de uma geração
que lutou pelas cotas e também foi beneficiada por elas. Como foi sua
experiência pessoal nesses ambientes?
Tenório
- Entrei na universidade pública em 2004, no Bacharelado em Letras, sem as
cotas. Na época, o sistema ainda não existia na UFRGS.
Não
era exatamente o curso que eu queria, mas não consegui trocar. Trabalhei muito
durante esse período e continuei no curso. Estudava para ser tradutor, mas o
que eu realmente queria era ser professor.
Em
2007, começou o movimento na UFRGS pela implementação das cotas. Foi uma
discussão intensa, com ocupações da reitoria.
Em
2008, as cotas foram finalmente implantadas, e fiz o vestibular novamente.
Passei para o curso que queria: Licenciatura em Letras.
Me
formei em 2010, aproveitando as disciplinas já cursadas. Com isso, me tornei o
primeiro cotista negro a concluir a graduação na UFRGS.
Antes
de me formar, lembro de ouvir nos corredores que seria difícil conseguir
emprego, que nenhuma escola contrataria alguém formado por cotas. Diziam também
que os cotistas diminuiriam as notas do curso, uma série de preconceitos que
não se confirmaram.
Logo
após me formar, fui contratado por uma escola particular em Porto Alegre.
Durante a entrevista, mencionei que era cotista, e a diretora respondeu:
"É exatamente esse perfil que queremos para nossa escola. Estamos
trabalhando com questões antirracistas e queremos um professor que tenha essa
experiência".
Nada
do que disseram sobre as cotas se confirmou. Pelo contrário, minha trajetória
como cotista foi um diferencial positivo.
• Era também um ambiente
hostil para você?
Tenório
- A universidade sempre foi um espaço hostil, antes e depois das cotas. Nunca
foi acolhedora, especialmente para quem vem de onde viemos — das periferias,
com outra bagagem e outra experiência de vida.
Demorei
muito para perceber as violências que sofria dentro desse ambiente. Elas não
eram apenas explícitas, mas também estavam nos discursos de alguns professores,
que não legitimavam determinados conteúdos ou autores.
Por
exemplo, só descobri que Machado de Assis era negro durante o mestrado, em
2013. Foi nessa mesma época que li Carolina Maria de Jesus pela primeira vez.
Essa
invisibilidade é uma violência. A universidade oferece um tipo de conhecimento
como se fosse universal e único, desconsiderando outros saberes.
A
minha experiência não foi tão dura quanto a do Joaquim, personagem do meu
livro, porque, quando entrei pelas cotas, já conhecia minimamente os mecanismos
da universidade. Já tinha alguma experiência acadêmica, o que ajudou a diminuir
o impacto inicial. Ainda assim, foi uma vivência hostil.
• No seu livro, você usa a
expressão "eterno estrangeiro", que remete a ideia de um não lugar.
Hoje, como escritor negro, sente isso?
Tenório
- Hoje, compreendo melhor minha trajetória, e isso me tranquiliza. Entendi que
nossas origens são, em grande parte, inventadas ou imaginadas. Não temos uma
origem documentada. Não sei quem foi meu tataravô ou de qual país africano
vieram meus ancestrais.
Isso
nos obriga a inventar uma história, criar uma ideia de origem que, na
realidade, não existe. Essa compreensão me levou a aceitar que temos uma
"raiz movente". É como se tivéssemos raízes, mas elas estão em
constante movimento.
Quando
entendi isso, percebi que me apegar a uma origem fixa não faria de mim uma
pessoa melhor. Precisamos construir e reconhecer nossas histórias, mesmo
sabendo que muitas delas são imaginadas.
Isso
também me ajudou a lidar com o conhecimento ocidental, que é branco e
dominante. Decidi aproveitar o que ele tem de melhor e criticar o que há de
pior. Continuo fazendo isso.
Em
De Onde Eles Vêm, isso é evidente no Joaquim: ele lê autores brancos e europeus
consagrados, mas também os questiona. E, ao mesmo tempo, busca se aproximar de
uma literatura produzida por autores negros. Esse movimento, para mim, é uma
forma de retorno às origens, mesmo reconhecendo que essas origens são, em
parte, fruto de uma construção imaginada.
• Na terça-feira (19/11),
uma pesquisa mostrou que, pela primeira vez, a maioria das pessoas no Brasil
não são leitoras. Como você recebe esse dado?
Tenório
- É um dado assustador, sem dúvida. E, se compararmos com outros países, a
situação é ainda mais alarmante. Na França, por exemplo, a média é de 22 ou 23
livros por pessoa por ano. Aqui no Brasil, estamos em torno de 2,1 livros por
ano. É um número muito baixo.
Por
outro lado, precisamos refletir sobre o que significa ler. Será que a leitura
se restringe a livros? A música, por exemplo, não pode ser considerada também
uma forma de letramento?
O
rap, o hip hop, o slam... Estou citando a música porque ela foi uma parte
importante da minha formação como leitor. Na minha infância e adolescência, não
tinha livros por perto, mas a música foi meu primeiro letramento estético. Ela
também me educou sentimentalmente. E, pensando nos adolescentes de hoje, quando
estão nas redes sociais, o que estão fazendo? Apenas consumindo vídeos ou
também escrevendo e lendo?
Talvez
ainda tenhamos a ideia de um "leitor ideal", aquele que senta sozinho
com um livro, mas há outras formas de letramento acontecendo. Hoje, temos
podcasts, que são um sucesso no Brasil, e audiolivros, que, embora menos
populares, também têm um público. A leitura não é só com os olhos; pode ser
também com os ouvidos.
Apesar
desse cenário, não acredito que seja "terra arrasada". Claro que me
preocupo, porque sou apaixonado por livros, pelo objeto em si. Por isso, meu
trabalho é como o de uma formiguinha: tento formar leitores, especialmente de
livros.
• Seu novo livro se
estrutura em capítulos curtos e uma linguagem fluida. Hoje vivemos nesta
disputa pela atenção no ambiente digital, textos cada vez mais curtos... Isso
te influenciou para atrair novos leitores?
Tenório
- Na verdade, a inspiração veio do Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, por exemplo, ele usa capítulos curtos, muitas vezes com apenas
metade de uma página. Isso tinha a ver com a época, já que os textos eram
publicados em folhetins e precisavam ser rápidos para atrair o leitor do
jornal.
Se
pensarmos bem, a lógica de hoje não é tão diferente. A rapidez está presente,
mas ampliada, como no TikTok, onde temos apenas segundos para captar a atenção.
Mais do que a estrutura dos capítulos, minha estratégia é criar uma linguagem
acessível, sem barreiras linguísticas.
Evito
palavras muito sofisticadas ou inversões gramaticais complicadas, buscando uma
fluidez que atraia até mesmo quem nunca leu um livro inteiro. Sempre escrevo
pensando no que gostaria de ler quando era jovem e não tinha tantas
oportunidades.
Fonte:
BBC News Brasil
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